A saúde em tela plana
De Lígia Bahia, em Jornal O Globo
A atual novela do horário nobre da Rede Globo não é um típico drama médico. Apenas presta homenagem ao gênero, revivendo personagens médicos atarefados, preocupados com o bem-estar de pacientes e o vilão que administra o hospital.
Os dilemas enfrentados para obter atendimento, geralmente objeto de tramas colaterais nos diversos programas médicos, estão praticamente ausentes na novela, que tem como um de seus principais cenários um hospital privado com uma ala benemerente.
Na tela, ninguém paga diretamente nada pela assistência: os planos de saúde são explicitamente mencionados como responsáveis pelas receitas administradas corruptamente, e quem não tem cobertura é internado mediante aquiescência do dono do hospital. Contudo, a fórmula para aproximar personagens distanciados em termos sociais e geográficos no espaço compartilhado do hospital não é uma simples falsificação da realidade ou desleixo em relação às expectativas sobre o sistema de saúde.
Hospitais filantrópicos que atendiam pobres passaram a reservar ambientes adaptados para pacientes de classes altas e se tornaram um dos pilares dos modernos sistemas de saúde. Consequentemente, a época de discriminação dos indigentes (daqueles que não eram beneficiários da Previdência) foi superada.
O que a TV retrata e não encontra correspondência na realidade é a existência de profissionais de saúde brasileiros atendidos no mesmo local onde trabalham. Servidores públicos, frequentemente, têm planos que os levam para serviços privados, e os contratos de cobertura para o quadro técnico e auxiliar que atua em estabelecimentos considerados de primeira linha também não incluem o acesso à rede exclusiva para clientes ricos.
Portanto, quem trabalha na saúde no Brasil vivencia, além dos conflitos éticos frequentemente retratados nos dramas médicos, uma dubiedade social e política. O vigor dos servidores públicos contra ataques privatizantes da saúde se arrefece diante do fato de a categoria ter planos privados de saúde financiados diretamente com recursos dos orçamentos públicos. Algumas entidades médicas, inclusive aquelas que deveriam zelar exatamente pelo “desempenho ético e moral da profissão”, se associam descaradamente a empresas de planos de saúde, que mimetizam o papel de organizações desinteressadas no lucro e ao mesmo tempo patrocinam clubes de futebol.
A bagunça no SUS gerada pela confluência das lutas pela redução das jornadas e “plantonização” do trabalho dos médicos é imensa. Embora as reivindicações pelas trinta horas de trabalho ainda não tenham sido reconhecidas legalmente e a inserção dos médicos no trabalho de rotina seja formalmente registrada, o que vale são os arranjos informais baseados em negociações entre gestores e profissionais de saúde, nos quais a variável de ajuste é somente a compressão do tempo de trabalho em troca da mesma ou maior remuneração. Menos horas de trabalho, sem perspectiva concreta de reposição, funcionários que duvidam das condições assistenciais que contextualizam suas práticas e o afastamento das vicissitudes e necessidades da população comprometem inexoravelmente o potencial de oferta de atenção e qualidade do SUS.
As circunstâncias da inserção dos funcionários em unidades de excelência tampouco se coadunam com representação de serviços de saúde como espaços de encontro entre comuns. Na novela, uma enfermeira argumenta que trabalha há muito tempo naquele hospital e que não seria justo negar atendimento a sua neta. Na realidade, o mais provável é que profissionais de determinados hospitais privados estejam vinculados a um plano que exclui a possibilidade de unir trabalho e uso do serviço, e se adaptem a um padrão de consumo distinto daquele disponível a seus clientes.
Servidores públicos e os profissionais, que trabalham em serviços privados, não são usuários costumeiros do SUS e tampouco das unidades de saúde mais prestigiadas, tornaram-se consumidores de planos de saúde de segunda classe. A anuência passiva ou ativa com a desvalorização do SUS aos pobres e a consagração de unidades especializadas na assistência às classes superiores de renda contrasta com as cenas da novela. Essa dissintonia entre a vida tal como ela é e as imagens da televisão pode parecer, à primeira vista, um jeitinho midiático de acomodar situações improváveis. Entretanto, o rompimento da saúde com a segregação espacial do atendimento de ricos e pobres foi essencial, tanto para o desenvolvimento do potente mercado de saúde nos EUA quanto para os sistemas universais europeus.
A novela expressa uma aspiração concreta, extrapola a simples falsificação do real. Onde a imaginação corre solta é na propaganda governamental sobre direitos à saúde, que vai ao ar, inclusive, nos intervalos da novela. A invenção de um mundo homogêneo para quem tem plano, independente do valor pago, é um embuste. As políticas de saúde, baseadas nas promessas de cumprimento de prazos iguais para circunstâncias clínicas e coberturas diferenciadas, declaram intenções de corrigir problemas deixando exatamente tudo com está.
A novela simula um cotidiano simplificado, talvez um tanto ou quanto idílico. Mas a omissão do papel do SUS como ressegurador dos planos baratos, e em certa medida também dos caros, bem como o não enfrentamento de condições de trabalho retrógradas ajudam a criar um enredo totalmente fictício, que atende ao propósito de adiar, mais uma vez, as tarefas para organizar um sistema igualitário.
Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Conselho da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.