A inaceitável falta de medicamentos

Artigo de Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda/SP e membro do Conselho Consultivo do Cebes, protesta contra o desabastecimento de antirretrovirais

No dia 28 de abril, pessoas que vivem com HIV e AIDS e representantes de organizações da sociedade civil, estiveram em frente às sedes das secretarias de saúde de várias partes do Brasil. Era um dia de protesto e repúdio contra o desabastecimento de alguns medicamentos antiretrovirais. Denominado “Tolerância Zero”, o ato exigiu o fim dos atrasos na distribuição do abacavir, importante para o tratamento de cerca de 3500 pessoas em todo o país, assim como a escassez da lamivudina, do efavirenz, entre outros, em diferentes municípios. A situação é caótica. “Em busca de alternativas provisórias para o problema, redes de solidariedade vêm sendo montadas: pacientes usam até medicamentos de outros que já morreram, por exemplo”, diz matéria publicada no O GLOBO (9/05/2010).
Em artigo, Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda/SP e membro do Conselho Consultivo do Cebes, diz que falta de medicamentos para tratamento da aids é inaceitável e injustificável.

A inaceitável falta de medicamentos
Mário Scheffer

A falta do abacavir em todo o país, desde dezembro de 2009, o fracionamento ou “estoque crítico” da lamivudina – medicamento “coringa” presente na imensa maioria das combinações – em várias regiões do estado de São Paulo, a ausência de lamivudina, efavirenz e zidovudina em unidades de saúde do Rio de Janeiro, dentre outros registros país afora, deixaram perplexos pacientes, ativistas e ONGs.

Estariam por trás do problema, conforme as justificativas oficiais, dificuldades burocráticas na aquisição, no caso federal, e entrega insuficiente pelos laboratórios e falhas de logística, no caso dos estados. Ora, são fatores previsíveis, incompatíveis com programas governamentais com quase duas décadas de experiência na aquisição e distribuição de medicamentos.

Desde 1991, quando o Ministério da Saúde começou a distribuir medicamentos para o tratamento da infecção pelo HIV e, principalmente, a partir de 1996, com a aprovação da lei federal 9313, que obrigou o Sistema Único de Saúde a fornecer os antirretrovirais mais potentes, foi necessário formular e implementar um sistema administrativo de compras centralizado no Ministério da Saúde e um sistema logístico de unidades dispensadoras de medicamentos, envolvendo a União, estados e municípios.

Os programas foram então adquirindo expertise, investindo em planejamento, compra antecipada, controle do consumo mensal e definição de estoque regulador, visando à cobertura nacional permanente.

Além da seleção dos medicamentos pelo consenso terapêutico, que define claramente o que se deve comprar, da programação do quantitativo e da capilaridade da rede pública, são fundamentais os processos de compra ágeis e antecipados para garantir a distribuição no tempo necessário. Todo esse processo, é claro, envolve exigências legais e administrativas, e certificação prévia da capacidade do fornecedor cumprir o compromisso assumido. Tudo isso é conhecido, pode ser planejado.

No meio do caminho já surgiram cenários adversos que anos atrás levaram à atrasos na incorporação e à falta de medicamentos, como problemas na execução financeira e orçamentária do Ministério da Saúde, dificuldade de negociação com empresas multinacionais, atrasos em registro sanitário, registro de preços e de patentes, problema na importação , irresponsabilidade de fabricantes que não entregaram o prometido, além da capacidade limitada de produção nacional de genéricos.

Novamente, são situações previsíveis com as quais o bom gestor, que aprendeu com os muitos erros do passado, precisa saber lidar antecipadamente.

A vida de milhares de cidadãos e cidadãs depende do perfeito funcionamento desse sistema. Afinal, só com o fornecimento ininterrupto é que os medicamentos farão seu trabalho de inibir a replicação viral, restaurar o sistema imunológico e transformar a aids em doença crônica.

Falhas tão elementares causam prejuízos incalculáveis. Abala a saúde e tem impacto emocional na vida das pessoas que dependem de medicamentos que não estão nas prateleiras do SUS. Nestes casos, localizados em dois medicamentos genéricos, a situação joga combustível no discurso daqueles que ainda se opõem à acertada decisão do Brasil de optar pela produção nacional e pela importação da Índia.

Talvez no momento em que este artigo for publicado já esteja em curso a solução para suprir o abacavir e a lamivudina. Em ano de eleição, nem Dilma nem Serra vão querer iniciar a campanha respondendo pela falta de medicamentos de aids.

Que os episódios sirvam de alerta. A manifestação pública sem demora, a aliança com o Ministério Público e a visibilidade na mídia são ações que devem ser retomadas com vigor pelo movimento da sociedade civil.

Um programa reconhecido pela garantia do acesso universal e pela ousadia do licenciamento compulsório não pode, a essa altura, flertar com o amadorismo.

A falta do abacavir e o racionamento parcial da lamivudina, com explicações tardias e confusas, demonstram que algo não vai bem. Podem ser indícios de um mal maior e fatal para a luta contra a aids no país: a perda da capacidade técnica e da liderança política do programa governamental.

Texto originalmente publicado na Agência de notícias da AIDS