A “diferença de classe” no SUS viola a Constituição
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em favor do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul-(Cremers) divulgada este mês, altera a forma de atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em um município gaúcho – e novas ações em curso podem ampliar a medida para todo o estado. Válida inicialmente para Giruá, na região Noroeste, a medida permite que um paciente opte por condições especiais de internação, como quarto exclusivo e médico de sua escolha, desde que pague a diferença em relação ao que o sistema público oferece.
O recurso chama-se “diferença de classe”. Permite ao paciente pagar a um hospital a diferença entre o que o SUS oferece para um atendimento padrão e o necessário para ocupar um quarto mais privativo e confortável, por exemplo. Possibilita ainda que receba medicamentos e realize exames custeados pelo serviço público, mas pague para ser atendido por um médico de escolha.
Em artigo, Valdevir Both, diretor do Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP) critica a decisão. “vinte anos depois da criação do SUS, parece que nos arrependemos do feito e “queremos” lhe tirar a essência, que é a Universalização”, escreve.
A “diferença de classe” no SUS viola a Constituição
Valdevir Both
Diretor Geral do CEAP e professor do IFIBE
No processo constituinte de 1988, criamos no Brasil um sistema público de saúde-SUS para realizar uma ampla reforma da saúde no país. Um dos grandes sonhos de então, era transformar a saúde em um direito de todos, para acabar com a exclusão de grande número de pessoas do acesso à saúde, especialmente as mais pobres. O máximo a eles permitido era o acesso às “Casas de Caridade”, que deles exigia um humilhante atestado de pobreza.
Lamentavelmente, e para a surpresa da sociedade brasileira, vinte anos depois da criação do SUS, parece que nos arrependemos do feito e “queremos” lhe tirar a essência, que é a universalização. Refiro-me aqui, a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou procedente a ação movida pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul-Cremers, que institui a chamada “diferença de classe”. Ela permite que o cidadão pague uma diferença (quarto, médico, exames, medicamentos) e tenha um atendimento fora do padrão oferecido pelo SUS. Em outros termos, legaliza uma prática que já estava vigente, mas proibida. Atuando longos anos na área da saúde, percebo a resistência do Cremers em implantar o SUS.
Portanto, parece não haver nenhuma surpresa na ação movida por ele. Obviamente, seria injusto se aduzisse esta prática a todos os indivíduos médicos. No entanto, a surpresa veio da mais alta Corte de Justiça do país, que em nome do argumento da “liberdade de escolha do paciente”, da “ampliação dos serviços do SUS” (que até agora não entendi a que se referem) aceitou a utilização desta prática, que fere de morte o preceito constitucional da saúde como direito de todos. Explico-me!
Esta decisão do Supremo fortalece duas filas, dois tipos de atendimento. Um para os que podem pagar e outro para os que não podem pagar, os pobres. Aos primeiros, um atendimento digno, aos últimos, uma pequena cesta básica, um mínimo em nome do “possível”, mesmo que isso lhe custe sofrimento ou até mesmo a morte. A gravidade é que essa prática desconsidera o conteúdo fundamental dos direitos humanos, que exige que a política pública não faça nenhuma distinção entre as pessoas na efetivação dos seus direitos. O fato já me leva a imaginar sua triste consequência, a dizer, cidadãos, completamente fragilizados em seus leitos, e rodeados por seus próximos, precisando negociar com o complexo hospitalar a continuidade do seu direito mais básico, o direito à vida.
Ao invés do STF se posicionar favoravelmente a ação que institui a “diferença de classe”, deveria exigir dos entes federados a implantação plena do SUS, estendendo o atendimento digno a todos, e não somente aos que podem pagar. Afinal, se todos são sujeitos de direitos, porque para grupo apenas o mínimo? Eis que urge fazer cumprir o que reza a Constituição em seu art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado!