Análise do perfil e da forma de acesso dos usuários atendidos por médicos e enfermeiros na atenção primária brasileira

Rafael Barros, integrante do núcleo Bahia do Cebes, analisa problemas nos registros do Sistema de informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) do Ministério da Saúde, buscando o perfil por condição avaliada e a forma de acesso dos usuários atendidos por médicos e enfermeiros na atenção primária brasileira, refletindo também possível problemas no preenchimento do sistema de informação. Além de enfermeiro, Rafael é professor da Escola de Enfermagem da UFBA, pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva/UFBA e Militante da Reforma Sanitária Brasileira. Veja a matéria a seguir.

Compreender o processo de trabalho na Atenção Primária à Saúde (APS) brasileira ainda é um desafio importante, seja no meio científico ou mesmo entre profissionais e gestores na saúde. Em 2022 foram 293,42 milhões de atendimentos individuais de médicos e enfermeiros na APS registrados no Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB). Destes, 173,4 milhões (59,09%) tiveram um “problema ou condição avaliada” preenchida no atendimento de uma lista de 22 principais tipos de condições definidas pelo Ministério da Saúde, seja no prontuário eletrônico (e-SUS) ou nas fichas em papel. Os demais atendimentos (41,01%) se concentraram em outras demandas para além dessa lista pré-definida.

Como pode-se ver abaixo, quase 38% de todos os atendimentos da APS com condição avaliada da lista pré-definida, foram para hipertensão e diabetes e 21,6% para o atendimento de crianças menores do que cinco anos (puericultura). Neste sentido, podemos afirmar que a composição do perfil dos usuários atendidos na APS brasileira se concentra nestas três condições, seguidas por pré-natal (9,2%), saúde mental (8,5%) e saúde sexual e reprodutiva (6,5%), totalizando quase 85% dos atendimentos da APS.

Ao fazer o atendimento, o profissional médico ou enfermeiro precisa registrar se o acesso do usuário foi por meio de uma consulta agendada ou por demanda espontânea (usuário chega na unidade de saúde sem estar agendado, procurando pelo serviço de saúde). Analisando os dados de 2022, destes 173,4 milhões de atendimentos, 46% dos usuários acessaram a unidade a partir de uma consulta agendada e 54% via demanda espontânea.

No antigo Programa de Avaliação de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), havia uma recomendação de que ao menos 40% dos atendimentos da APS fossem destinados para demanda espontânea, via acolhimento com classificação de risco, com o objetivo de permitir a APS ser mais resolutiva, evitando deslocamento desnecessário de usuários com condições agudas para Unidades de Pronto Atendimentos (UPA), que poderiam prontamente ser resolvidas na APS.

Partindo deste pressuposto, é possível afirmar então que o processo de trabalho da APS brasileiro, em média, tem ofertado parte razoável da sua “agenda semanal” para o acesso via demanda espontânea. Porém, com os dados atuais não é possível afirmar que este acesso dos usuários não agendados ocorre via acolhimento com classificação de risco.

Para compreender tal processo, precisamos observar algumas condições avaliadas. O ministério da saúde define que algumas condições devem ser enquadradas como atenção agendada programada ou cuidado continuado, ou seja,  são consultas que constituem ações programáticas individuais, direcionadas para os ciclos de vida, doenças e agravos prioritários, as quais necessitam de um acompanhamento contínuo. Como exemplo, é possível citar o cuidado dispensado às gestantes, às pessoas com doenças crônicas e às crianças. Assim, nestes casos é desejável que os usuários sejam acompanhados rotineiramente nas unidades de saúde da APS.

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (BRASIL, 2017),define que a territorialização, população adscrita e longitudinalidade do cuidado são diretrizes da APS. Esta seria, portanto, a porta de entrada preferencial do SUS, possuindo um espaço privilegiado de gestão do cuidado das pessoas, com potencial para cumprir papel estratégico na rede de atenção, servindo como base para o seu ordenamento e para a efetivação da integralidade. Neste sentido, espera-se que o perfil epidemiológico dos usuários cadastrados no território adstrito de cada equipe da APS seja de conhecimento dos profissionais o que permitiria uma programação do cuidado de forma continuada dos usuários de acordo com uma avaliação de risco, considerando a singularidade e necessidade de cada um.

Contudo, os dados que vemos no SISAB denotam uma situação no mínima diversa desta diretriz da PNAB. Quase 55% dos atendimentos a hipertensos e diabéticos na APS ocorreu via demanda espontânea. Em uma análise superficial, duas hipóteses poderiam explicar este fato.

A primeira seria que ainda há sérios problemas de registros (seja no prontuário eletrônico ou nas fichas de papel) do tipo de atendimento feito, denotando erros de registros, ou seja, consultadas agendadas foram registradas como demanda espontânea, gerando um forte viés nos dados do SISAB. Caso seja confirmado, este também seria um cenário preocupante já que o SISAB foi implantado em abril de 2013, com preenchimento obrigatório a partir de janeiro de 2016 (substituindo o antigo SIAB), portanto, teríamos quase 10 anos de uso de um sistema de informação, com problemas básicos de adaptação dos profissionais no uso correto da ferramenta, gerando perigoso viés nas informações, trazendo grave problema de interpretação da APS no Brasil, para tomada de decisão seja dos próprios profissionais ou dos gestores no planejamento das políticas de saúde.

A segunda hipótese considera que o tipo de atendimento preenchido (apesar de heterogêneo), em sua grande maioria está correto, indicando uma realidade em que boa parte dos usuários, que deveriam ter seu cuidado continuado agendado dentro de uma certa periodicidade, indo nas unidades de saúde a partir de demanda espontânea. Este cenário indica algumas possíveis interpretações sobre o processo de trabalho das equipes de APS. Possivelmente, uma parte importante das equipes não tem nenhuma modelagem de acolhimento com classificação de risco que permita escutar e avaliar esta demanda espontânea, com fluxo para agendamento de consultas de acordo com a necessidade de cada usuário. 

Além disso, mesmo com uma modelagem de acolhimento que capture esta demanda espontânea, é necessário uma agenda aberta dos profissionais médicos e enfermeiros para que as consultas de cuidado continuado sejam agendadas. Para que isso ocorra, é necessário, primeiro haver médico nas equipes (dados do Sistema Nacional de Cadastro de Estabelecimentos de Saúde – SCNES indica que em dezembro de 2022, mais de 450 municípios brasileiros não possuíam médicos atuando em unidades de saúde da APS).  

Também é fundamental uma organização da marcação das consultas dos usuários, evitando as cruéis “barreiras de acesso”, onde, por exemplo, as consultas são agendadas em apenas um dia do mês, formando uma longa fila de espera na madrugada para as pessoas tentarem concorrer às vagas existentes. Quem não conseguiu vaga no dia de marcação, terá que tentar vaga via demanda espontânea todos os dias. 

É possível também cenários diferentes com aberturas de vagas para agendamento por semana, ou quinzenais. Neste cenário, onde as vagas de agendamento são poucas, muitas unidades disponibilizam vagas de demanda espontânea todos os dias, assim boa parte dos usuários que não consegue a vaga agendada, precisa tentar acesso via demanda espontânea, ou seja, “quem conseguiu o atendimento naquele dia, ótimo, quem não, vai ter que vir no dia seguinte arriscar novamente”. Uma APS com foco e respeito nas necessidades dos usuários precisa estar organizada para que o usuário com condições crônicas saia da consulta já com a próxima agendada.

Caso esta segunda hipótese esteja mais próxima da realidade da APS brasileira, é possível que ainda tenhamos sérias barreiras de acesso dos usuários aos atendimentos médicos e de enfermagem na APS. É possível também que o processo de territorialização e projeto terapêutico singular para cada usuário com acompanhamento pela equipe e, principalmente, pelo Agentes Comunitários de Saúde a partir das visitas domiciliares esteja também com séria fragilidade, indicando a necessidade de refletir sobre o atual processo de trabalho executado na APS brasileira. 

Ou seja, não é difícil imaginar que uma parte importante dos nossos usuários (55% dos hipertensos e 63% das crianças menores de 05 anos) não consiga ter o direito garantido de uma consulta agendada com dia e hora marcada ao longo do tempo, precisando ir na madrugada disputar as senhas distribuídas em cada dia para a demanda espontânea que chega aos serviços de saúde. Neste cenário, o direito à saúde universal e integral não é garantido, com forte efeito sobre a percepção dos usuários do SUS como sinônimo de filas, atrasos e dificuldade de acesso. 

Ainda que a discussão sobre o processo de trabalho seja fundamental, a organização do cuidado continuado passa também pela ampliação do acesso dos usuários, com ampliação da cobertura da APS nas cidades e principalmente diminuição da população adscrita por equipe (para 2.000 pessoas por equipe em vez das 4.000 previstas para as cidades médias e grandes), facilitando o acompanhamento das equipes aos usuários. Este processo exige, ampliação do número de equipe, e portanto, aumentar o financiamento da APS com estabelecimento de uma carreira estatal da estratégia de saúde da família para melhorar o provimento e fixação dos profissionais, com uma melhora das condições salariais e de trabalho das unidades. A “APS do futuro” precisa se debruçar hoje sobre esta situação. 

Referências