Aborto e as eleições

A campanha presidencial tem sido tomada pelo moralismo erguido pelo debate sobre o abordo que os dois candidatos à presidência – justiça seja feita mais Serra do que Dilma -, travaram tão logo se anunciou que a candidata petista não venceria no primeiro turno. O Brasil passou a ser obrigado a engolir uma eleição pautada na discussão a cerca da interrupção da gravidez indesejada. Na ânsia de conquistar votos conservadores, o tucano se esqueceu que como ex-Ministro da Saúde não pode tratar o tema à luz da religião, mesmo porque seria um retrocesso, num Estado laico, previsto pela Constituição. Matéria publicada no O GLOBO (10/10) traz informações a cerca do aborto no Brasil: 200 mulheres mortas por ano, 183 mil curetagens no SUS. É absurdo, portanto, não reconhecer que é uma questão de saúde pública.  O Cebes acredita que o assunto, em vez de ser levado de forma leviana aos palanques, deveria ser encarado como um problema social, complexo. Nesse espaço dedicado originalmente à entrevista, Ana Maria Costa, Diretora do Cebes e especialista em gênero, escreve sobre o uso eleitoreiro do aborto.

Aborto: o centro do debate para a eleição do Presidente do Brasil?
Ana Maria Costa

A interrupção de uma gravidez indesejada ou inoportuna é uma estratégia adotada por milhões de mulheres no Brasil. Para isso recorrem a recursos clandestinos. As ricas buscam serviços menos arriscados enquanto as pobres colocam suas vidas sob alto risco para resolver a situação. Milhares morrem ou ficam com sequelas definitivas. As mulheres perdem a vida ou a saúde. A ilegalidade do aborto, responsável pela morte das mulheres e prejuizos à saude delas, caracteriza que a questão do aborto é, também,  da saúde pública.

A legislação atual restringe a permissão do ato somente às mulheres que correm risco de vida com a gestação ou que engravidaram de forma não consentida,  por causa da violência sexual. A legislação é insuficiente ao conduzir à condição de “crime” aquelas que decidem abortar por qualquer razão de seu foro íntimo.

A sociedade brasileira vem evoluindo, gradativamente, no debate público sobre o aborto. Mesmo polarizado pelos dogmas religiosos de um lado e, de outro o reconhecimento da autonomia das mulheres e das repercussoes da ilegalidade sobre a saúde, os últimos anos testemunham avanços no debate. Já existe um consenso de grande parcela da população de que o aborto é um “problema de saúde publica”. A evidência disso são os projetos que o Poder Legislativo vem debatendo como reflexo das aspirações da sociedade.

A condenação do aborto à ilegalidade tem levado vantagem no processo legislativo por meio de grupos organizados e da manutenção de forte bancada sustentada pelo financiamento abastado, de origem obscura em apoio  à manifestação destas ideias. Feministas, sindicalistas e movimentos sociais contemporâneos e livres das correntes aprisionadoras do fundamentalismo religioso têm persistido ampliando argumentos por meio de evidências da dimensão da tragédia sanitária e do significado da liberdade e da autonomia das mulheres como desígnio da democracia.

O primeiro turno das eleições presidenciais trouxe o assunto ao debate e espraiou pelas igrejas uma afirmação de que Dilma é favorável ao aborto. O plebiscito, denunciado e combatido por Marina quando criticava o favoritismo de Dilma, de fato se instalou na modalidade de “ plebiscito do aborto”. Agora, ao que parece, o aborto volta a ser o objeto maior da provocação de Serra à candidata Dilma e o segundo turno tende a transformar esse tema em epicentro na escolha do novo Presidente de nossa República. E o Brasil está perplexo!

Eleger os temas de fronteira, aqueles que “racham” a opinião pública,  é tática baixa dos adversários porque sabem que a sociedade está dividida de forma  passional. Nessa condição, as pessoas esquecem da estabilidade econômica, do emprego, do acesso à saúde, escolas e à moradia e a própria sobrevivência digna  para carimbar de “abortista” a candidata Dilma. Como retomar o debate político, dos interesses das coletividades, de desenvolvimento nacional distinguindo o melhor rumo a ser escolhido para o futuro do Brasil?

O debate sobre o aborto não pode ser interrompido (abortado) na sociedade. Só não pode ser o foco nas eleições. Muito menos travestido e alimentado pelo caráter hipócrita que assumiu nos últimos dias.

Serra não pode se dizer contra o aborto. Nem Dilma. Ambos são políticos de pensamento contemporâneo livres das correntes do fundamentalismo. Vamos aos fatos biográficos que conformam as evidências de que a posição do Serra não é esta que hoje tenta convencer o eleitorado. À frente do Ministério da Saúde, Serra pôde contabilizar entre seus maiores feitos, a implantação da norma de atenção ao aborto legal, que disciplina como os serviços devem atender o aborto na rede SUS. Diante das reações à epoca, Serra enfrentou o Congresso Nacional defendendo a referida norma. Um assessor próximo ao candidato disse, na época, que “Ele fez isso por princípio humanista, para que as mulheres pobres, inseridas nesses casos, pudessem ter um mínimo de segurança para fazer esses abortos LEGAIS”. Ora, por humanismo ou por responsabilidade pública, Serra assumiu posição e estimulou a criação de serviço de aborto legal em todo o país.

Mas Serra não parou por aí. Ao mostrar que reconhece o aborto como questão de saúde pública, incluíu a pílula do dia seguinte – para a Igreja um método abortista – entre os medicamentos da lista básica do SUS.

Mas hoje Serra se esconde nesse moralismo “antiaborto”. Mentira, sua biografia e atos em relação ao aborto mostram que ele nem é tão atrasado em relação ao assunto. Entretando, insiste no jogo de retórica oportunista que é, de fato, a perversão maior já que esvazia o debate político que a sociedade deve continuar realizando acerca das mudanças clamadas pelos direitos reprodutivos como consolidação da democracia.

Mas Serra não está só entre seus pares partidários quando o assunto é aborto. Reportagem da Revista TPM, de março de 2005 (ed 41), traz matéria com Soninha Francine, na qual revelou não apenas já ter feito aborto como era favorável à descriminalização. Soninha é uma das coordenadoras de campanha do tucano, atuando sobretudo na internet.

Tal como Soninha, milhares de mulheres de todas as idades e classes sociais passaram pela mesma situação. A população feminina vive cotidianamente a situação do aborto. Seja pessoalmente ou ajudando solidariamente a uma amiga, filha ou  irmã.

Importante lembrar para confirmar ainda mais a dimensão dessa mentira, que o partido do Serra tem mulheres valorosas da luta pela legalização do aborto: Eva Blay, Elza Berquó, Tania Lago, Albertina Costa, Fatima Jordão. Só para citar algumas.

Do outro lado, ao ser acusada de abortista (vejamos a gravidade disso, pois abortista é quem realiza o procedimento, não? ), Dilma lembra que o aborto não está na pauta de seu governo mesmo que a posição de seu partido, o PT, não formou consenso sobre a necessidade de legalização. Surpreendendo os planejadores da campanha da favorita, Serra foi maquiavélico ao acionar a questão de forma maliciosa e esperta, como estratégia da campanha “vale tudo”. Ele sabia que estava mobilizando  a “paixão” fundamentalista religiosa e, ao mesmo tempo, transformando os púlpitos das igrejas em comitês, e padres e pastores em cabos eleitorais. Fez o seu estrago, roubando votos de Dilma, todos eles destinados à Marina, já que ele mesmo não se movimentou de forma distinta aos coeficientes que as pesquisas apontavam.

A brutal perda de votos, em função da campanha difamatória, que definiu o segundo turno, obrigou Dilma a manifestar-se sobre um assunto que não é de campanha. Todos sabem que a legalização do aborto nao é pauta do programa eleitoral de Dilma. Não contente com o “desmentido” de Dilma, Serra surge outra vez, querendo convencer o eleitor que ela é a mentirosa.

Ao mesmo tempo que infantiliza a capacidade crítica do eleitor, ele aborta o debate que, a duras penas, todos nós vimos ser construído na sociedade brasileira. Corremos o risco de retroceder 20 anos, voltar ao obscurantismo da prisão de mulheres e a perseguição a elas nas clínicas clandestinas de aborto nas quais filhas e amigas de todos nós, indistintamente, são submetidas aos procedimentos para interrupção de gravidez indesejada. Pior: fica o legado da despolitização consequente do debate sobre o aborto e dos direitos reprodutivos,  que evoliui graças ao trabalho, exposição e dedicação de centenas de mulheres ao longo das três últimas décadas no país.

É hora de pensar e agir com responsabilidade que deve ser norteadora dos atores públicos. A primeira providência é abortar a hipocrisia. Candidatos, deixem esse debate com o povo, com o legislativo, seu legítimo representante. A sociedade está pedindo que a campanha eleitoral seja redirecionada para o que cada candidato tem a oferecer como projeto de nação, de desenvolvimento para o país.

Oportunamente,  teremos que prosseguir e aprofundar a reflexão da sociedade  sobre o aborto em amplitude suficiente para  repercutir no parlamento como construção de consensos, se é que  queremos avançar na democracia dos direiitos humanos no componente dos direitos reprodutivos.  Agora, não.