“A Lei da Dupla Porta é o maior ataque ao SUS desde o PAS, do Maluf”, diz Mário Scheffer
por Conceição Lemes
Esquenta o debate sobre a lei estadual paulista 1.131/2010, a Lei da Dupla Porta.
Primeiro, mais de 40 entidades da sociedade civil representaram ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP) contra a norma que autoriza os hospitais públicos paulistas geridos por Organizações Sociais de Saúde (OSs) a vender até 25% dos seus serviços a planos privados e particulares.
Entre elas, o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP), a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e o Grupo Pela Vidda-SP, que liderou a representação.
Depois, uma vez regulamentada, os promotores Arthur Pinto Filho e Luiz Roberto Cicogna Faggioni, da área de Direitos Humanos e Saúde MPE-SP, entraram com ação civil pública na Justiça para derrubar a 1.131/2010.
“É o maior ataque já desferido contra o SUS desde o PAS [Plano de Atendimento à Saúde], do Maluf [Paulo Maluf, quando prefeito de São Paulo], que, da mesma forma, entregou os serviços públicos ao setor privado”, denuncia Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda-SP e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP. “Vamos tentar dialogar com empregadores, sindicatos e funcionalismo público, que jogam papel central no fomento da dupla porta, pois eles bancam os planos privados que fazem convênios com os hospitais do SUS.”
Para Scheffer, ativista da luta antiaids há 20 anos, o consagrado programa brasileiro de DST/AIDS não teria dado tão certo se não tivesse por detrás o SUS. “De jeito nenhum”, reforça ele. “A resposta brasileira à aids é o SUS levado às suas últimas consequências.”
“Um fator decisivo para a dupla porta ir sendo implantada com facilidade, mesmo com enormes distorções, é a conivência do governo federal. Os ministros Padilha [Alexandre Padilha, da Saúde] e Haddad [Fernando Haddad, da Educação] nunca se manifestaram oficialmente contra ela”, revela Scheffer. “Mas o que é ruim pode piorar. Pouca gente está acompanhando, mas está pronto para entrar na ordem do dia e ser votado na Assembleia Legislativa ainda em agosto um projeto de lei complementar que legaliza de vez e amplia a dupla porta do HC-FMUSP [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP], já que a lei 1.131 não vale para ele, só vale para as OSs. Esse projeto tramita desde 2006. O texto diz claramente que as fundações de apoio do HC podem angariar recursos oriundos do atendimento a convênios e particulares.”
Formado em Comunicação Social, Mário Scheffer é especialista em Saúde Pública, com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Leia a íntegra da entrevista que fiz com ele na última sexta-feira, 19 de agosto.
Viomundo – Por que é contra 1.131/2010?
Mário Scheffer — É o maior ataque já desferido contra o SUS desde o PAS [Plano de Atendimento à Saúde] do Maluf, que, da mesma forma, entregou os serviços públicos ao setor privado. Aliás, a lei 1.131/2010 é mais ardilosa, pois é apresentada como ressarcimento ao SUS quando, na verdade, é uma política de cotas invertida, institui uma espécie de apartheid hospitalar, expande o modelo da dupla porta já testado no Incor [Instituto do Coração de São Paulo], no complexo HC [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP].
Ao permitir a venda de leitos a planos privados e pacientes particulares, é impossível assegurar o acesso igualitário, pois essas pessoas já chegarão com diagnóstico fechado e as operadoras só assinarão convênio com as OSs [Organizações Sociais de Saúde], se seus clientes tiverem atendimento prioritário e conforto de hotelaria.
Imagine um político com câncer que queira se tratar como cliente particular no Icesp [Instituto de Câncer do Estado de São Paulo]. Ele jamais entrará na fila única do Icesp.
Imagine também as pessoas que organizaram o “Cansei” ou se opuseram ao metrô de Higienópolis. Elas nunca ficarão na fila única de um hospital do SUS. Parte da sociedade que tem plano não está preparada para a escolha da igualdade em detrimento do privilégio de passar na frente dos pobres, da liberdade e do conforto em acessar médicos e serviços quando bem entendem. Na verdade, a lei 1.131/2010 oficializa a dupla porta: uma para pacientes SUS e outra para clientes particulares e de planos privados de saúde.
Viomundo – O que a lei 1.131/2010 tem em comum com o extinto PAS, do Maluf?
Mário Scheffer — O Plano de Atendimento à Saúde, PAS, foi um sistema implantado em 1995, quando Paulo Maluf era prefeito de São Paulo, continuado pelo prefeito Celso Pitta, seu afilhado político. A prefeitura passava recursos diretamente para cooperativas, que controlavam os hospitais e as unidades básicas de saúde. Era uma gestão privada, sem controle do SUS, que favorecia a corrupção. O PAS foi responsável por desvios de mais de R$ 1,5 bilhão.
A dupla porta, assim como o PAS, vai irrigar e favorecer com dinheiro público empresas privadas, no caso os planos de saúde. As cooperativas, tal qual as OSs e os planos privados agora, recebiam os equipamentos públicos de mão beijada, sem nenhum investimento.
Como o PAS, a Lei da Dupla Porta é uma gambiarra com aval do legislativo paulista, baseada em legislação questionável que desvirtua totalmente o SUS, entregando o público para o privado. Para ser aceita, a dupla porta, como foi feito com o PAS lá trás, vem sendo apresentada como solução para mazelas do SUS.
Viomundo – Há pouco você disse que os planos privados só assinarão convênio com as OSs se seus clientes tiverem conforto de hotelaria. Mas esse não é o senão da dupla porta…
Mário Scheffer – Com certeza, não. O problema é que pacientes com diagnósticos iguais serão tratados em tempos diferentes. Aliás, já são tratados assim no esquema da dupla porta implantado nos hospitais universitários. Os particulares e conveniados, primeiro, os do SUS, depois.
Viomundo – Por que mesmo com essas distorções, a dupla porta vai sendo implantada com facilidade?
Mário Scheffer — Um fator decisivo é a conivência do governo federal, que negligencia dois instrumentos legais que seriam inibidores da dupla porta.
Viomundo – De que jeito?
Mário Scheffer — A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) está entregue às operadoras de planos de saúde. É como colocar o cão tomando conta das salsichas. O seu presidente atual foi presidente-executivo do Grupo Qualicorp, a maior corretora de planos de saúde. Foi ainda diretor e superintendente do Grupo Medial Saúde, hoje adquirido pela Amil, o maior plano de saúde do país. Por coincidência ou não, o governo não cobra devidamente das operadoras o ressarcimento ao SUS pelo atendimento que os usuários de planos de saúde recebem na rede pública. E a ANS não fiscaliza rigorosamente a capacidade da rede referenciada dos planos privados, que seria um pré-requisito para registro e funcionamento dessas empresas.
Além disso, os ministros Padilha e Haddad [Alexandre Padilha, da Saúde, e Fernando Haddad, da Educação] nunca se posicionaram oficialmente contra a dupla porta do Hospital São Paulo, da Unifesp, que instituição federal. Tudo isso deu chance para o governo estadual justificar a lei e regulamentá-la.
Viomundo – O que mais tem facilitado a dupla porta?
Mário Scheffer – O resto desse caso paulista todo mundo conhece: legislativo cooptado, oposição frouxa, Ministério Público e Judiciário alinhados com o governo do estado, em que pesem os esforços isolados de alguns promotores e juízes. E há o uso político da insatisfação em relação ao SUS: o interesse do privado impregna as decisões dos gestores e domina os mecanismos de construção de opinião.
É emblemático o fato de o ex-governador José Serra (PSDB) ter batizado um hospital público de referência para tratamento do câncer com o nome de um dono da mídia [Icesp, Instituto de Câncer do Estado de São Paulo “Octávio Frias de Oliveira”] e, agora, Alckmin vender um quarto de sua capacidade para o setor privado.
O cerco de influência se fecha com o financiamento de campanhas eleitorais pelos planos de saúde. Em 2010, conforme estudo que coordenei com a professora Lígia Bahia, da UFRJ, eles destinaram cerca de 12 milhões de reais, em doações oficiais, para as campanhas de mais de 150 candidatos.
Viomundo – Mas os defensores da lei 1.131/2010 alegam que a abertura aos planos traz recursos financeiros que ampliariam o atendimento de pacientes SUS…
Mário Scheffer – Não há tese mais falsa do que esta: a intimidade com o privado melhora o funcionamento do sistema público de saúde. Até porque os particulares puros são poucos e os planos não pagam tão bem assim. Parte dos recursos novos arrecadados é para alimentar a vitrine assistencial das OSs, despedaçada depois de anos sem investirem nos hospitais que elas gerenciam. A outra parte vai para o pagamento de prestadores de serviços, inclusive muitos médicos e professores que defendem esse modelo no espaço cativo que têm na grande mídia. Quanto mais privado no espaço público da saúde, mais desigualdades teremos.
Veja o caso dos Estados Unidos. A ampliação do privado e da comercialização no campo da saúde é a origem do total fracasso em promover equidade e em controlar os custos dos serviços de saúde. Os países com sistemas de saúde mais justos e civilizados são aqueles financiados prioritariamente pelo público. Como São Paulo dita a moda na saúde, estamos tendo uma epidemia de OSs pelo país afora. Corremos o risco de assistir à hegemonia do setor privado como grande novidade da reforma da saúde no Brasil.
Viomundo – Os defensores da lei 1.131/2010 argumentam também que não há discriminação entre os pacientes SUS e os de convênios ou particulares…
Mário Scheffer – É outra falácia, até porque de acordo com normas recentes da ANS, os planos de saúde têm de cumprir prazos para consultas e atendimentos. Uma consulta com especialista não pode demorar mais do que 14 dias; 21 dias é o tempo máximo de espera para quem precisa de alta complexidade. Para os planos cumprirem essa regra, seus clientes acabarão sendo atendidos antes dos pacientes SUS, que hoje esperam meses até chegar sua vez.
Viomundo — A batalha contra a dupla porta está perdida?
Mário Scheffer – É Davi contra Golias. Estamos aguardando possível liminar da Justiça, em resposta à ação civil pública que os promotores Arthur Pinto Filho e Luiz Roberto Cicogna Faggioni deram entrada na Justiça.
Estamos tentando convencer o MP Federal a se posicionar. Queremos que o conselho estadual e o Nacional de Saúde tomem uma atitude. Eles, por exemplo, podem iniciar um processo de discussão sobre eventual desabilitação de São Paulo da gestão plena do SUS.
Vamos tentar um diálogo com empregadores, sindicatos e funcionalismo público, que jogam um papel central no fomento da dupla porta, pois eles bancam os planos privados que fazem convênios com os hospitais do SUS. E precisamos tentar sensibilizar parte dos usuários de planos, dizendo: ‘querem que você use um hospital público por meio do seu plano, furando a fila do SUS. Enquanto isso, pessoas com o mesmo problema de saúde que o seu esperam meses para ter acesso a consulta, exame ou internação’.
Viomundo – Mário, há 20 anos você é ativista contra o HIV/aids. O consagrado programa brasileiro de DST/AIDS teria dado tão certo se não tivesse o SUS por detrás?
Mário Scheffer – De jeito nenhum. A resposta brasileira à aids é o SUS levado às suas últimas consequências. Demonstramos que é viável um sistema saúde público eficiente, de qualidade e acessível a todos. Todo mundo – paciente pobre e rico, público, particular e de plano privado – tem os mesmos direitos.
Hoje mais de 250 mil pessoas com HIV estão vivas porque se tratam e retiram mensalmente seus medicamentos em uma unidade do SUS. E deu certo também porque tem controle social, nossas ONGs e os pacientes são organizados, defendemos com unhas e dentes o SUS, nosso maior patrimônio.
Temos serviços de excelência em São Paulo que atendem HIV, aids e infectologia, como o Hospital Emílio Ribas. Os planos privados certamente adorariam fazer convênios com eles. Mas, lá no Ribas, não permitiremos que implantem a dupla porta.
Viomundo — Qual a sua avaliação do SUS?
Mário Scheffer – A nossa Constituição de 1988 criou um sistema de saúde generoso e ético. Mas ainda ressentimos dessa legitimidade. As bases do SUS foram solapadas pelo subfinanciamento e há um conflito latente entre a aspiração à igualdade do SUS e o consumerismo de parte da população cada vez mais decidida a comprar saúde no mercado, porque não encontra o que precisa na porta de entrada do sistema público. Se é verdade que o SUS dá conta da alta complexidade – que é mais dificil e mais cara –, ainda é deficiente o atendimento na ponta do sistema, nas unidades básicas de saúde e nos programas de saúde da família. A população tem dificuldade em acessar a primeira consulta, o primeiro cuidado, que conseguiria evitar o agravamento de problemas de saúde e resolveria mais de 80% das situações, deixando de sobrecarregar os pronto-socorros e hospitais.
Enquanto isso o plano de saúde privado é ofertado pelos empregadores, é prioridade dos sindicatos em suas reivindicações, é o desejo das famílias e indivíduos. Ministros, secretários de saúde, funcionários do SUS, pesquisadores da academia e sanitaristas não usam o SUS na hora que precisam de assistencia médica, todos têm plano privado.
Essas contradições criam um terreno fértil para negócios, como esse agora entre as OSs paulistas e os planos privados. A lógica é manjada: em nome da limitada capacidade do estado, propõe-se a transferir obrigações para o cidadão que pode pagar e empobrecer a oferta para aqueles que só dependem do público.
Viomundo – Mas há avanços indiscutíveis do SUS que boa parte da população não sabe que são SUS. Por exemplo, vacinação infantil, campanhas contra gripe suína, Samu, distribuição gratuita de medicamentos para hipertensão e diabetes, programa de DST/AIDS, transplantes… Enfim, todos os brasileiros usam o SUS, direta ou indiretamente, mas isso a mídia não vê ou desconhece, concorda?
Mário Scheffer — A mídia explora unicamente as condições precárias de alguns serviços do SUS, que são inaceitáveis mesmo, como as filas, o caos nas emergências, a falta de profissionais, o descaso de prefeituras e governos estaduais.
Mas os planos de saúde também têm ocupado cada vez mais a cobertura da imprensa, devido às negações de cobertura, lotação em pronto-socorros, falta de vagas para internação nos hospitais conveniados, paralisações de médicos que recebem menos de R$ 30,00 por uma consulta. Venderam mais planos do que a capacidade da rede suplementar, por isso estão ávidos em fazer acordo para comprar o que o SUS tem de melhor.
Diferente dos planos, que movimentam mais de R$ 70 bilhões por ano para atender um quarto da população, o SUS faz muitíssimo com pouco, o gasto público em saúde no Brasil não chega a um real por habitante/dia, muito menos do que países pobres da América Latina.
É bem como disse: todos os brasileiros usam o SUS, direta ou indiretamente, via campanhas de prevenção, controle sanitário de medicamentos e alimentos, dois milhões de partos e 12 milhões de internações hospitalares por ano em hospitais públicos. O SUS tem reconhecimento internacional pela excelência de seus programas de vacinação, aids e transplantes. Graças ao SUS a mortalidade infantil caiu e a expectativa de vida do brasileiro aumentou.
Viomundo — Por que esse debate que diz respeito a todos cidadãos e cidadãs não está sendo feito com a sociedade?
Mário Scheffer – O governo estadual quer forjar, na marra, um novo contrato social na saúde, alterar o SUS do jeito mais autoritário, sem debater com a sociedade. Além de menosprezarem a Constituição e as leis existentes, afrontam a democracia participativa. A 1.131, a Lei da Dupla Porta, foi aprovada às pressas, na véspera do Natal de 2010, no apagar das luzes da legislatura. Propositalmente para que as entidades da sociedade civil e defensores do SUS não conseguissem se mobilizar.
Goldman [ex-governador Alberto Goldman, PSDB] fez os deputados aprovarem a mesma lei vetada em setembro de 2009, quando José Serra, de olho na eleição presidencial, argumentou que já existia lei estadual e federal que possibilitavam o ressarcimento ao SUS.
Mas o que é ruim pode piorar. Pouca gente está acompanhando, mas está pronto para entrar na ordem do dia e ser votado na Assembleia Legislativa um projeto de lei complementar que legaliza de vez e amplia a dupla porta do HC-FMUSP, já que a lei 1.131 só vale para as OSs. Esse projeto tramita desde 2006. O texto diz claramente que as fundações de apoio do HC podem angariar recursos oriundos do atendimento a convênios e particulares. Ou seja, tanto é ilegal o que Incor e HC fazem há uma década, que estão correndo atrás da legalização.
Viomundo – Que futuro vislumbra para o nosso sistema público de saúde?
Mario Scheffer – O SUS foi criado para ser uma expressão de solidariedade que une todos os brasileiros. Ao mesmo tempo em que cada um de nós financia o SUS, por meio de impostos, conforme sua capacidade contributiva, cada cidadão deveria acessar o sistema de saúde de acordo com suas necessidades e não em função de sua capacidade de pagar ou de ter um plano de saúde.
As soluções para o nosso sistema de saúde dependem de sua adaptação às necessidades das pessoas, não da sua adaptação aos interesses privados e do mercado. Num momento de crescimento econômico, como este, estamos numa encruzilhada. À medida que o Brasil nação evolui, podemos partilhar essa riqueza coletiva para fortalecer o SUS e caminhar rumo ao acesso igualitário à saúde. Podemos escolher entre um sistema construído sobre a justiça social ou, como tem sido a opção política dos governantes de São Paulo, simplesmente investir em organizações e empresas privadas, que vêem na saúde uma mera ocasião de negócio.
Fonte: Viomundo