A grande bagunça

Paul Krugman | Folha de São Paulo

A boa notícia sobre o HealthCare.gov, o portal para os mercados de planos de saúde criado pela reforma da saúde do presidente Obama, é o que governo deixou de minimizar os problemas. Esse é o primeiro passo para resolver a bagunça –e ela será resolvida, ainda que seja difícil determinar se a nova promessa de ter o sistema funcionando sem problemas até o final de novembro será ou não cumprida. Sabemos, afinal, que o Obamacare é um sistema praticável, porque os diversos Estados que decidiram operar mercados próprios para a venda competitiva de planos de saúde estão se saindo bastante bem.

Mas enquanto esperamos que os nerds da informática façam sua tarefa, é hora de fazer uma pergunta correlata: por que o sistema precisava ser tão complicado, para começar?

É verdade que a Lei de Acesso à Saúde não é tão complexa quanto seus oponentes a retratam. Basicamente, requer que as operadoras de planos de saúde ofereçam os mesmos planos a todos; requer que cada cidadão adquira um dos planos disponíveis (o chamado “mandado individual”); e oferece subsídios, com base na renda do beneficiário, para manter acessível o custo dos planos de saúde.

Ainda assim, há muita coisa para as pessoas decidirem. Elas não só precisam escolher seguradoras e planos como submeter um grande volume de dados pessoais para que o governo seja capaz de determinar o nível do subsídio a que terão direito. E é preciso software para integrar todas essas informações e transmiti-las às partes envolvidas –o que ainda não está acontecendo no site federal.

Imagine, em lugar disso, um sistema muito mais simples, sob o qual o governo simplesmente paga suas despesas médicas. Nesse sistema hipotético, você não precisaria comparar planos de saúde e nem fornecer grande volume de detalhes pessoais. O governo seria o operador dos planos de saúde, e você teria cobertura automática pelo simples fato de que é cidadão norte-americano.

É claro que não precisamos imaginar como um sistema desse funcionaria, porque ele já existe. Seu nome é Medicare, o plano de saúde federal para os norte-americanos com idade de 65 anos ou mais, e o programa desfruta de imensa popularidade. Por que não ampliar sua cobertura a todos os cidadãos, portanto?

A resposta imediata é política: um Medicare para todos seria uma proposta impossível, dado o poder do setor de planos de saúde e a relutância dos trabalhadores que contam com bons planos de saúde oferecidos pelos empregadores em trocar essa cobertura por algo de novo. Dadas essas realidades políticas, a Lei de Acesso à Saúde representa provavelmente o máximo que poderíamos esperar –e não se engane: ela melhorará imensamente as vidas de dezenas de milhões de norte-americanos.

Ainda assim, resta o fato de que o Obamacare é uma imensa bagunça –uma estrutura feia e desajeitada que mais ou menos lida com um problema, mas de maneira ineficiente.

O problema é que essas soluções do tipo “melhor do que nada, mas ainda assim bem ruins” se tornaram a norma, na governança dos Estados Unidos. Como apontou Steve Teles, da Universidade Johns Hopkins, em ensaio recente, o país se tornou uma “bagunçocracia”. E o principal motivo para que isso tenha acontecido, em minha opinião, é a ideologia.

Para entender o que quero dizer, basta pensar nas constantes exigências de que tornemos o Medicare –que precisa se esforçar mais para controlar custos, mas ainda assim se sai melhor nisso que as operadoras privadas de planos de saúde– ao mesmo tempo mais complicado e pior. Há exigências de que os benefícios do plano só valham para pessoas de baixa renda, o que tornaria necessário recolher todas as informações pessoais de que o Obamacare necessita mas o Medicare não. Há pressão para que a idade mínima dos beneficiários seja elevada, o que forçaria os norte-americanos de 65 e 66 anos a cuidarem de sua saúde via planos privados.

E os republicanos ainda sonham com desmantelar o Medicare na forma que conhecemos, e oferecer aos idosos vales que permitiriam que eles bancassem tratamentos privados de saúde. Na prática, ainda que jamais o venham a admitir, eles gostariam de transformar o Medicare no Obamacare.

Por que desejaríamos qualquer dessas coisas? Seria possível responder que “para reduzir o ônus que incide sobre os contribuintes” –mas o Medicare é mais barato que os planos de saúde privados, e com isso os ganhos que os contribuintes poderiam ter com o desmantelamento do programa seriam perdidos dada a necessidade de pagar mensalidades mais altas por seus planos de saúde. E nem mesmo está claro que os gastos do governo cairiam. O Serviço Orçamentário do Congresso recentemente concluiu que elevar a idade mínima dos beneficiários do Medicare não resultaria em quase nenhuma economia para o governo.

Não, o ataque ao Medicare é na verdade obra de uma ideologia fundamentalmente hostil ao conceito de que o governo ajude as pessoas, e que busca tornar qualquer ajuda o mais limitada e indireta que puder, restringindo seu escopo e operando-a por meio de empresas privadas. E essa ideologia, em nível bastante fundamental –mais fundamental, até, que os interesses ocultos– é o motivo para que o Obamacare terminasse sendo a bagunça que é.

Ao afirmá-lo, não estou oferecendo uma desculpa para os funcionários públicos e as empresas terceirizadas que causaram tamanhos problemas no primeiro mês da reforma da saúde. Tampouco estou sugerindo, por outro lado, que a reforma deveria esperar até que o sistema político esteja pronto para a cobertura universal pública de saúde. Por enquanto, a prioridade é conseguir que a bagunça funcione, e quando o fizer os Estados Unidos se tornarão um país melhor.

Em prazo mais longo, porém, temos de enfrentar o problema da ideologia. Uma sociedade apegada ao conceito de que o governo é sempre ruim terá sempre um governo ruim. E isso não precisa acontecer.