A luta pela descriminalização e legalização do aborto é uma luta de todes

Paloma Silveira, Mulher cis, heterossexual, reconhecida socialmente como branca, professora, psicóloga e às vezes artista. Mestra em Psicologia pela UFPE e Doutora em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA

Ingriane Barbosa de Carvalho, 31 anos, solteira, negra, pobre e mãe solo de três filhos, morava com a família na localidade de Pedro do Rio, área rural de Petrópolis/RJ, quando teve a sua vida interrompida, em 16/05/2018, pelo aborto inseguro. Descrita pela mãe e irmã como uma mulher alegre e trabalhadora, Ingriane tinha um mês no novo trabalho formal como babá e ainda estava se reestabelecendo depois de viver um relacionamento conturbado com o pai de dois filhos. Fazia uso de anticoncepcional, enquanto aguardava a laqueadura que seria realizada no SUS. Engravidou em um relacionamento com um homem que sumiu e não se responsabilizou pela gravidez (GUIMARÃES, 2018).

Preocupada com o novo emprego, com os compromissos financeiros assumidos e com a criação de mais um/a filho/a, decidiu interromper a gestação. Tentou a interrupção com alguns métodos, mas não conseguindo, buscou ajuda de uma mulher que lhe cobrou 300 reais. Introduziu um talo de mamona no útero para interromper a gestação. Ficou internada por sete dias em um hospital e morreu de infecção generalizada. “Se ela tivesse buscado um procedimento seguro, tudo bem. Agora, um talo de mamona? Não se faz isso nem com um animal. Dói muito”, desabafou sua irmã(GUIMARÃES, 2018).

Manuela1, 36 anos, casada, autodeclarada branca, estrato social médio, funcionária pública com pós-graduação, sem filhos/as e moradora de um bairro nobre de Salvador/BA, realizou um aborto em 2007 em um clínica privada clandestina “top2, pagando em espécie 3000 reais. A gravidez aconteceu no processo de retorno do relacionamento afetivo-sexual com o marido e não usaram métodos contraceptivos. O retorno do relacionamento que passava por uma crise, junto com sua fragilidade emocional e mudanças no trabalho, e na vida acadêmica, levaram a decisão pelo aborto. O marido soube da gravidez e disse que a decisão era dela, apoiando-a. Apesar dos vários privilégios, estes não garantiram a Manuela um atendimento humanizado e seguro, como nos relatou:

O médico foi super descuidado, numa situação que você tá muito vulnerável, colocou o instrumento de forma mais agressiva. Doeu. Eu senti que o ato em si foi muito mais doloroso (…) eu não sei se ele fez de propósito ou não. Uma mão pesada, não sei se ele é assim ou não, mas não teve a menor sensibilidade (…) eu me senti como objeto ali (…) E mesmo depois né, foi mais doloroso assim (…), fiquei até com medo de ter alguma infecção, alguma coisa assim, mas não tive nada não (trecho da entrevista).

Estas duas histórias bem distintas, com caminhos e desfechos muito diferentes, possuem algo em comum: a criminalização do aborto. O aborto é crime no Brasil como consta no Código Penal de 1940, sendo permitido em duas situações: quando a gravidez representa risco de morte para as mulheres e quando esta é resultado de violência sexual. Em 2012, o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu autorizar as mulheres que assim o desejassem, a interromper a gravidez em casos de fetos anencéfalos.

Apesar da criminalização, as mulheres brasileiras abortam como aponta a Pesquisa Nacional sobre Aborto (PNA), realizada em dois períodos: 2010 e 2016. Segundo as análises da pesquisa, a interrupção da gravidez faz parte da vida reprodutiva das mulheres de diferentes estratos sociais, grupos raciais, escolaridade, religiões e, que ao completar 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez um aborto no Brasil. Contudo, são as mulheres negras, com menor escolaridade e residentes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as que realizam mais abortos e que além da clandestinidade, correm riscos maiores ao utilizar métodos mais inseguros (DINIZ; MEDEIROS, 2010; DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017).

Na prática, a criminalização não faz com que as mulheres deixem de realizar abortos, entretanto tem produzido e fortalecido mais as iniquidades sociais no Brasil. Nascer e (sobre)viver em um país racista, misógino, patriarcal e elitista é se deparar constantemente com as realidades desiguais, interseccionadas pelas diferentes dimensões sociais, e com a violação dos direitos humanos, já consagrados das mulheres. Os fragmentos das histórias de vida trazidos aqui de Ingriane e Manuela são ilustrativos neste sentido3. Ingriane, mulher negra e pobre, morreu. Manuela, mulher branca e de estrato social médio, sofreu com o atendimento clandestino prestado pelo médico, mas não morreu. A criminalização do aborto assim pune todas as mulheres, ainda que em graus bastante diferenciados já que também se constitui como mais uma faceta da perversa e racista necropolítica (MBEMBE, 2018) brasileira, que estabelece como e quem pode viver e morrer neste país.

Com esse desgoverno tudo para, nós, mulheres, tem se tornado pior. O chocante caso da menina de 10 anos que engravidou do tio após ser estuprada sistematicamente por quatro anos, retrata bem o que este desgoverno tem nos reservado. O Estado que deveria garantir o acesso ao aborto legal, foi o que produziu mais violências, com diversas tentativas de impedir a menina de concretizar seu direito previsto em lei. Além de enviar assessores para persuadir a menina e a avó a mudarem de decisão, assediando elas e também os/as profissionais do Conselho Tutelar, existem fortes indícios de que foi a partir do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que ocorreu o vazamento dos dados sigilosos da menina (VILA-NOVA, 2020) pobre e possivelmente negra.

A menina e avó viveram uma saga tortuosa, e tiveram suas vidas completamente expostas. Assistimos o circo de horrores montado na porta de entrada do CISAM/UPE (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), local onde foi realizado o aborto legal. Pessoas ditas religiosas rezavam e gritavam chamando a menina estuprada de assassina, bem como os/as profissionais de saúde do Centro. Felizmente, os movimentos de mulheres e feministas também ocuparam o espaço, mostrando nossa força, capacidade de resistência e uma rede potente de solidariedade foi formada, acolhendo a menina e sua avó com afetos amorosos e presentes.

Este caso provocou bastante comoção social, mostrando limites que ainda não podem ser ultrapassados no Brasil. Ainda porque a ofensiva contra os direitos das meninas e mulheres continua forte e atuante. Logo após o caso, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria 2.282, que em síntese, dificultava ainda mais o acesso ao aborto legal. Após diferentes mobilizações, ocorreram mudanças em alguns pontos, entretanto essas modificações têm sido analisadas criticamente, como se fossem um “cavalo de troia”:

Em suma, a nova Portaria, ainda que modificada, continua fazendo parte de um rol de práticas adotadas pelo Estado para tomar conta dos corpos femininos, para domar a sexualidade da mulher e podar o seu poder de escolha. Serve, na verdade, para a manutenção das práticas de aborto na clandestinidade, ao passo que dificulta o acesso ao mesmo nos casos legais, o que retira das mulheres – principalmente daquelas que integram a população negra e em situação de alta vulnerabilidade econômica – a autonomia sobre o próprio corpo e o exercício de seus direitos. E aí é que estariam os soldados escondidos, prontos para nos direcionar à barbárie (PIMENTEL et al, 2020).

O aborto é um tema controverso e muito complicado de ser debatido. Em geral, questões sobre quando se inicia a vida humana emergem e as opiniões fundamentadas em uma moral religiosa conservadora tendem a querer impor sua visão única, em uma seara que é infindável, afinal, quem pode dizer com certeza quando começa a vida humana? São os mistérios inexplicáveis de nossa condição neste mundo, em que diferentes interpretações se fazem presentes, desde as diversas religiosidades até no campo das ciências. Para Lusmarina Campos Garcia (2020) as dificuldades com relação ao aborto, não dizem respeito apenas a este debate sobre o início da vida humana, mas incluem também a questão se nós, mulheres, podemos ou não sermos consideradas como sujeitas éticas, se temos direito ou não de decidirmos a partir de nós mesmas.

Fato inquestionável é que a vida vivida possui muitas complexidades, que até a razão desconhece. Somos atravessadas por afetividades, sonhos, planos e também por muitas violências. O Brasil é um dos países que mais violenta e mata as meninas e mulheres no mundo, sobretudo, as mais vulneráveis, negras e pobres. Complexidades que essa moral religiosa conservadora insiste em não ver e muito menos considerar. Não consideram que o aborto realizado em condições inseguras, pode matar, sendo um importante problema de saúde pública. Não consideram as múltiplas violências vividas, ao contrário, se tornam perpetradores/as. Deturpam, quando não criam informações falaciosas sobre a descriminalização e a legalização do aborto.

É falso afirmar que com a descriminalização e a legalização todas as mulheres serão obrigadas a abortar. O que vamos ter é a ampliação dos direitos de nós, mulheres, e a obrigatoriedade do Estado ainda Laico em garantir. Se você mulher ou que possui um corpo que pode gestar, engravidar, poderá refletir sobre a maternidade de outra forma, não da forma compulsória que temos atualmente, da maternidade como o destino certo: “a maternidade será desejada, ou não será: aborto livre!”. É falso também afirmar que o aborto se tornará um tipo de método contraceptivo. As experiências de países onde o aborto é legal não mostram isso. Em geral, medidas conjuntas de educação sexual e acesso amplo aos métodos contraceptivos são realizadas pelos serviços de saúde desses países.

O que essa moral religiosa conservadora e seus/suas seguidores/as querem é continuar exercendo o controle sobre nossos corpos, nos tolhendo e socializando para sermos dos outros: Estado, pai, marido, família, filhos/as e desse Deus/Jesus opressor, e violento. Querem continuar nos reduzindo a mero objetos, nos assujeitando a uma vida sem autonomia e autodeterminação, mas cheia de sofrimentos e mortes evitáveis. Desse modo, a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil não é uma questão restrita a nós, mulheres, diz respeito a todes e ao tipo de sociedade que queremos construir. A construção de um projeto democrático igualitário e que busque a justiça social não pode se esquivar desta luta pelos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Um país racista, patriarcal e desigual que não gosta de nós, mulheres, não é um país bom para quase ninguém viver. Não continuem se enganando.


1 A história de Manuela, nome fictício, faz parte da pesquisa realizada em 2012, no doutorado da autora, cujo título da tese é: Experiências de abortos provocados de mulheres e homens de estratos sociais médios no Nordeste brasileiro. A tese foi defendida em 2014, no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e a pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética do ISC – parecer n°029-12/CEP-ISC.

2 Como as entrevistadas nomearam as clínicas privadas clandestinas de alto padrão, onde realizaram os abortos. Para conhecer melhor recomendamos a leitura do artigo escrito, a partir da tese, intitulado Experiências de abortos provocados em clínicas privadas no Nordeste brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, v.32, n.2, Rio de Janeiro, 2016.

Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2016000200705

3 Recomendamos também a leitura do artigo de Emanuelle Goes et al (2020) intitulado Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, supl.1, Rio de Janeiro, 2020.

Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020001305006

Referências:

DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 15 (Supl. 1), 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232010000700002&script=sci_arttext

DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017000200653&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

GARCIA, Campos Lusmarina. Seja feita a tua vontade, mulher! Portal Catarina. 2020. Disponível em: https://catarinas.info/seja-feita-a-tua-vontade-mulher/?fbclid=IwAR0Wml4yPCwckGbC1qwPMKsC-wx59qe8JQL2PVzrkS_35cbD6BK06Cp5kss

GUIMARÃES, Paula. A morte evitável de Ingriane. Portal Catarinas. 2018. Disponível em: https://catarinas.info/a-morte-evitavel-de-ingriane-e-lembrada-em-audiencia-publica-sobre-aborto/

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo, 2018.

PIMENTEL, Silvia et al. Recuo estratégico do Ministério da Saúde ou Cavalo de Tróia? 2020. Disponível em: https://www.folhape.com.br/colunistas/mulheres-em-movimento/recuo-estrategico-do-ministerio-da-saude-ou-cavalo-de-troia/20625/

VILA-NOVA, Camila. Ministra Damares Alves agiu para impedir aborto de criança de 10 anos. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/09/ministra-damares-alves-agiu-para-impedir-aborto-de-crianca-de-10-anos.shtml