Ainda os planos de saúde para pobres

Por Gilson Carvalho

A celeuma se instalou e alastrou-se. Várias organizações (ABRES, ABRASCO, CEBES) e jornalistas foram unânimes em criticar a simples hipótese de o governo federal trocar com as operadoras de planos de saúde, renúncia fiscal pela oferta de um plano popular para a classe média baixa e a pobreza. Concretizaria aí uma dupla iniquidade. Aos ricos investidores as benesses da renúncia de impostos e contribuições. Aos pobres o ônus de tirar de seus parcos salários mais um gasto para pagar planos de saúde. Nesta hipótese facilita-se a vida do setor privado de saúde e dificulta a vida dos cidadãos que passarão a arcar com o ônus do plano retirando dinheiro de seu ínfimo salário.

Segundo o Souto Júnior, amigo meu: “Usando um termo de Darcy Ribeiro, pode dar no bestunto de alguém acabar decretando o fim do SUS, por ociosidade e desnecessidade. Acabando com os miseráveis, levando-os ao nível de pobreza, e os pobres sendo entregues aos planos de saúde. Para muitos não teria mais sentido ter o SUS, já que estes sempre o consideraram feito para os pobres e miseráveis! Assim pensou e pensa mesmo boa parte da área econômica de todos os últimos governos. Resta a nós, militantes defensores da saúde pública, mantermos a defesa da maior e melhor política pública da historia brasileira. Quem quiser que se entregue!”

Por uma questão de respeito à verdade e ouvindo os dois lados, tenho que informar que o ministro da Saúde negou tudo. Aconteceu em sua fala na sessão de abertura do Congresso dos Secretários Municipais de Saúde. Não quero contestar a figura do ministro da Saúde nem sua informação negando que esteja havendo alguma coisa neste sentido de planos de saúde para os pobres. Apenas relato sua intervenção.

Minha tendência é acreditar nas pessoas. Não o faço quanto ao governo federal em si e às decisões quando estas pessoas se juntam sob a influência do poder. Minha experiência de vida me leva a desacreditar de falas e promessas federais para a saúde. Não posso também me esquecer que os governos são operados por pessoas e que aí sim a opinião delas pode representar o braço do Estado. Muitas vezes já me vi em situação semelhante participando de embates semelhantes.

A desesperança minha quanto ao querer dos governos em relação à proposta de saúde tem fundamentos históricos. Assim foi e parece será em todos os partidos que ocupam o governo federal. Para os que governam não tem existido direita e esquerda, progressistas e conservadores, no campo da saúde. Todos se comportam de maneira idêntica na dependência, isto sim, da situação em que estão. Se no governo e se fora dele. Situação e oposição. Quantos na oposição defendem a área de saúde dentro da cartilha social. O mesmo fazem nas promessas de campanha. Quando situação, têm todos os argumentos, pensamentos e obras daqueles que governam. São capazes de sofismar quanto ao aumento dos recursos por áreas ou globais para a saúde. Para isto basta cantar em prosa e verso o gasto federal com saúde a partir de números absolutos, sem deflacioná-los e sem considerar o aumento da população e a respectiva atribuição dos recursos per capita.

A história em que vivo já há cinquenta anos na saúde, quarenta dos quais como médico, mostra evidências desta falta de priorização da saúde pelos vários governos federais. Comandados por partidos diversos. Vamos aos fatos desalentadores que me forçam a desacreditar dos governantes federais quando dizem que defenderão a saúde pública e na prática agem ao contrário. São discursos falaciosos. Acreditar no discurso ou na prática diametralmente oposta?

1) Organizações Sociais – No início do governo FHC, Bresser Pereira comandou a reforma do Estado. No bojo da discussão da gestão apareceu a figura das organizações sociais. Começaram os estudos visando sua formatação e posterior encaminhamento ao Congresso como projeto de lei do Executivo. Tive acesso a uma das versões do documento. Fiz uma análise e divulguei-a, mostrando onde estavam levando a administração pública. Pouco tempo depois o secretário executivo do ministro Jatene mandou um ofício mal criado desmentindo estes estudos e dizendo que quando fosse estudar a questão seríamos informados. No ano de 1998 foram aprovadas as organizações sociais e o Ministério da Saúde que negava esta hipótese, viu-se em falseta. Caiu em contradição. Ele queria que não fosse assim, mas assim queria o governo FHC. O mal já estava feito. A ADIN sobre o tema, contestando a legalidade das OS, jaz no Supremo Tribunal Federal por quinze anos sem parecer conclusivo. Acreditar no discurso ou na prática diametralmente oposta?

2) Capital estrangeiro nos planos de saúde – Aqui novamente a discrepância entre discurso e prática. O oportunismo de trabalhar na calada da noite, quase imperceptivelmente. Em 1998 foi aprovada a lei dos planos de saúde. Havia no projeto um artigo permitindo a entrada de capital estrangeiro na saúde privada. Malan foi alertado que a militância já se mobilizava para que não fosse aprovado. Mais que depressa retirou o artigo do projeto. Mas, sempre tem um dia depois do outro e, em 2000, pegando a militância envolvida com a aprovação da PEC 169, foi aprovada uma medida provisória em que constava um artigo permitindo o capital estrangeiro de participar dos serviços de saúde como os planos de saúde. Corria solto na boca do trio FHC-SERRA-MALAN a defesa da saúde e do social. Acreditar no discurso ou na prática diametralmente oposta?

3) Emenda Constitucional 169 e depois 29 – Perdemos a definição na constituinte do montante financeiro que deveria ser gasto em saúde pelas três esferas de governo. A falta de recursos para a saúde levou o Deputado Eduardo Jorge e outros a apresentarem uma proposta de mudança na Constituição para melhorar o financiamento da saúde. Pelo projeto de EC a União deveria gastar 30% dos recursos da Seguridade e, além disto, as três esferas de governo, 10% dos seus recursos fiscais. Assim se cozinhou esta proposta entre 93 e 2000. Em 2000, Serra, ministro da Saúde, com a falta de dinheiro, orquestrou apressar a votação da PEC 169. Os militantes, de norte a sul, tremulavam bandeiras em defesa da PEC 169 – segundo o original do Eduardo Jorge. FHC/SERRA/MALAN, maquiavelicamente, aproveitaram-se do movimento popular e, na calada da noite, modificaram a proposta inicial, desonerando a União em mais de cinquenta por cento dos termos da proposta e aumentando em 20% os recursos de responsabilidade dos estados (de 10% para 12%) e em 50% a dos municípios (de 10% para 15%). Enquanto militantes, que pouco entendiam do processo, comemoraram a aprovação da PEC 169 desapercebido de que foram iludidos! Tudo em defesa da saúde. Acreditar no discurso ou na prática diametralmente oposta?

4) Lei Complementar 141 – Em 2003 o deputado Roberto Gouveia tentou reverter este quadro de desfinanciamento crônico da saúde. Apresentou, em seu primeiro dia de mandato, o Projeto de Lei 01/2003, que visava garantir mais dinheiro para a saúde. O projeto foi amplamente discutido com a sociedade e acordado um relatório extremamente bom para a saúde pública. Na hora da votação a Câmara manteve para a União o mesmo mecanismo de financiamento anterior, comprovadamente insuficiente. Pouco depois, o Senador Tião Viana apresentou um projeto muito parecido com o do Gouveia, que foi votado no Senado com aprovação de 100% dos senadores – situação e oposição unidas. Este projeto foi para a Câmara que o substituiu pelo seu que mantinha o cálculo da EC 29. Depois disto voltou ao Senado que tinha 3 opções: manter seu projeto aprovado, adotar o da Câmara ou mesclar os dois. Já se antegozava a vitória, pois com certeza o Senado manteria a essência do seu. O governo entrou de mangas arregaçadas e pasmem: conseguiram votos suficientes para que o Senado abandonasse seu próprio projeto, já aprovado, e ficasse com o da Câmara que nada acrescentava de dinheiro para a saúde. Tudo em defesa da saúde!!! Acreditar no discurso ou na prática diametralmente oposta?

Minha única conclusão, desde que me conheço como gente, é que os partidos políticos no Brasil, em relação à saúde, se dividem em oposição e situação. Nada de direita e esquerda. Nada de progressistas e conservadores. O que domina como resultante é ser oposição e situação. A esquerda que defende a saúde vira governo e faz ainda mais maldades para a saúde ou se omite. Não precisaríamos de oposição, pois o modus operandi da oposição progressista adota rapidamente a mesma prática neoliberal. Discurso social e prática neoliberal. Ouvi ainda dias atrás que Lula teria lhe dito que a saúde foi uma área para a qual pouco fez e menos ainda privilegiou em seus oito anos de governo. Arrependido estaria, ou apenas fazendo uma constatação?

Ainda que se diga que esta história do plano de saúde para pobre com desoneração para as operadoras seja uma paranoia coletiva, não acredito. Tenho certeza histórica de que algo vem acontecendo neste sentido. O governo tem que desmentir, principalmente, se causou reação. Mas seu outro braço deve estar continuando a discussão deste projeto e acertando os detalhes. Quem viver verá. Sou obrigado a pensar no Paulo Freire, que não se cansava de repetir: “é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz para que, em dado momento, a nossa fala seja igual a nossa prática”.