A Índia, o Glivec e o Brasil
Reinaldo Guimarães
A molécula denominada Mesilato de Imatinibe (nomes comerciais Glivec® ou Gleevec®) é, atualmente, a primeira escolha para o tratamento da Leucemia Mielóide Crônica e do Tumor do Estroma Gastrointestinal. Foi desenvolvida pela empresa suíça Novartis durante a década de 1990 e teve sua primeira patente nos Estados Unidos em 2001.
No Brasil, foi lançada no início dos anos 2000 e logo após foi incorporada nos protocolos do SUS. No mercado internacional, o tratamento com o Glivec pode custar até US$ 70 mil por ano por paciente. Para tratar cerca de 7.500 pacientes, o SUS despendeu em 2009, cerca de R$ 260 milhões. Naquele ano o Ministério centralizou a compra do medicamento e negociou uma redução de mais de 50% do preço pago à Novartis.
Os acordos Trips, aprovados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994 foram uma bem sucedida tentativa de harmonização global das regras relativas à propriedade intelectual. Essa harmonização, fato inteiramente confirmado hoje em dia, favoreceu os países desenvolvidos, detentores da maioria das tecnologias e das patentes delas decorrentes.
Ao contrário do Brasil e da maioria dos países da América Latina, com o objetivo de adequar a sua indústria aos novos tempos, a Índia lançou mão de todas as protelações admissíveis durante o processo de implementação dos mesmos. Em particular, utilizou até o último dia o “período de graça” concedido para a implementação completa das novas regras. No caso da Índia, como no do Brasil, esse período era de cinco anos, prorrogáveis por mais cinco. Na contramão, o Brasil ajustou-se imediatamente, sem dar qualquer tempo à indústria nacional em se adequar ao novo padrão de competitividade. O governo federal promulgou a nova Lei de Patentes em 1996. Mais ainda, recheou a Lei de concessões inadmissíveis à luz da soberania nacional, como por exemplo, a extensão do período de proteção patentária além do disposto nos acordos (20 anos), quando da ocorrência de atrasos nos processos de concessão de patentes (parágrafo único do seu artigo 40).
A Lei de Patentes da Índia ajustada aos termos da Trips entrou em vigor em 2005, mas admitiu reconhecer apenas as patentes de medicamentos descobertos após 1995. A Lei brasileira não só foi promulgada nove anos antes, como decidiu patentear medicamentos anteriores a 1995, desde que eles tivessem patentes depositadas em seus países de origem (o mecanismo foi chamado aqui de pipeline). O resultado da liberalidade do Brasil durante o período de abertura comercial (década de 1990) foi que as indústrias farmacêutica e farmoquímica brasileiras praticamente desapareceram e, apenas nos últimos anos (em particular a partir da Lei dos Genéricos – 2000), estão conseguindo se aprumar. Já a Índia é um ator global na pesquisa, desenvolvimento, produção e comercialização de princípios ativos e medicamentos. Alimenta, por exemplo, 80% do mercado de genéricos dos Estados Unidos.
É nesse contexto que deve ser analisada a recente derrota da Novartis, quando a Corte Suprema da Índia negou provimento a uma ação da empresa que solicitava uma ampliação do escopo de patenteamento do medicamento. No caso específico, tratava-se da solicitação para patentear aperfeiçoamentos de uma molécula já conhecida. A Novartis alegou que a existência de uma patente do Imatinibe de 1993 (ao largo, portanto, do reconhecimento da Lei indiana) dizia respeito a uma molécula diferente da atual. E que os desenvolvimentos subsequentes justificariam a reivindicação de uma nova patente. Esta foi a demanda negada pela justiça indiana que estabeleceu não ter havido, nesse desenvolvimento, atividade inventiva que a justificasse.
A longa sentença da Suprema Corte da Índia se baseia, naturalmente, em argumentação jurídica. Entretanto, dois aspectos surpreendem: primeiramente o transbordamento da análise dos juízes para o desenvolvimento histórico da questão patentária na Índia, suas relações com a política industrial e com o desenvolvimento da indústria farmoquímica e farmacêutica no país; além disso, o profundo comprometimento da Corte com aspectos éticos vinculados à restrição do acesso de populações e países despossuídos a medicamentos proprietários protegidos por monopólios. A sentença se organiza em 196 parágrafos numerados, dos quais destaco o de número quatro que descreve, a voo de pássaro, esse amplo escopo (em tradução livre).
“4. … O debate teve lugar dentro de um amplo enquadramento. A Corte foi desafiada a fazer um balanço entre a necessidade de promover pesquisa e desenvolvimento em ciência e tecnologia e manter um monopólio privado (chamado de uma ‘aberração’ sob o nosso enquadramento Constitucional) num nível mínimo. Foram expostos argumentos sobre as obrigações da Índia quanto a cumprir de boa fé os seus compromissos decorrentes de tratados internacionais, bem como foram expostos contra-argumentos no sentido de proteger o status da Índia como a “farmácia do mundo”.
A Corte foi lembrada de seu dever de sustentar os direitos estabelecidos pela lei e a Corte também foi lembrada de que um erro seu de julgamento colocará medicamentos capazes de salvar vidas além do alcance de uma multidão de seres humanos necessitados, não apenas neste país mas em muitos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, dependentes dos medicamentos genéricos da Índia. Nós mencionaremos estes e outros argumentos nos momentos oportunos mas precisamos, primeiro, tomar conhecimento dos fatos que deram lugar às questões acima e que forneceram o contexto para o debate.”
A indústria farmacêutica internacional vive uma crise importante desde a última década do século passado. Seu principal indicador (e determinante) é a diminuição do número de registros de moléculas realmente inovadoras nos principais mercados. A resposta a essa situação de desconforto tem se orientado em cinco direções principais. A primeira é a onda de fusões e aquisições de empresas, cujo objetivo mais importante é a concentração e o adensamento dos pipelines. A segunda são mudanças no modelo geral de negócios, cuja essência reside no refreamento da verticalização dos processos de desenvolvimento e produção com crescente terceirização, com vistas ao compartilhamento do risco. A terceira foi uma mudança de atitude em relação a medicamentos genéricos, que deixaram de ser “criminalizados” e vêm sendo crescentemente incluídos nos porta-fólios da indústria que se autodenomina “de pesquisa”. A quarta direção é o que se poderia chamar de uma radicalização nas estratégias comerciais, cujas práticas chegaram a atingir as fronteiras da ética e mesmo da legalidade, o que atestam os recentes acordos celebrados entre farmacêuticas de grande prestígio e a justiça norte-americana. Dentre estes, surpreende o que estabeleceu multa de US$ três bilhões (sim, bilhões) pelo exercício de práticas comerciais ilegais realizadas pela empresa britânica Glaxo Smith Kline na primeira década deste século. E, finalmente, a quinta direção são as tentativas de ampliar as possibilidades de patenteamento com medidas conhecidas genericamente nos fóruns internacionais como medidas Trips-Plus. Várias propostas nessa direção têm sido incluídas nos acordos bilaterais e multilaterais de livre comércio celebrados entre os países detentores de patentes e os países em desenvolvimento. Mencione-se, nesse aspecto, a presença da renúncia à aplicação de algumas flexibilidades admitidas nos acordos Tripsa partir de 2001, como a utilização de licenciamentos compulsórios (impropriamente denominados “quebra de patentes”) em vários desses acordos. A ação perdida pela Novartis na Índia está associada a essa quinta estratégia.
Voltando ao Glivec no Brasil, a patente brasileira do medicamento expirou em 2012 e o Ministério da Saúde decidiu pela constituição de uma parceria público-privada para o desenvolvimento e fabricação do mesmo para a utilização no âmbito do SUS. Para isso, foi organizado um consórcio constituído de quatro empresas privadas nacionais e dois laboratórios públicos. A entrega do primeiro lote produzido por essa parceria foi entregue ao Ministério da Saúde em 19 de dezembro de 2012. Iniciativa muito bem sucedida que autonomiza o SUS quanto ao Imatinibe, tanto dos suíços quanto dos indianos.