Hemoderivados: pela autonomia nacional

Por Ana Maria Costa

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios acolheu recentemente tese que lhe foi apresentada sobre a persistência do desperdício do plasma no Brasil, abrindo caminho para que o tema seja usado para alimentar um debate com claros interesses políticos e econômicos. Nessa semana, a revista Isto é estampou uma matéria sobre o assunto, indicando a responsabilidade sobre o descarte de plasma aos ministros Humberto Costa, Saraiva Felipe, José Agenor, José Temporão e Alexandre Padilha.

Mas a verdadeira história das políticas do sangue no Brasil é que, durante 30 anos, mais precisamente desde a estruturação da Rede Pública de Hemocentros, ocorrida nos anos oitenta, nenhum governo assumiu o destino ao plasma humano excedente do uso terapêutico, que até 2002 era jogado sumariamente no lixo.

Em um cálculo aproximado, mais de 20 milhões de bolsas de plasma, por mais de 30 anos, foram descartadas sem que as autoridades dessem destino a este material biológico, rico em proteínas essenciais, conhecidas como hemoderivados. Isto sim, um desperdício.

Para entender o assunto, é importante saber que o sangue que é doado nos Hemocentros por multidões de pessoas em todo o território nacional é imediatamente processado para separar os hemocomponentes, que são os produtos usados na rede hospitalar. Importante que se esclareça que toda bolsa de sangue total coletada do doador resulta, no mínimo, em duas bolsas. Uma contendo o concentrado de hemácias que é transfundido nos pacientes, com elevada taxa de aproveitamento, e outra contendo plasma. Os novos produtos sintéticos colocados no mercado nas ultimas décadas tem ocasionado a redução do uso terapêutico do plasma.

Anualmente, por razões técnicas, um volume da ordem de 150.000 litros de plasma é classificado como excedente do uso terapêutico no Brasil. Este plasma serve para a produção de hemoderivados industriais.

Somente no ano 2000 a Anvisa e o Ministério da Saúde construíram um projeto de aproveitamento do plasma brasileiro excedente do uso terapêutico, baseado em parceria com laboratórios internacionais até que o país incorpore tecnologia apropriada para a produção nacional.

Nesse interim, a Hemobras foi criada, lá se vão 12 anos, e ainda hoje o país depende do fracionamento realizado atualmente na França. O plasma é exportado e retorna ao país sob a forma de hemoderivados, o que mudou radicalmente o nível de aproveitamento em todas as suas potencialidades de produção – mas o fluxo do capital não mudou.

Em 2003, o Ministério da Saúde encaminhou ao Legislativo proposta de Projeto de Lei que autorizou o Poder Executivo criar a Hemobrás. Nesta mesma época, foi iniciada uma operação de saneamento das compras de milhões de dólares anuais em hemoderivados: a  “Operação Vampiro” da Polícia Federal, que em 2004 ficou marcada na historia da saúde publica por desmontar a quadrilha que sugava do SUS para atender aos interesses privados.

A necessidade de adoção de uma Politica para o Sangue e Hemoderivados pelo SUS se justifica pela dependência externa e pela vulnerabilidade à corrupção identificada pela operação policial . A criação da Hemobras gerou uma expectativa positiva de solução desse problema, mas, o fato de depois de tanto tempo persistirmos na dependência da produção externa requer uma resposta: por que o plasma nacional ainda não é fracionado no país? Quais os interesses envolvidos na autonomia de produção nacional de hemoderivados? Quais as dificuldades quanto a transferência da tecnologia necessária à produção nacional?

A Rede de Hemocentros do SUS é um dos avanços inquestionáveis da saúde nacional. Ao assumir a gestão do sangue como assunto de interesse público, portanto de Estado, os hemocentros que gozam de boa reputação junto à população sem dúvida tem qualificado o sangue coletado, desde a seleção dos candidatos à doação, à realização de testes, oferendo sangue com a qualidade e segurança.

A Hemobrás, empresa nacional vinculada ao SUS para o processamento do sangue e produção de hemoderivados constitui, em tese, um avanço. A construção da fábrica e os projetos de transferência de tecnologia visam à autossuficiência na produção destes insumos para o país.

Desde 2010, a Hemobras é gestora do acordo com laboratório francês que hoje centraliza todo o processamento do plasma nacional, mas isso não é suficiente, já que sua missão institucional é a produção de hemoderivados e não atuar simplesmente como gestora de contrato com empresa internacional.

cebesA fragilidade deste tipo de contrato é evidente e os mecanismos de controle são insuficientes, vez que a natureza das instituições envolvidas são distintas nos seus interesses.

Para entender ainda mais a trama de interesses, é preciso lembrar que a simples presença dos produtos procedentes do plasma nacional no mercado permitiu que o Ministério da Saúde limitasse a quantidade de compra do setor privado, realizada por licitações. Nesse contexto, algumas indústrias ficaram de fora das vendas e, por isso, naturalmente descontentes.

A concretização dos projetos em curso pela Hemobrás, se não houver interpelação pelos interesses do capital,  terá como consequência a autossuficiência e a abolição de compras destes produtos. Aí justamente surge a contrariedade da indústria dos Laboratórios vinculados aos interesses privados e que constituem oligopólio no mercado internacional. Aí também se expressa a coragem dos governos no enfrentamento da questão. Lembre-se que o comércio destes produtos é da ordem aproximada de um bilhão na balança comercial no Brasil de hoje.

Para o Cebes, é urgente a autonomia da produção pública nacional dos hemoderivados que irá assegurar ao SUS maior possibilidade de consolidar seus objetivos constitucionais. Quanto ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, instituição de inquestionável isenção, blindada na defesa dos interesses públicos, queremos crer que este estará atento aos fatos e às razões políticas e econômicas envolvidas nesta trama.

A nossa expectativa é de que o Ministério Público, como parceiro na defesa do direito universal à saúde e na preservação do interesse publico, ofereça à sociedade esclarecimentos sobre interesses na manutenção da dependência do país às indústrias produtoras de hemoderivados. Mais do que isso, temos expectativa de estarmos juntos na defesa da urgente autonomia na produção estatal de hemoderivados.