Apresentação da Saúde em Debate v. 46, n. especial 5 convoca a pensar sobre os desafios à promoção da saúde da criança

Cebes lançou no início de dezembro a revista Saúde em Debate v. 46, n. especial 5 com o tema ‘Saúde da Criança: integração entre ensino, pesquisa, serviço e gestão’. Diante do desmonte de políticas públicas de Saúde na área da infância e da adolescência dos últimos anos, a Apresentação da publicação faz a pergunta: “Como ter a fotografia do futuro das crianças nesse contexto?“.

E ainda aponta: “Se os indicadores, referentes a esse conjunto de políticas, mostraram fortes evidências de que ocorreu um processo de inclusão social no período de 2003 a 2015, que possibilitou a erradicação da pobreza extrema, tal fato não ocorreu no período imediatamente posterior, de 2016-2022, pois o que aconteceu foi exatamente o contrário“. Acesse aqui a revista e veja a seguir a Apresentação da revista.

APRESENTAÇÃO

O Multicampi Saúde e os desafios à constituição de novas práticas de gestão do trabalho, interprofissionalidade e cuidado em saúde na Amazônia brasileira

Flávia Cristina Silveira Lemos1, Karol Veiga Cabral1, Luiz Marques Campelo2, Maria Lúcia Chaves Lima1, Nelson José de Souza Junior1, paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira1, Roseneide dos Santos Tavares1, Thereza Maria Magalhães Moreira3

  1. Universidade Federal do Pará (UFPA) – Belém (PA), Brasil.
  2. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  3. Universidade Estadual do Ceará (Uece), Fortaleza (CE), Brasil.

Somos culpados de muitos erros e faltas
porém nosso pior crime é o abandono das crianças
negando-lhes a fonte da vida Muitas das coisas de que necessitamos podem esperar.
A criança não pode
Agora é o momento em que seus ossos estão se formando
seu sangue também o está
e seus sentidos estão se desenvolvendo
A ela não podemos responder ‘amanhã’
Seu nome é hoje.

Seu nome é hoje’, de Gabriela Mistral1

A POESIA DA GANHADORA DO PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA de 1945 clama pela emergência de cuidar das crianças. Era premente em meados do século passado; é urgente hoje. Não à toa, uma das primeiras medidas anunciada pela equipe de transição do presidente eleito (em 2022) Luiz Inácio Lula da Silva foi a prioridade na recuperação dos índices de cobertura vacinal das crianças – temática fortemente negligenciada nos últimos quatro anos no Brasil.

O significado de ser criança passou por muitas transformações, como nos mostrou a pesquisa de Ariès2 ao afirmar que, até por volta do século XII, não existia a compreensão de infância como a temos atualmente. A criança era ignorada. A transformação de ‘infante’ (aquele/a que não pode falar) para sujeito social com características particulares, como concebemos hoje, é fruto de um processo histórico de demandas e lutas3.

A edição desta publicação sobre saúde infantil vem ao encontro desse processo e se torna uma voz que atende a este clamor: ‘Seu nome é hoje’, principalmente se colocarmos em evidência a saúde da criança, área que passou por muitos desafios. Desde a política de aleitamento materno da década de 1920 até o Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança (Paisc) de 1984, foram várias as estratégias de promoção da saúde da criança, especialmente aquelas voltadas para sua sobrevivência, o que tem produzido efeitos positivos, como a redução das taxas de mortalidade infantil, que caíram de 85,6 por mil nascidos vivos na década de 1980 para 13,8 em 2015; embora dados recentes (2019) demonstrem divergências entre as regiões brasileiras, reiteradamente apresentando as regiões Norte (16,6) e Nordeste (15,2) acima da média nacional4.

No entanto, mesmo diante desse bom desempenho, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer, pois a taxa de mortalidade continua alta quando comparada com a de países desenvolvidos. Se compararmos aos países integrantes dos BRICS, de 2015 a 2020, está à frente da Índia (32,0) e da África do Sul (27,2) e próximo da China (9,9), contudo, aquém da Rússia, que apresenta taxa de 5,8 por mil nascidos vivos. Nosso país apresenta uma taxa seis vezes maior quando comparado com Japão (1,7) e Finlândia (1,8)5, ambos com uma taxa de mortalidade infantil abaixo de duas crianças para cada mil novos nascimentos.

Os pesquisadores do Projeto Brasil Saúde Amanhã, uma iniciativa do Ministério da Saúde (MS), por intermédio do Departamento de Monitoramento e Avaliação do Sistema Único de Saúde (SUS), com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), prospectam cenários em saúde para a década que se inicia em 2030. Os dados apresentados, inicialmente para o grupo de causas de mortalidade de forma geral, evidenciaram que as doenças infectoparasitárias tendem a reduzir sua relevância em contraposição a Doenças Crônicas Não Transmissíveis, o que, certamente, mantidas as condições socioambientais em que se referenciaram, tem forte impacto na mortalidade de crianças de zero a 4 anos de idade. Como vimos, o surgimento do Sars-CoV-2/Covid-19 desafiou a tendência geral que estava em curso, assim como o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) na década 19806.

Como ter a fotografia do futuro das crianças nesse contexto? O que vimos, nos últimos seis anos, foi a destruição, sem precedentes, de políticas públicas para a área da infância e da adolescência a partir de iniciativas do Estado. Se os indicadores, referentes a esse conjunto de políticas, mostraram fortes evidências de que ocorreu um processo de inclusão social no período de 2003 a 2015, que possibilitou a erradicação da pobreza extrema, tal fato não ocorreu no período imediatamente posterior, de 2016-2022, pois o que aconteceu foi exatamente o contrário7.

Recentemente, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstraram que aproximadamente 33 milhões de brasileiros e brasileiras estão em situação de insegurança alimentar, ou seja, com fome. Esses dados estão em consonância com os que apontam um processo relevante de carência nutricional entre as crianças brasileiras, no qual formas graves de desnutrição voltaram a aparecer e a ser diagnosticadas no SUS, o que pode ocasionar danos irreversíveis em crianças de até 5 anos de idade. Mesmo com a alta de casos, há contrassenso: para 2023, pois o MS previu para a área de segurança alimentar e nutricional, no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), apenas R$ 25.576.805 contra os R$ 66 milhões orçados para o ano de 20228. Os cenários para o próximo período dependerão da expansão da temática às agendas e das alocações orçamentárias e financeiras no período a partir de 2023.

Entendendo a complexidade da temática, a presente edição nos convoca a pensar sobre os desafios à promoção da saúde da criança a partir dos três pilares fundamentais da universidade brasileira: ensino, pesquisa e extensão. A esse tripé, garantido pelo art. 207 da Constituição Brasileira de 19889, somam-se as experiências de profissionais e usuários(as) nos serviços abarcados pela Atenção Primária à Saúde (APS). Portanto, o objetivo foi dar visibilidade a iniciativas que tragam, em seu bojo, a integração ensino-serviço na saúde da criança, especialmente na Região Amazônica, onde há as piores taxas de diversos indicadores da saúde no Brasil, além das práticas inovadoras e interdisciplinares na atenção à saúde da criança, principalmente na atenção básica, e o planejamento, o monitoramento e a avaliação em saúde da criança, tendo a Caderneta da Criança como instrumento privilegiado.

Apesar da impossibilidade de abarcar o colossal campo da saúde da criança, as temáticas apresentadas nesta publicação estão entre as mais diversas. Desde iniciativas de inserção de estudantes de diferentes áreas da saúde nos serviços da APS, passando pela análise do preenchimento da Caderneta da Criança até a avaliação da cobertura vacinal dessa população. Outros artigos abordam o aleitamento materno e a alimentação infantil. Crianças com necessidades especiais de saúde, crianças vivendo com HIV e em contexto prisional, assim como a obesidade infantil, também são alvo de debate. O tema da violência contra crianças é tratado como problema de saúde pública, com artigos que abordam violência física e abusos sexuais notificados nos serviços.

A Covid-19 também é trazida para a discussão, especialmente para pensar as repercussões da pandemia em crianças do ensino fundamental, bem como no relato de experiência sobre a construção de um almanaque das emoções como estratégia de enfrentamento das adversidades causadas pela grave crise sanitária ainda (em novembro de 2022) vivida por todos(as) nós.

Que esta publicação, portanto, possa ser um instrumento político-acadêmico de voltar nossos olhares a essa parcela tão fundamental da população, uma vez que, como dito no poema da abertura, “muitas das coisas de que necessitamos podem esperar. A criança não pode”1.

Referências

  1. Mistral G. Seu nome é hoje. Pina MTA, tradutora. [acesso em 2022 de nov 11]. Disponível em: www. blogs.utopia.org.br/poesialatina/seu-nome-e-hoje–gabriela-mistral.
  2. Ariès P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1981.
  3. Araújo JP, Silva RMM, Collet N, et al. História da saúde da criança: conquistas, políticas e perspectivas. Rev Bras Enferm. 2014 [acesso em 2022 de nov 11]; 67(6):1000-1007. Disponível em: https://doi. org/10.1590/0034-7167.2014670620.
  4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tábua completa de mortalidade para o Brasil: Breve análise da evolução da mortalidade no Brasil, Rio de Janeiro: IBGE; 2019.
  5. Alves TF, Coelho AB. Mortalidade infantil e gênero no Brasil: uma investigação usando dados em painel. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2022 nov 11]; 26(4):1259-1264. Disponível em: https://doi. org/10.1590/1413-81232021264.04022019.
  6. Silva-Junior JB, Ramalho WM. Cenário epidemiológico do Brasil em 2033: uma prospecção sobre as pró ximas duas décadas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. (Série Saúde Amanhã Textos para Discussão n. 17). [acesso em 2022 nov 11]. Disponível em: https://www. arca.fiocruz.br/handle/icict/52036.
  7. Cifali AC, Benedito B, Martinelli C, et al. Dossiê infância e covid-19: os impactos da gestão da pandemia sobre crianças e adolescentes. São Paulo: Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA); Instituto Alana; 2022. [acesso em 2022 nov 12]. Disponível em: https://alana.org.br/wp-content/uploads/2022/03/DOSSIE-INFANCIAS-E-COVID-19.pdf.
  8. Nobre V. Agenda Mais SUS – Boletim n. 1/2022 Monitoramento do Orçamento da Saúde. Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS); UMANE. 2022 out. [acesso em 2022 nov 12]. Disponível em: https:// ieps.org.br/wp-content/uploads/2022/10/boletim-1–ieps-monitoramento-orcamento-saude-cortes.pdf.
  9. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 2016. [acesso em 2022 nov 13]. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf.