Estrutura precária, sobrecarga e isolamento são queixas dos médicos de locais remotos

O Globo – 27/6/13

Desafios podem ser enfrentados por profissionais estrangeiros que o governo quer trazer

RIO – Foram 31 dias no interior paranaense, sem telefone ou internet, até que Michelle desistisse. Enquanto isso, Marcello trabalhava sem água ou luz num posto de saúde do Ceará. No Vale do Jequitinhonha, Rafael via o médico local receitar banhos de ervas a hipertensos. De Norte a Sul, o cenário precário das estruturas de saúde se repete, tornando rarefeita a presença de médicos dispostos a trabalhar em cidades no interior do país. Ali, cada um deles é sempre “o doutor”. Praticamente o único daqueles lugares esquecidos pelo tempo.

— As pessoas sempre falavam: “Você não vai embora não, né?”. Eles estão acostumados a isso. Os médicos ficam apenas meses. Mas a população cria afeto e, depois, decepciona-se — lembra o médico carioca Rafael Aguilar, de 30 anos, que deixou Chapada do Norte (MG), uma cidade rural com cerca de 15 mil habitantes, em 2009, após quatro meses de trabalho.

A crônica falta de médicos no interior e nas periferias das cidades brasileiras levou o governo federal a desenvolver um polêmico plano emergencial: a busca por profissionais estrangeiros, vindos especialmente de países como Cuba, Espanha e Portugal. A medida, anunciada há alguns meses e reforçada pela presidente Dilma Rousseff na última sexta-feira — no pronunciamento feito em resposta às manifestações que se espalharam pelo país —, foi repudiada por associações de médicos. De acordo com o governo, o país tem 1,8 médico para cada mil habitantes — na Espanha, a proporção é de 4 para mil, e, em Cuba, de 6,4 para mil.

Com a proposta do governo, as vagas deixadas em aberto por médicos brasileiros poderão ser ocupadas por estrangeiros, que deverão passar por um período de testes com duração de três semanas antes de assumirem os cargos. Esses médicos só poderão trabalhar em áreas onde o Sistema Único de Saúde (SUS) tem carência de profissionais, e apenas na atenção básica da saúde, sem poder realizar procedimentos mais complexos, como cirurgias.

A medida, entretanto, é criticada por associações de médicos. Hoje, em reunião realizada na sede da Associação Médica Brasileira (AMB), a classe decidiu promover no dia 3 de julho uma mobilização nacional contra a contratação de médicos estrangeiros sem revalidação do diploma — o exame Revalida só será obrigatório para o profissional que quiser ter a liberdade de atuar em qualquer área do país.

Até agora, a maior arma doméstica encontrada pelo Ministério da Saúde para lidar com o problema foi o Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica (Provab), criado no fim de 2011. Nele, recém-formados inscrevem-se para ocupar vagas abertas em municípios com déficit de médicos pelo período de 12 meses, com um salário líquido de R$ 8 mil e um bônus de 10% na prova de residência. Mas um balanço divulgado ontem pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, mostra que o quadro ainda é grave: em 2013, foram chamados 13,8 mil médicos, mas apenas 4,5 mil se inscreveram no programa. Desse total, 968 já pediram o desligamento, seja por terem passado nas provas de residência (43%), seja por motivos pessoais (23%).

O baixo interesse de médicos em ocupar essas vagas pode ser explicado pelas más condições enfrentadas, como falta de equipamentos e equipes defasadas. Formado na capital cearense, Marcello Yuri Pacheco, de 24 anos, trabalha há três meses em Maracanaú, um município da Região Metropolitana de Fortaleza com cerca de 200 mil habitantes. Apesar da proximidade da capital cearense, a rotina no posto médico inclui falta de luz e água constantes, lixo a céu aberto, problemas na estrutura do prédio, e presença de animais domésticos.

— O médico nunca resolveu, nem nunca resolverá, os problemas da saúde sozinho. Todo médico precisa de equipe e infraestrutura, e isso o SUS não oferece — reclama Pacheco, que se uniu ao programa com o objetivo principal de conquistar o bônus de 10% e passar para uma residência em Fortaleza. — Um dia, quanto faltou água, o coordenador do posto obrigou uma enfermeira a fazer um procedimento invasivo com um balde d’água.

A médica gaúcha Michele Bittencourt Geddel, de 33 anos, também aderiu ao Provab de olho na residência em anestesiologia em Porto Alegre. Mas a experiência na cidade de Coronel Domingos Soares, no interior do Paraná, durou apenas 31 dias.

— Saí porque não tinha estrutura, faltavam insumos. Não tinha luva estéril do meu tamanho, por exemplo. E não dá para fazer sutura com uma luva grande demais — conta Michele, que realizava mais de 30 consultas por dia quando a cartilha do Ministério da Saúde recomenda 16. — Minha impressão é que, como eles não têm médicos, tentavam sugar ao máximo quando um chegava. Não sou a primeira a desistir.

Muitos dos profissionais que se unem ao Provab, apesar de serem recém-formados, tornam-se os únicos médicos da cidade. O Ministério da Saúde oferece supervisão mensal aos médicos, além de uma linha 0800 para tirar dúvidas.

— Eu não tinha telefone no meu consultório — relata Michele, que precisou morar em outra cidade para ter acesso à internet.

Dos três municípios em que os médicos entrevistados trabalharam, apenas o secretário de Saúde de Chapada do Norte, Ivanilton Figueiredo, respondeu aos pedidos de entrevista do “Globo a Mais”. Com uma população de 15 mil habitantes, a cidade conta com apenas seis médicos e uma ambulância adequada para tranferências — o hospital mais próximo fica em Diamantina, a 300 quilômetros de distância. Mesmo pagando R$ 16 mil por mês aos médicos, o dobro do que o SUS oferece no Provab, a prefeitura tem dificuldades para encontrar profissionais.

— Uma das minhas lutas tem sido pedir ao governo recursos para estruturar um bom hospital em alguma cidade do Vale do Jequitinhonha. Concordo que, se nós tivéssemos uma estrutura melhor, conseguiríamos manter os médicos aqui. Mas eu tenho que escolher: ou pago o valor que o médico aceita para trabalhar, ou faço mais investimentos — pondera Figueiredo.

O Ministério da Saúde já dedicou R$ 1,6 bilhão em financiamento para que as prefeituras construam e melhorem suas unidades básicas de saúde — as cidades que aderiram ao Provab têm preferência para acessar esses recursos.Segundo o órgão, os municípios que não oferecerem o mínimo de recursos para a atuação dos médicos serão retirados do programa.

Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Osvaldo Cruz, acredita que a vinda de médicos estrangeiros só será eficaz se aliada a uma política de estruturação das unidades de saúde no interior. Ele lembra que a saúde pública brasileira carece de medidas a longo prazo, como a melhora na formação dos médicos, com maior ênfase na atenção básica.

— É real que não há boas estruturas no interior. É preciso oferecer toda a estrutura e qualificação possível a esses profissionais, não é só trazer e colocá-los lá. Se a política de atrair médicos estrangeiros não vier acompanhada de investimentos, será inócua — opina Castro.

Apesar das dificuldades relatadas por médicos no interior, a relutância em deixar os centros urbanos também é vista como uma questão cultural. Diretor da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, responsável pelo Provab, Felipe Proenço afirma que o governo já trabalha para fomentar a expansão do ensino de medicina e atrair alunos do interior, com financiamentos estudantis, ampliação das bolsas de residência e incentivos do Ministério da Educação para aumentar o número de vagas nos cursos.

— O médico tende a ficar no local onde se graduou. Mas se a graduação não aponta para a atenção básica, ele tem dificuldade de visualizar a sua inserção em outros espaços, e fica nos grandes centros — afirma Proenço. — Temos que olhar a situação do profissional, mas também colocar a importância dele para aquelas localidades. Um município que está sem cinema, que talvez não tenha um acesso tão rápido à internet, por exemplo, também é um município onde existem os maiores índices de mortalidade infantil.

A falta de um plano de carreira que incentive os médicos a trabalhar em municípios carentes é um problema apontado pelos próprios estudantes. Para Rafael Aguilar, que se formou pela UFRJ, não é comum, de fato, ver médicos jovens se embrenhando em empreitadas pelo interior do Brasil. O isolamento das cidades de interior, segundo ele, não só é ruim do ponto de vista emocional, como profissional:

— Tinha utro médico na cidade. Mas ele era meio curandeiro. Chegava uma criança com pneumonia, ele receitava vitamina C. Para pessoas hipertensas, ele passava banho de ervas — lembra. — Talvez, quando ele chegou ali, até soubesse alguma coisa, mas foi perdendo por não ter acesso à academia, a outros médicos. Se eu ainda estivesse naquela cidade, com certeza teria emburrecido.

O fortalecimento da carreira do médico é algo que o Conselho Federal de Medicina (CFM) vem pedindo ao Ministério da Saúde. Para a entidade, deveria ser montado um plano para os profissionais de saúde semelhante ao existente para cargos de juiz e promotor. Assim, os médicos ficariam em cidades do interior, mas teriam mobilidade, previsão de aumento de salário e outros benefícios.

Mas diferentemente do CFM, da AMB e da Federação Nacional dos Médicos, organizações ligadas à saúde coletiva defendem que a contratação de médicos estrangeiros ajuda a solucionar, em caráter emergencial e provisório, a falta de profissionais nos grotões brasileiros. Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) afirmaram que é preciso também fazer maiores investimentos na saúde, como a destinação de 10% das receitas brutas da União e parte dos royalties do petróleo.

Professor de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Aquilas Mendes ressalta que enquanto o Brasil investe apenas 1,7% do PIB em saúde, países como Espanha e França ultrapassam os 8%.

— A crítica feita pelas associações de médicos no Brasil é na verdade uma tentativa de reserva de mercado. Ele não admitem médicos estrangeiros, mas ao mesmo tempo nossas escolas de medicina não prepararam os médicos para o atendimento no setor público. Hoje 155 milhões de brasileiros não têm plano de saúde e os médicos não respondem a essa necessidade — afirma Mendes.

A adequação passaria, segundo Hermano Castro, por uma melhora na formação dos médicos, com maior ênfase na atenção básica:

— Hoje há uma tendência em especializações que demandam uma tecnologia que não existe nas pequenas cidades, enquanto há uma urgência na formação de profissionais com outras especializações, como pediatria.

Para Ana Maria Costa, médica e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), incorporar o caráter cívico ao exercício da medicina é também uma forma de superar o vácuo de médicos no interior. Ela lembra o exemplo do Poder Judiciário, no qual que os concursados precisam trabalhar em regiões mais afastadas antes de serem transferidos para centros urbanos.

— É preciso mexer na raiz do problema com a criação de um plano de cargos e salários que contemple o serviço cívico, estimulando que os profissionais recém-formados trabalhem no interior como uma devolução pela formação médica que receberam — aponta Ana Maria. — O Brasil precisa de médicos generalistas que deem conta de resolver o problema do velho, da criança e do adolescente. É uma mudança crucial para criação de um perfil mais adequado ao país

Apesar das dificuldades, alguns médicos veem a experiência em cidades pequenas como uma oportunidade de aprendizado sem igual. Mesmo com o isolamento, Rafael Aguilar ousa dizer que tem saudade do período no Vale do Jequitinhonha:

— A minha primeira paciente tinha Doença de Chagas e tinha sido picada por um escorpião. Eu nunca tinha visto isso. Então, eu abria o livro e, bem, vejamos como tratar picada de escorpião, vejamos como tratar Doença de Chagas. Aprendi muito. Tenho até um pouco de saudade da clínica médica.

Esta matéria foi originalmente publicada no vesperitino Globo a Mais.