O Ministério Público e a autonomia individual em intervenções médicas, por Aline Albuquerque
Por Aline Albuquerque*
Foto: Erika Carolina/FolhaPress
Mesmo em situações nas quais as pessoas não são capazes de exercer sua autonomia parcial ou plenamente, devem-se aplicar modelos como meio de respeitá-la, afastando-se inexoravelmente qualquer forma de decisão substituta que não considere o nível de capacidade e as decisões previamente tomadas pela pessoa anteriormente capaz
O Ministério Público e o respeito à autonomia individual em casos de intervenção médica Adelir Carmem Lemos de Goes foi submetida compulsoriamente à realização de procedimento cirúrgico, intitulado cesárea, em virtude de pedido feito pelo Ministério Público do Estado à juíza titular da Vara Criminal de Torres – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo relatos extraídos da mídia, Adelir contava com 29 anos idade, era casada e com dois filhos de 7 a 2 anos, que nasceram em procedimento de cesárea, e tinha planos de que seu terceiro filho nascesse de parto normal. No dia em que Adelir foi atendida no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, de acordo com relatos de sua doula, a sua pressão arterial estava estabilizada, assim como os batimentos cardíacos do bebê. Contudo, uma ecografia apontou que o bebê se encontrava em posição não propícia ao parto normal, e a partir dessa informação a médica que atendeu Adelir no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes recomendou a realização de cirurgia cesariana. Adelir decidiu retornar para sua casa em razão de discordar da indicação da médica, pois havia realizado outras ecografias, as quais não eram compatíveis com aquela que detectou que o bebê se encontrava em posição anormal. Para tanto, assinou um termo de responsabilidade isentando o Hospital citado por eventuais ocorrências danosas. Entretanto, a médica que a atendeu não respeitou a decisão da paciente e decidiu recorrer ao Ministério Público do Estado para submeter Adelir compulsoriamente à realização de procedimento cirúrgico. Em consonância com a solicitação da médica, o membro do Ministério Público deduziu o pedido em Juízo com base na defesa do direito à vida do bebê, o qual foi acolhido e, conseguintemente, a Juíza da causa determinou que Oficial de Justiça fosse à residência de Adelir para conduzi-la coercitivamente ao Hospital a fim de que fosse realizado parto cesárea, tal condução contou inclusive com o apoio da força policial. O filho de Adelir nasceu saudavelmente, sem qualquer indicação de que estava em sofrimento fetal(1).
O caso de Adelir suscitou profundo debate sobre o respeito dos direitos das mulheres, mormente sobre os direitos reprodutivos e o direito à saúde reprodutiva. Para exemplificar, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e o Ministério da Saúde emitiram nota conjunta no sentido de que toda gestante têm o direito de acesso a serviços de saúde de qualidade durante a gestação, no parto e no puerpério. Ainda, conforme a nota conjunta, a gestante tem o direito de escolher como será feito o seu parto, incluindo a sua posição e quem pode acompanhá-la nesse procedimento. A nota conjunta também assevera que o parto pertence à mulher, que deve ser “respeitada, assistida e amparada”, bem como assinala que os profissionais de saúde devem saber lidar com eventuais posições dissonantes entre os mesmos e o paciente, buscando a construção de consensos(2).
No plano internacional, o caso Adelir foi objeto de análise no periódico britânico, The Guardian, no qual Rebecca Schiller destacou que Adelir foi retirada de sua residência por seis policiais, anestesiada e operada sem seu consentimento. Em repúdio a esse ato, protestos foram efetuados em embaixadas brasileiras pelo mundo e uma petição contra o ato seria entregue. Schiller chama atenção para o fato de que há certa suspensão dos direitos das mulheres quando há gravidez envolvida. Quanto ao ato médico em si, Schiller pontua que médicos e enfermeiros admitem que o cuidado obstétrico muitas vezes não é permeado pelo consenso sobre o que é mais seguro e mais apropriado no curso da ação. Adelir foi forçada a se submeter a uma cesárea porque a médica que a atendeu acreditou que um parto vaginal poderia colocar o bebê em risco, a despeito da cesárea ser estaticamente muito mais arriscada do que o parto normal(3).
O caso Adelir provocou, ainda, a apresentação de petição à Presidenta Dilma Rousseff pela Associação Artemis, a criação da a hashtag #nãomereçoserobrigadaafazercesárea, e o debate, já assinalado, sobre o tema da submissão compulsória de gestante à cesariana. A despeito da pertinência dos argumentos colocados, neste artigo sustenta-se que o caso Adelir não nos remete tão somente ao respeito aos direitos reprodutivos e ao direito à saúde reprodutiva, mas principalmente a uma questão cultural brasileira concernente ao respeito à autonomia do paciente, por alguns profissionais de saúde e membros do Ministério Público, notadamente quando se tratam de pessoas vulneráveis, como aquelas que se encontram em situação de pobreza, de fragilidade física, ou de algum tipo de defasagem cognitiva, como pessoas com deficiência, pessoas idosas e mulheres grávidas e pobres, como Adelir.
A atuação do MP e a autonomia individual na esfera da intervenção médica
A partir de dois casos distintos, pode-se constatar que o recurso ao Poder Judiciário por alguns membros do Ministério Público expressam uma ingerência na esfera de autonomia individual, e, conseguintemente, uma violação da dignidade humana. O primeiro caso diz respeito a uma mulher com deficiência, de 27 anos de idade, que foi obrigada a fugir de oficiais de justiça na cidade de Amparo, interior paulista, pois havia uma ordem judicial para conduzi-la forçosamente à unidade hospitalar a fim de submetê-la à esterilização compulsória, em virtude de pedido de membro do Ministério Público do Estado(4). Outro caso, refere-se à ação proposta por membro do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, ou seja, pedido de alvará judicial para suprimento da vontade de pessoa idosa com o objetivo de submetê-lo compulsoriamente à cirurgia de amputação de seu pé esquerdo, o qual foi indeferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (5).
Os dois casos acima e o de Adelir são extremamente preocupantes, pois expressam um paternalismo estatal alicerçado na premissa de que autoridades sabem o que é melhor para pessoas pobres, com deficiência ou idosas, afastando, assim, a possibilidade das mesmas de decidir sobre suas próprias vidas, principalmente em situações que envolvem sua integridade corporal. O paternalismo estatal no campo da intervenção médica desrespeita a dignidade dessas pessoas, consistindo num forte cerceamento à autonomia individual. Com efeito, o princípio da dignidade humana previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, impõe a todas as autoridades estatais limites que dizem respeito à pessoa humana como centro, fundamento e fim de toda a atividade pública(6). Dessa forma, o Estado-juiz e demais Órgãos públicos têm o dever de atuar inequivocamente consentaneamente com tal princípio(7). Quanto ao seu conteúdo, o princípio da dignidade humana possui dois elementos constituintes: dignidade humana como empoderamento e dignidade humana como limite. No presente caso importa perquirir os fundamentos do primeiro elemento. Com efeito, a ideia de dignidade humana como empoderamento deita suas raízes no contexto internacional após a Segunda Guerra Mundial. As atrocidades nela cometidas conduziram a comunidade internacional à percepção de que a dignidade humana é a raiz de todas as liberdades humanas, conferindo a toda pessoa humana, indistintamente, o direito de ser respeitada em sua própria dignidade e o direito às condições em que a sua dignidade pode florescer. A dignidade humana como empoderamento consiste na capacidade individual de fazer escolhas livres, o que permite a construção do edifício dos direitos humanos centrado na promoção da autonomia individual. De acordo com essa acepção liberal da dignidade humana, os direitos humanos são designados para assegurar a capacidade das pessoas de fazer suas próprias escolhas, o gozo das condições nas quais ela possa florescer, determinando- se por meio dos propósitos pessoais. A dignidade humana como empoderamento permite conceber a vida humana não como um rol de escolhas livres e trágicas, mas como cadeia sucessiva de escolhas pessoais, trágicas ou não(8).
Nessa linha, a base da dignidade humana é a autonomia moral da pessoa kantiana, ou seja, a dignidade humana é identificada não apenas com a existência de um ser da espécie humana, mas notadamente com a capacidade de ser autônomo, assim, por ser autônoma, a pessoa humana tem dignidade, dispensando-lhe, conseguintemente, a aplicação do regime dos direitos humanos. A autonomia é o governo pessoal do eu, em que a pessoa pode exercer suas próprias escolhas livre das determinações externas e internas, o que não implica um entendimento pleno ou uma completa ausência de influências. Por outro lado, uma pessoa com autonomia reduzida é, em certa medida, controlada por outros ou incapaz de deliberar ou atuar conforme seus desejos e planos. Nesses casos, o princípio da dignidade humana e seu correspondente princípio do respeito à autonomia impõem a adoção dos modelos de decisão substituta, ou seja, quando pessoas não autônomas ou cuja autonomia é incerta estão em situações que envolvam procedimentos de saúde há modelos de decisão substituta, quais sejam: modelo do julgamento substituto, modelo da pura autonomia e modelo dos melhores interesses. Em breves linhas, os três modelos dizem respeito a pessoas não capazes de exercer sua autonomia e às formas de substituir sua decisão, significando que a impossibilidade de fazer escolhas e conduzir segundo elas não legitima o Estado a decidir por elas sem a adoção de meios indiretos de acolher suas escolhas. Atualmente, “é praticamente um consenso que o membro da família mais próximo do paciente é a primeira escolha como responsável”(9). Em suma, mesmo em situações nas quais as pessoas não são capazes de exercer sua autonomia parcial ou plenamente, devem-se aplicar modelos como meio de respeitá-la, afastando-se inexoravelmente qualquer forma de decisão substituta que não considere o nível de capacidade e as decisões previamente tomadas pela pessoa anteriormente capaz.
Dignidade humana e intervenção médica
O princípio da dignidade humana, especificamente associado ao respeito à autonomia, implica o emprego do consentimento informado para qualquer intervenção médica, salvo em situações excepcionais legalmente estabelecidas. O consentimento informado é uma autorização autônoma que expressa concordância ou anuência do indivíduo com determinada intervenção médica. Em casos em que a pessoa humana não é capaz de consentir, os modelos de decisão substituta devem ser empregados. Registre-se que o exercício da autonomia do paciente não se confunde com as hipóteses de incapacidade previstas no Código Civil brasileiro, porquanto a incapacidade para exercer por si só os atos da vida civil não deve ser o norte para a tomada de decisão concernente a intervenções médicas no próprio corpo.
Com base no princípio da dignidade humana e no respeito à autonomia da pessoa humana, a médica e as autoridades estatais deveriam ter acatado a decisão de Adelir quanto à sua não submissão ao procedimento cirúrgico e à sua opção pela realização do parto normal. Poderia se argumentar que nesse caso não estava em jogo apenas a integridade corporal de Adelir, mas também a vida do bebê. Contudo, como os fatos demonstram, Adelir contava com uma doula e foi sempre diligente quanto ao filho que esperava, portanto não havia nenhum indício de que sua decisão autônoma deixou de levar em conta a sua saúde e a de seu filho. Consequentemente, nota-se que a médica que a atendeu e as autoridades estatais que a obrigaram à submissão a procedimento cirúrgico pressupuseram que sabiam o que era melhor para o bebê de Adelir e para ela. Desse modo, em verdade, sobre quais bases a condução coercitiva de Adelir se sustentou? O paternalismo médico e estatal, ou seja, autoridades se arvoraram em saber mais do que a própria mãe acerca do que era melhor para a saúde do seu bebê, talvez porque essa mãe fosse pobre ou apenas em razão da concepção de que expertos e doutos sabem o que é melhor para reles mortais. O paternalismo estatal, como nos casos da pessoa com deficiência e do idoso apontados acima, pode, perigosamente, conduzir a um controle e redução da autonomia individual, tornando, assim, o Estado “um verdadeiro bondoso pai” que irá guiar “seus filhos” incapazes de realizar escolhas sobre suas vidas e de seus familiares, mesmo quando trágicas.
Por fim, enfatiza-se que o princípio da dignidade humana e seus desdobramentos, como o respeito à autonomia da pessoa humana, são normas de cunho obrigatório para todos os agentes públicos conformadores da atuação concreta da associação política. Em consequência, qualquer ato estatal há que estar subordinado à finalidade última do Estado que é o respeito à pessoa humana, dessa forma, apartar a dignidade humana e a autonomia de dada pessoa na área médica é medida extremamente temerária, mormente quando há espaço para tentar se acolher a decisão do paciente, como no caso Adelir, em que a realização de parto normal seria, em tese, a escolha mais segura para ela e seu bebê, até porque não havia comprovação irrefutável de que a cesárea era a única indicação adequada. Assim, devemos ficar atentos para o paternalismo estatal e médico, o qual fundado no argumento da beneficência pode vir a erodir valor historicamente construído e pedra angular do Estado Democrático de Direito, qual seja, o respeito à autonomia de pessoa humana.
* Aline Albuquerque é doutora em Ciências da Saúde. Advogada da União na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Professora do Programa de Pós-graduação em Bioética da Universidade de Brasília.
Notas
(1)ARTEMIS. Disponível em: http://artemis.org.br/wp-content/uploads/2013/11/Den%C3%BAnica-Adelir-PRESID%C3%8ANCIA-DA-REP%C3%9ABLICA.pdf. Acesso em: 20 abril 2014.
(2) SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/2014/abril/governo-manifesta-solidariedade-a-adelir-carmem-lemos-de-goes. Acesso em: 20 abril 2014.
(3) SCHILLER R. The Guardian. Disponivel em: http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/apr/11/forcing-woman-caesarean-assault-brazilian-embassies-natural-birth. Acesso em: 20 abril 2014.
(4) OLIVEIRA, AAS. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Disponível em: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/99/a2.pdf. Acesso em: 20 abril 2014.
(5) APELAÇÃO CÍVEL. PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL Nº 70054988266 (N° CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000). COMARCA DE VIAMÃO. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/acordao-tj-rs-concede-paciente-direito.pdf. Acesso em: 20 abril 2014.
(6) SLAIBI FILHO, N. Anotações à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
(7) CANOTILHO, JJG. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1999.
(8) OLIVEIRA, AAS. Interface entre bioética e direitos humanos: o conceito ontológico de dignidade humana e seus desdobramentos. Revista Bioética 2007 15 (2): 170-85.
(9) BEAUCHAMP, T; CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2003.