A enfermaria vazia

Simone Diniz, no blog Parto do pensamento

No começo do século XX século, as práticas médicas de assistência ao parto, cruentas e arriscadas, continuavam encontrando enorme resistência das parturientes. Também no Brasil, desde o século anterior, além das mulheres de famílias ricas o suficiente para pagarem os honorários dos obstetras, em partos domiciliares ou hospitalares, as usuárias dos serviços médicos — os hospitais de ensino — eram as mulheres desvalidas, que não tinham aonde ir na hora do parto, e as parturientes de casos desesperados, que não haviam se resolvido com os recursos não-médicos. As demais eram atendidas por parteiras, mais leigas ou mais cultas, que davam consultas sobre vários temas, como cuidados com o corpo e tratamento de doenças venéreas. De acordo com relatos médicos, também ofertavam recurso para prevenir a concepção indesejada, para abortar, e eventualmente colaboravam com a exposição.

Mas a obstetrícia médica necessitava da presença das mulheres nos seus serviços, em suficiente quantidade, pois para médicos e estudantes este era o único meio de adquirir prática na difícil arte dos partos. Como preencher suas enfermarias vazias? Inúmeros recursos foram empregados para atrair o público feminino aos locais de internamento desde o século anterior, incluindo medidas coercitivas para intimidar as pessoas que acolhiam, em suas próprias casas, as mulheres em trabalho de parto (Brenes, 1991).

Nas primeiras décadas deste século, o pavor ao parto hospitalar continuou plenamente justificado. O sinistro armamentário utilizado, a rudeza das técnicas e os altos índices de infecção hospitalar dizimavam mulheres e crianças em grandes proporções (O’Dowd e Phillip, 1994; Brenes, 1991; Schraiber, 1993). O que tinha a oferecer a obstetrícia? Como pretendia, para além das medidas abertamente coercitivas, convencer as mulheres de que seus préstimos eram os melhores?

No Brasil como em outros países, a partir deste século, cresceu cada vez mais a descontinuidade entre os modelos médico e o religioso de assistência, na medida em que o primeiro foi rearticulando suas alianças em busca de legitimidade. Os médicos obstetras se dirigiram às mulheres, buscando antecipar, identificar, nomear e responder às suas necessidades, propondo ativamente uma solidariedade do varão médico com a mulher parturiente. Em mais um movimento de secularização da assistência, confrontaram-se as autoridades médica e religiosa, disputando novamente quem teria maior autoridade para definir a mulher, a reprodução, e o papel da assistência. Essa ‘parturiente médica’ re-nasce de um duplo e contraditório movimento: por um lado, a emancipação da mulher do poder patriarcal da Igreja e do marido, e, por outro, sua colonização pelo poder médico.

A descrição médica do parto, longe de ser monolítica, refletia uma variedade de conflitos, também internamente à medicina, quanto aos seus objetos e instrumentos de trabalho, e também às variadas formas de alianças na busca de legitimidade entre os sujeitos envolvidos. Enquanto sujeitos sociais concretos, as mulheres não assistiram passivamente a essas mudanças, mas, ao contrário, estiveram interagindo continuamente com essas abordagens, resistindo e/ou se acomodando.

No discurso médico, a fisiologia pode, cada vez mais, fácil e traiçoeiramente desviar-se dos seus rumos, implicando a ameaça de desastre. A antecipação da ‘catástrofe distócica’, cada vez mais, passa a compreender um conjunto de procedimentos clínicos e cirúrgicos preventivos na assistência, que deveriam ser executados de rotina.
A construção, dinâmica, dos objetos de trabalho da técnica está articulada com a definição mesma dos gêneros na assistência. Desde o século passado, o gênero dos que assistiam ao parto polariza, de um lado, os varões e a assistência científica e culta, e, de outro, a assistência feminina, desqualificada. Mas esse “engendramento” da assistência não se dá sem muitas contradições, como pode ser evidenciado em alguns exemplos desses gêneros ainda confusos, em especial na assistência culta.

Um primeiro exemplo seria o caso de Josephine Durocher (acima), uma francesa que se formou como parteira no Brasil e aqui exerceu seu ofício por meio século. Madame Durocher se vestia de homem, sobrecasaca e meia-cartola de seda preta incluídas. Eram muito comentadas as suas esquisitices de homem-mulher. Ela argumentava que a profissão demandava um perfil masculino, tanto para o uso da força física nas manobras e instrumentos quanto para circular pela cidade, de dia ou de noite, para atender às parturientes (Mott, 1992).

Outro exemplo famoso é o de uma das raras médicas mulheres do século passado, a doutora Mary Walker; que trabalhou como cirurgiã na guerra civil americana. Considerada uma precursora do feminismo, ela não só também se trajava de forma masculina, incluindo as calças do exército, como ainda inventou uma roupa a prova de estupros, adequada às mulheres que precisavam circular desacompanhadas nas tarefas profissionais (Lions e Petrucelli, 1989).

Um terceiro caso, igualmente famoso, é o do doutor James Miranda Barret (1797-1865), um oficial médico do Império Britânico. Pequeno, imberbe, de voz fina e temperamento agressivo, por cinqënta anos ele construiu carreira como hábil cirurgião. Tinha fama de flertador, e chegou a entrar em um duelo por causa de uma mulher. Quando morreu, descobriu-se que “ele” era ela; enfim, “o departamento de guerra e a associação médica ficaram tão constrangidos que ele foi enterrado oficialmente como homem” (Lions e Petrucelli, 1989:569). Na ocasião, o ensino de medicina era vetado às mulheres, e não se sabem quantas se travestiram de homem e tiveram suas identidades protegidas.
Nos dias de hoje, em que as mulheres invadem a profissão médica, esses casos soam muito estranhos. Mas eles são interessantes justamente para ilustrar a historicidade da construção dos gêneros na vida social; o gênero socialmente legitimado de quem assiste ao parto passa de feminino por definição a masculino por definição, comportando até mesmo um certo travestismo para o lado então desprivilegiado.

Essas marcas de masculino e feminino parecem em constante movimento, nos vários lugares dos personagens das cenas da parto. Assim, também a marca da mulher no parto vai se transformando: como vimos nos capítulos anteriores, a parturiente-pecadora não é idêntica à parturiente-vítima da natureza, como não será idêntica à paciente-resgatada do sofrimento pelo médico varão.

Com a discussão a seguir, queremos sugerir que, no decorrer do século XX, diante dos limites da obstetrícia médica teorizada e praticada por varões de elite, e das técnicas que ela tem a oferecer, faz-se necessário uma redescrição do corpo da mulher que viabilize outra negociação no manejo do sofrimento do parto.

A medicina se contrapõe mais uma vez ao dogma religioso, reivindicando de maneira mais enfática a superioridade de sua autoridade científica. Oferece às mulheres uma nova aliança e justifica essa barganha na justa solidariedade do varão à mulher. Queremos sugerir também que, no caso brasileiro, tal negociação parece ter se encaminhado por uma tendência de barganha de aparentes concessões técnicas, para ampliar a legitimidade dessas práticas, e convencer as mulheres a “se deixarem partejar”: a negociação do acesso do varão médico aos genitais femininos, e a sua manipulação.

Nessa “barganha técnica”, nessa negociação, valorizar-se-ão, de maneira explícita, as necessidades que se antecipam que as pacientes terão, para além da segurança da sua vida e da do concepto: por um lado, a supressão da dor e, por outro, a prevenção e o tratamento do despedaçamento dos genitais supostamente provocado pelo parto. Essas necessidades aparecerão como finalmente resolvidas, desde o início do século, na promessa contida nas técnicas de extração, capazes de, de uma só vez, resolver os dois problemas e eliminar todos os demais.

Para enriquecer a compreensão da complexa dinâmica de construção social da parturição, suas técnicas de assistência e seus cenários, vejamos agora a descrição do parto, feita pelo pai da obstetrícia brasileira, Fernando de Magalhães, em suas Lições de Clínica Obstétrica, de 1916, buscando apreender nessas descrições alguns dos movimentos dessa construção do gênero e da reprodução.