“Mais Médicos” ou o trabalhador pós graduando: trabalho e formação rimam com precarização?
Por Marcos Asas, médico de família e comunidade, diretor de saúde da ANPG e conselheiro do Conselho Nacional de Saúde via Blog de Asas
Muita gente tem perguntado minha opinião sobre o programa “Mais Médicos”, lançado no dia 08 de julho pela presidenta Dilma Rousseff e pelos ministros da saúde Alexandre Padilha e da educação Aloizio Mercadante. Aproveito para colocar aqui que estou contemplado quase na íntegra pelo artigo publicado ontem pelo professor Gastão Wagner. Sintetiza muito bem o que o programa “Mais Médicos” representa de avanço e de retrocesso e aponta outros “nós” do Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não tocados pelo governo, além de apresentar propostas alternativas relacionadas a graduação e a residência médica. Vou aprofundar o debate nos pontos do programa do ponto de vista da formação em nível de pós graduação (que inclui a residência médica) e do trabalho em saúde, dialogando com o artigo do professor Gastão:
1. Sobre a forma de “contrato” indicada pelo governo, é importante que fique claro o que isso significa. Ainda que o valor anunciado pelo governo (R$ 9168,20 líquidos) seja superior ao salário médio da categoria médica no Brasil (R$ 8.459,00 segundo o IPEA), é importante lembrar que se trata de contrato temporário (máximo de 3 anos, renovável por outros 3) e precário. O governo defende que a inscrição no programa não configura vínculo trabalhista. É uma “bolsa-formação” e não salário, por agregar um curso de especialização. Por ser uma bolsa, não é tributável pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), mas implica na perda do direito de férias, 13° salário, FGTS, insalubridade e estabilidade, pois trata-se de contrato temporário. Por obrigar a adesão dos bolsistas ao INSS como contribuintes individuais, não há contribuição patronal (da União, no caso) para a previdência. Isso significa a redução da seguridade social. Se a moda pega, o trabalhador da saúde será cada vez mais formados por pós graduandos, num regime duplo, trabalho & formação: continuação da formação universitária+contrato temporário de trabalho/especialização+Menor cobertura da seguridade social+Contribuição individual ao INSS.
2. Esse tipo de contrato de trabalho se assemelha, nessa perspectiva, aos contratos das bolsas de residências em saúde e dos programas de pós graduação strito sensu (mestrado e doutorado). Assim como as residências em saúde são programas de pós graduação da modalidade lato sensu, as bolsas-formação estão atreladas a cursos de especialização, também tipo de formação em nível de pós graduação na modalidade lato sensu. Apesar dessa semelhança, é importante reforçar que essas especializações não estão sujeitas aos parâmetros das residências em saúde, em termos de projeto pedagógico, preceptoria e regras mínimas de funcionamento.
3. Tanto a residência médica quanto a residência multiprofissional em saúde possuem comissões nacionais de regulação, avaliação e acompanhamento. Ainda que carregue problemas na atuação relativa a esses três âmbitos, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) contribui decisivamente para a qualidade dos programas de residência médica. Não é por acaso que a residência médica é considerada o “padrão ouro” na formação médica. Para se ter uma idéia, a carga horária mínima da residência médica supera as 5.000h (cinco mil horas) em 2 anos. Mesmo sendo mais recente e ainda oferecendo poucas vagas, as residências multiprofissionais em saúde caminham para a mesma direção (e duração).
4. As especializações são cursos em nível de pós-graduação lato sensu que não dependem de autorização, reconhecimento e renovação do reconhecimento pelo Ministério da Educação ou qualquer comissão. Para Instituições de Ensino Superior (IES) já credenciadas, a sua oferta é livre desde que esteja dentro da área de competência da IES e possua carga horária total mínima de 360h (trezentos e sessenta horas).
5. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) permite aos trabalhadores de saúde a liberação por um período de até 8h semanais para atividades de docência e/ou de educação permanente. O reconhecimento da importância da educação permanente foi algo inclusive comemorado quando a PNAB foi atualizada em 2011. É fácil perceber que a carga horária de 1 ano de educação permanente é superior a 360h, permitindo que as bolsas de formação ocupem esse espaço. É um outro sujeito, que parece residente mas não é: o trabalhador pós graduando.
6. Apesar do discurso governamental quando do anúncio do programa “Mais Médicos” apontar a necessidade de atuar na qualidade da formação dos médicos, o central do programa é claramente garantir o provimento de profissionais. Considerando o atual estado de vazio assistencial a que milhões de brasileiros estão sujeitos quando necessitam de cuidados de saúde, é elogiável que o governo esteja decidido a enfrentar essa situação dramática. Melhor ainda se isso estiver conectado às necessidades de saúde da população e às áreas do SUS com mais carências de especialistas. A depender do valor de uso que essas especializações consigam representar para o trabalhador de saúde, essa pode ser uma oportunidade inclusive de qualificar a formação dos profissionais. Mas precisamos debater o que a consolidação desse papel assistencial da pós graduação representa nos seus múltiplos sentidos: formação de especialistas; indução/regulação do mercado de trabalho; redução da seguridade social para os trabalhadores; precarização do trabalho; trabalho temporário; ampliação do acesso à serviços de saúde; integralidade; controle social e educação permanente.
7. Insisto no que pontua o professor Gastão Wagner. Precisamos de “(…) uma ampla e generosa política de pessoal: repensar a formação, carreiras com responsabilidade, condições de trabalho adequadas, e educação permanente.(…)”. É uma sinuca de bico: o governo federal resistiu enquanto pode à criação da carreira de estado para trabalhadores de saúde, apesar da declaração recente de apoio; não conseguiu criar uma Fundação Estatal para a área e enfrenta fortes resistências à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) nas universidades e no Conselho Nacional de Saúde (CNS). É importante lembrar que mesmo com todas as contradições dessas duas modalidades de administração pública indireta, do ponto de vista da garantia de direitos, ambas ao menos poderiam garantir aos trabalhadores toda a seguridade social da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), além de garantirem o cofinanciamento da previdência através da contribuição previdenciária patronal. Nada impediria que o governo oferecesse complementação da formação: as especializações poderiam compor o período probatório, por exemplo. Inclusive no caso da carreira de estado.
8. A opção pela contratação temporária dos trabalhadores de saúde através de bolsas-formação, com piores condições de trabalho em relação à CLT ou ao serviço público, é algo que enfraquece a proposta por torná-la pouco atraente ao trabalhador, mesmo com a oferta de especialização lato sensu e rendimento 8,3% acima da média salarial nacional da categoria. Tende a ser vista como mais um espécime da vasta fauna brasileira de modalidades de precarização do trabalho. Lembrando que consolidar a precarização do trabalho médico não contribui para reduzir a precarização dos outros trabalhadores da saúde. Se as categorias com mais força de pressão forem derrotadas, fica mais difícil ainda para outras categorias profissionais menos organizadas defenderem seus direitos.
9. Precisamos forjar um pacto social em torno da plena consolidação do SUS, nosso sistema público de saúde. Isso só se dará a contento se as pessoas puderem compreender os problemas do setor saúde e passem a defender que a atenção à saúde das pessoas seja socializada, o que só será possível resolvendo o subfinanciamento crônico à que o SUS é submetido, como bem respondendo as questões levantadas aqui, além do que foi didaticamente colocado pelo professor Gastão Wagner em seu artigo. É importante ressaltar que consolidar o SUS se trata de questão de Estado, e como tal, necessita passar por um debate franco e qualificado com a sociedade brasileira.