Apresentação da Saúde em Debate v. 46 n. especial 7 aborda diálogos interdisciplinares de Políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids

Cebes lança nesse final de 2023 o número especial da ‘Saúde em Debate’ com o tema Políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids: diálogos interdisciplinares. Na apresentação da publicação, as autoras Ivia Maksud, Jorginete de Jesus Damião, Mónica Franch-Gutiérrez, Fatima Rocha, Sandra Lúcia Filgueiras, Mônica Villela Gouvêa, Eduardo Melo lembram que: “Em 40 anos de epidemia de Aids, o impacto social da epidemia nas primeiras décadas foi uma pauta central para a política de Aids no País, que ficou conhecida como a resposta brasileira ao HIV/Aids’”. E no final, expandem o significado da pergunta: “O que é cuidado em HIV/Aids?”. Acesse no link a publicação e veja a seguir a apresentação da revista.

Políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids: diálogos interdisciplinares

Ivia Maksud1, Jorginete de Jesus Damião2, Mónica Franch-Gutiérrez3, Fatima Rocha4, Sandra Lúcia Filgueiras5, Mônica Villela Gouvêa6, Eduardo Melo4,6

  1. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  2. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Nutrição – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  3. Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Departamento de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia – João Pessoa (PB), Brasil.
  4. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  5. Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), Gerência de IST/ Aids – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  6. Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Saúde Coletiva (ISC) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

A PUBLICAÇÃO QUE TEMOS EM MÃOS RESULTOU do encontro de um conjunto de pesquisadores e profissionais de saúde de várias instituições de ensino e pesquisa com objetivo de conhecer, reunir e visibilizar pesquisas acadêmicas e análises de experiências sobre o cuidado em HIV/ Aids no contexto atual.

Como campo de saberes e práticas1, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em três áreas – ciências sociais e humanas em saúde, planejamento e epidemiologia –, a saúde coletiva está em permanente construção ao longo do tempo, elegendo como temas desde aspectos ligados às políticas, organização de trabalho e sistemas de saúde, até a micropolítica e a experiência das pessoas no cotidiano. Assim sendo, lado a lado à produção de dados e levantamentos sistemáticos, também os aspectos biográficos dos variados interlocutores (sejam eles os pesquisadores, os profissionais e/ou os participantes das pesquisas, em interação) têm sido relevantes para configurar e reconfigurar os olhares lançados sobre esses temas. De início, portanto, este grupo de editores, atravessado pela diversidade epistemológica e disciplinar e pelo diálogo constante, representa o encontro de muitas vozes e formações, bem como a disposição a se renovar e se desafiar, em constante atuação, tal como o próprio campo da saúde coletiva.

Como bem nos ensinou Ruben Mattos2 – a quem dedicamos este número temático – naquele que viria a ser um de seus mais conhecidos textos (‘Os sentidos da integralidade’), o enfrentamento do HIV/Aids configurou-se inicialmente como uma política desenhada para responder a necessidades de grupos específicos, integrando ações de prevenção e assistência. Como escreveu o saudoso professor, “a resposta governamental brasileira à AIDS sempre se pautou pelo respeito aos direitos dos que vivem com essa doença” e “abarcou um elenco abrangente de estratégias e intervenções”, incluindo “os diversos grupos atingidos pelo problema, respeitando suas especificidades”2(65).

Muitos anos depois de ter escrito esse texto, Ruben esteve conosco no seminário sobre o cuidado às Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) na rede de atenção à saúde, realizado no Rio de Janeiro em fevereiro de 2020, e chamou atenção para a crise que se iniciou com o afastamento da presidente Dilma Rousseff da Presidência da República do Brasil, sublinhando o fato de o Estado Social ter se tornado, no governo Temer (em diante, acrescentaríamos), “um problema de despesa”, com a Emenda Constitucional nº 95, a “EC do teto dos gastos públicos”. A partir de então, como frisou em sua fala, “gastos sociais que eram pensados sob uma perspectiva de direitos constitucionais viraram despesas em geral”. Ruben estava ali problematizando a relação entre recursos (de toda ordem), direitos e cuidados. Dessa forma, ensinava:

[…] cuidado não é produto do serviço de saúde a ser objeto de gerência. É um conjunto de práticas sociais que vão muito além dos serviços de saúde ou dos profissionais de saúde.

Como era de seu estilo, nessa que foi uma de suas últimas falas públicas sobre HIV/Aids, conclamou todos para uma luta contra os retrocessos e as ameaças de direitos, valorizando a militância e a invenção de possíveis formas de resistência apesar da desfavorável e conservadora conjuntura à época3. Logo após esse seminário, o mundo assistiu e foi engolido pela pandemia da Covid-19 – nós inclusive. Assim, em meio a tantas perdas, Ruben fez sua passagem; contudo, deixou-nos uma obra tão extensa e densa quanto sua capacidade de instigar. Sua vida segue como fonte de inspiração para várias gerações de pesquisadores, profissionais e ativistas no campo do HIV/Aids e, certamente, entre os que aqui vieram contribuir para este número.

Em 40 anos de epidemia de Aids, o impacto social da epidemia nas primeiras décadas foi uma pauta central para a política de Aids no País, que ficou conhecida como ‘a resposta brasileira ao HIV/Aids’. Hoje, vulnerabilidades ainda vivenciadas pelas PVHA, como estigma, discriminação, iniquidade e exclusão social, continuam sendo desafios, dificultando o acesso ao cuidado e comprometendo sua qualidade.

Considerar a equidade do sistema de saúde, compreender e atender às necessidades dos sujeitos e grupos sociais e construir práticas de cuidado capazes de se contrapor aos processos de vulnerabilização vivenciados exige de nós analisar as características da epidemia, as políticas e o cuidado de saúde oferecidos e os retrocessos em conquistas alcançadas na resposta à epidemia de HIV/Aids, como a ênfase na biomedicalização e o abandono da perspectiva dos direitos humanos4. Cabe inserir também no debate o impacto do acirramento das desigualdades na distribuição dos novos casos pelo mundo, as implicações do recrudescimento de conservadorismos, autoritarismos, afetos políticos mortíferos e a intensificação do neoliberalismo diante de suas próprias crises. A esse cenário, somam–se ainda os diversos impactos advindos da pandemia da Covid-19, que, nos anos de 2020 e 2021, fizeram-se sentir em todas as áreas envolvendo o cuidado em HIV/Aids, desde a diminuição da procura por testes diagnósticos até o espaçamento maior das consultas e a dificuldade de acesso ao atendimento por parte das PVHA. Embora sejam problemas que atravessam todo o País, as singularidades de cada contexto regional e local adquirem relevância também na maneira como a epidemia de Aids ganha forma e é enfrentada nos diversos territórios.

Foi visando refletir de modo mais aprofundado as complexidades do contexto atual que propusemos o presente número temático, que tem como mote principal a reflexão e a divulgação de estudos sobre políticas e práticas de cuidado em uma perspectiva interdisciplinar. No entanto, assim como integralidade, o cuidado também é um termo polissêmico5, e configura-se como objeto de atenção não apenas da saúde coletiva, mas de diversas outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a enfermagem, a filosofia e as ciências sociais6.

Ao falarmos de cuidado, tanto podemos lançar um olhar para os sistemas e serviços de saúde, observando o modo como ocorrem as relações entre os vários sujeitos na prática da atenção em saúde (gestores, profissionais, usuários) em seus diversos níveis, como podemos incluir as redes de apoio e a organização cotidiana do cuidado no interior de famílias, vizinhanças, comunidades e movimentos. Em matéria de HIV/Aids, falar de cuidado implica levar em consideração o registro histórico, a importância da solidariedade e do acolhimento no seio das comunidades mais afetadas no começo da pandemia, e o momento atual em que a cronicidade impõe novos desafios para a gestão individual e coletiva da infecção, ao passo que as mudanças no terreno da prevenção abrem possibilidades e desafios diferenciados para os diversos grupos sociais. É falar, também, da importância do trabalho oculto e de sua dimensão de gênero, dos afetos e das moralidades envolvidos nas relações de cuidado, assim como das suas possibilidades emancipatórias7. Partindo dessa aposta interdisciplinar – e, também, interseccional, intergeracional e intersetorial –, pensamos em um conjunto de perguntas que esperávamos serem tratadas com a publicação deste número:

O que é cuidado em HIV/Aids? Em que espaços se produz cuidado? Que atores formam parte desse construto? Como os cuidados em HIV/Aids têm sido produzidos em diferentes contextos brasileiros? Como se relacionam ao acesso das pessoas às redes e aos serviços de saúde? Que marcadores sociais e eixos de análise são importantes em uma análise sobre o cuidado em HIV/Aids? (Gênero? Identidade e orientação sexual? Classe? Cor/raça/ etnia? Religião? Idade? Corpo? Sexualidade? Tecnologias? Gestão? Processos de trabalho? Outros?). Que/como políticas ensejam o cuidado em HIV/Aids? Como as experiências de pessoas/sujeitos/indivíduos/usuários/pacientes se articulam nessas tramas?

Sobre o número temático

O conjunto de artigos que ora apresentamos é representativo da diversidade de olhares e abordagens sobre cuidado em HIV/Aids no campo da saúde coletiva e a partir de diversas inserções – academia, gestão e movimento social.

Os dois primeiros textos da seção Artigos Originais deste número temático discutem a descentralização dos cuidados em HIV/Aids. ‘A interface entre atenção primária e especializada em cenário de descentralização de cuidados em HIV/Aids’, de Fatima Rocha, Eduardo Melo, Rafael Agostini, Ana Carolina Maia e Ivia Maksud, discute a interface entre Atenção Primária à Saúde (APS) e atenção especializada. Os autores mostram que ela tem se dado mais em uma lógica binária e de isolamento que em uma perspectiva de interação e gestão (compartilhada) do cuidado, que seria esperada em uma conformação de rede de atenção. Apesar dos potenciais ganhos de acesso e ‘racionalização’ do uso do especialista (infectologista), os pesquisadores indicam a necessidade de fortalecer processos e mecanismos de comunicação e interação entre profissionais de diferentes tipos de serviços, além de dispositivos de coordenação dos cuidados, como apoio matricial e prontuário eletrônico integrado em rede. Em seguida, em uma perspectiva mais avaliativa, Bernardo Lago Alves, Regina Ferro do Lago e Elyne Montenegro Engstrom avaliam o grau de implantação de uma ampla, recente e heterogênea experiência de cuidado a PVHA na APS, contemplando aspectos estruturais, técnico-assistenciais e organizacionais, no texto ‘O cuidado às Pessoas Vivendo com HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro: uma avaliação de implantação’.

Pensando a temática do cuidado com ênfase nas populações vulneráveis, o artigo ‘Aids e prevenção: um olhar retrospectivo sobre projetos sociais com jovens no Rio de Janeiro’, de Vanessa do Nascimento Fonseca, Marcos Nascimento e Simone Monteiro, configura-se como estudo socioantropológico de dois projetos desenvolvidos na favela da Maré na década de 2000. O resgate da memória das intervenções sociais dá destaque às experiências de abordagem sociocultural sobre sexualidade desenvolvidas e que contrastam com os retrocessos evidenciados nas políticas de direitos sexuais e reprodutivos das duas últimas décadas. O caráter emancipatório presente no compartilhamento dessas vivências traz vigor e aprendizagens para respondermos aos desafios presentes no campo das vulnerabilidades.

De forma aproximada, o artigo ‘Sexualidade, sociabilidade, trabalho e prevenção do HIV entre populações vulneráveis na pandemia da Covid-19’, de autoria de Carla Rocha Pereira, Marly Marques da Cruz e Vanda Lúcia Costa, aborda o impacto da Covid-19 no acesso de Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e mulheres trans/travestis a tecnologias de prevenção do HIV em Curitiba/PR. Os dados discutidos no artigo provêm de pesquisa qualitativa com entrevistas semiestruturadas virtuais e, ainda, abordam questões relativas a práticas sexuais, de sociabilidade e de trabalho no contexto pandêmico.

O sofrimento de mulheres que vivem com HIV e o amor interior como prática revolucionária’, de Eliane Oliveira de Andrade Paquiela, Eluana Borges Leitão de Figueiredo, Marcela Pimenta Guimarães Muniz e Ana Lúcia Abrahão, discute os efeitos do estigma associado ao HIV, usando como categorias de análise a solidão de Federici e o amor interior de bell hooks. A análise das narrativas de um grupo de mulheres permite refletir sobre a necessidade do cuidado dos profissionais de saúde e considerar a escuta do sofrimento vivido por elas. Na sequência, o artigo ‘Couro no couro: homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife’, escrito por Luís Felipe Rios, Karla Galvão Adrião, Amanda Albuquerque e Amanda França Pereira, aborda as práticas sexuais e a prevenção do HIV nos circuitos de HSH da Região Metropolitana do Recife. Com metodologia quantiqualitativa, o artigo dá visibilidade para regimes de prazer dissidentes da heterossexualidade e apresenta caminhos para possíveis ações preventivas que incorporem essas práticas e seus sentidos para o grupo pesquisado. Embora a pesquisa tenha sido realizada em um período pré-prevenção combinada (em 2016 e 2017), os resultados dialogam com o contexto atual da epidemia e trazem à baila questões frequentemente ocultas nos discursos hegemônicos ligados à prevenção.

O artigo ‘Irmandade travesti é a nossa cura: solidariedade política entre travestis e mulheres trans no acesso ao cuidado em saúde e à prevenção ao HIV’, de Aureliano Lopes da Silva Júnior, Mauro Brigeiro e Simone Monteiro, discute as estratégias para o acesso aos serviços públicos de saúde e à prevenção ao HIV desenvolvidas por travestis e mulheres trans da região metropolitana do Rio de Janeiro. O artigo enfatiza as respostas geradas pelo grupo diante da violação de direitos humanos imposta e nos apresenta a agência de travestis e mulheres trans como forma de enfrentar as barreiras de acessos aos cuidados em saúde, construindo uma forte rede de solidariedade – irmandade – em que se medeia a relação com o território, os dispositivos de saúde e a vivência com o HIV/Aids.

A discussão geracional destaca-se nos textos sob diferentes enfoques. Visando contribuir para a compreensão de novas formas de ativismo em HIV/Aids que emergiram na década de 2010 no Brasil e sua relação como processos de subjetivação e construção de redes informais de cuidado, Pisci Bruja Garcia de Oliveira e Júlio Assis Simões analisam, no texto ‘Política sexual e ativismo em HIV/Aids: a experiência da Loka de Efavirenz’, como participantes dessa coletiva (no feminino) percebem, vivenciam e enfrentam os efeitos do HIV/Aids em seu cotidiano. A análise descortina o entrelaçamento do estigma com os marcadores sociais de gênero, raça e classe. Na sequência, o artigo ‘Mulheres jovens que nasceram com HIV: comunicação da soropositividade aos parceiros’ reuniu as pesquisadoras Clarissa Bohrer da Silva, Maria da Graça Corso da Motta, Renata Bellenzani, Crhis Netto de Brum e Aline Cammarano Ribeiro, as quais, a partir de análise baseada nos quadros da vulnerabilidade e dos direitos humanos, discutem a comunicação da soropositividade aos parceiros e reivindicam práticas de cuidado e apoio em contextos intersubjetivos e estruturais. Por fim, os autores do artigo ‘Percepções dos profissionais de linha de frente da saúde sobre HIV e juventude’ – Maria Izabel Sanches Costa, Gabriela Lotta, Juliana Rocha Miranda, Laura Cavalcanti Salatino, Elisabete Agrela, Maria Cristina Franceschini e Marco Akerman – objetivam compreender como profissionais da atenção especializada e primária operam com categorias de comportamento de risco e juventude em um contexto institucional de ambiguidade nos protocolos e problematizam se tais percepções estão em consonância com as políticas públicas.

As tecnologias biomédicas aparecem em dois artigos que tematizam a ‘PEP sexual’ como estratégia de cuidado, possibilitando-nos contrastar a estratégia em distintas regiões. Em ‘Se beber, não transe: interrogando os discursos na oferta da Profilaxia Pós-Exposição Sexual (PEP)’, Willian Nathanael Cartelli de Paula e Gustavo Zambenedetti problematizam as relações de poder a partir dos discursos e conhecimentos dos profissionais de saúde que atuam com a efetivação da PEP sexual em um município de médio porte da região central do Paraná, concluindo a importância de qualificar o acesso à PEP sexual e afirmá-la como uma prática de liberdade. Sandra Filgueiras, por sua vez, em ‘Profilaxia Pós-Exposição sexual no Sistema Único de Saúde: cuidados possíveis na prevenção do HIV’, analisa, à luz da integralidade, os modos de aplicação da PEP sexual em um serviço público de saúde, refletindo sobre desafios a serem enfrentados, para que a busca pela profilaxia seja um dispositivo de cuidado, que garanta o acesso às tecnologias preventivas, a partir de escolhas esclarecidas, de acordo com as necessidades das pessoas em diferentes momentos e contextos de suas vidas.

Finalizando a seção de artigos, o cuidado às pessoas com HIV/Aids privadas de liberdade é destaque do texto ‘Construção e validação de instrumento para avaliação do cuidado a prisioneiros que vivem com HIV/Aids’, de Fernando Henrique Apolinario, Silvia Justina Papini e Wilza Carla Spiri. Trata-se de um estudo de desenvolvimento metodológico com objetivo de construir e validar indicadores para o cuidado à saúde, com base em cinco dimensões: Estrutura Física; Recursos Humanos; Organização do Processo de Trabalho; Prontuários de Saúde; e Adesão ao Tratamento.

O número temático também é composto por cinco ensaios que dialogam de forma contundente com (variados) conceitos de cuidado. Em ‘Vulnerabilidade, Cuidado e integralidade: reconstruções conceituais e desafios atuais para as políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids’, José Ricardo Ayres analisa os desafios da resposta à Aids diante do atual cenário sociopolítico, mapeando lógicas e tecnologias em disputa (inclusive no campo da prevenção), bem como reconstruções conceituais necessárias ao novo momento. De forma convergente, ‘Refazendo a prevenção ao HIV na 5ª década da epidemia: lições da história social da Aids’, escrito por Gabriela Junqueira Calazans, Richard Parker e Veriano Terto Jr., analisa os desafios e respostas diante da Aids nos seus 40 anos. A partir da história no campo da prevenção, os autores sugerem prioridades para a prevenção na 5ª década vindoura, apresentam princípios ético-políticos que fundamentaram respostas bem-sucedidas à Aids no Brasil, e apontam caminhos para, como escreveram, ‘reimaginar a prevenção’. Por sua vez, enfocando antigos desafios, ‘Gestão biopolítica da Aids: a homossexualidade como fonte de periculosidade social’, Luiz Barp, Myriam Mitjavila e Diego Diz Ferreira reconstroem a homossexualidade à luz da noção de biopolítica (precisamente da gestão da sexualidade), problematizando a representação de perigo (ligada às práticas sexuais) que lhe é atribuída bem como possíveis atualizações em dispositivos de cuidado atuais.

A perspectiva biográfica pode ser vista com força nos ensaios finais. ‘Memória e experiência com crianças e jovens vivendo com HIV/Aids: um ensaio autoetnográfico’, de autoria de Mariana de Queiroz Rocha Darmont e Martha Cistina Nunes Moreira, propõe a autoetnografia como método no diálogo com a antropologia das emoções, permitindo às autoras revisitar o campo do cuidado, relações e prática em perspectiva crítica e reflexiva. Por sua vez, ‘Um ensaio sobre a cronicidade do viver com HIV/Aids na infância, adolescência e juventude’ recolhe reflexões decorrentes de trajetórias de duas décadas de pesquisa e atuação no campo do HIV/Aids de três autores/as: Claudia Cunha, Marcelo Maciel e Martha Cistina Nunes Moreira. Partindo das noções de experiência, memória e perturbação, o ensaio discorre sobre a cronicidade do viver com HIV/Aids para crianças, adolescentes e jovens, com atenção para as vulnerabilidades e as limitações nas circulações e nos afetos da vida cotidiana.

O número temático traz ainda um Relato de Experiência escrito por Daniele Souza, Carla Pereira e Juan Raxach, que apresentam o livro ‘E se fosse com você? Histórias vividas de estigma e discriminação em 40 anos de HIV/AIDS’, publicação da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) que reúne relatos emocionados, em forma de conto, de dez sujeitos afetados diretamente pelo HIV/Aids. Seu intuito é estimular a solidariedade com esse grupo, abordando os desafios do julgamento moral, transfobia, violências LGBTQIA+, capacitismo, entre outros, mas também trazendo históricas de reinvenção da própria vida.

Finalizamos o número temático com a entrevista ‘Políticas de HIV/Aids, ativismo e antropologia: conversando com Richard Parker’, da qual participaram, além do entrevistado, Mónica Franch, Luziana Silva, Geissy Reis, Marcos Carvalho e Vagner Almeida. Richard Parker é antropólogo e ativista que se configura como um dos atores centrais da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids. Na entrevista, o entrevistado fala sobre sua trajetória como antropólogo e sua aproximação com a temática da Aids. Em paralelo, faz uma reflexão sobre os 40 anos da epidemia, dando ênfase às conquistas e aos desafios no seu enfrentamento e denunciando o acelerado desmonte sofrido pelas políticas e serviços voltados ao HIV e à Aids nos últimos anos. A reflexão sobre os aprendizados nesse caminho nos inspira e convoca à produção de novas formas de resistir.

Este número temático celebra a manutenção da pauta dos estudos e intervenções sobre o tema HIV/Aids em uma conjuntura que lhe foi muito desfavorável. Esperamos que esta publicação contribua como mais um instrumento inspirador para as práticas de cuidado às PVHA, bem como para as políticas que as suportam na perspectiva de equidade, promoção de saúde e defesa da vida, em um cenário de retomada de uma vida mais democrática perante os retrocessos e a violação dos últimos tempos. É oportuno registrar que iniciamos a produção deste número temático em um momento de ameaça à democracia e à ciência, e que este projeto, com todos os desdobramentos que teve, incluindo a produção desta coletânea, alimentou-nos e contribuiu para as nossas resistências cotidianas por muitas vezes. Finalizamos o processo após as eleições presidenciais que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República, e depositamos nesta atual conjuntura esperança e expectativas de mais investimentos na área da saúde, na retomada da participação da sociedade civil organizada, nos recursos para as universidades, na produção de conhecimento movida à reconstrução e à retomada do projeto de reforma sanitária. Publicá-lo na revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) é, para nós, motivo de imensa alegria.

Referências

  1. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas?. Rev Saúde Pública. 1998; 32(4):299-316.
  2. Mattos RA. Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS; Abrasco; 2006. 184 p.
  3. Maksud I, coordenadora. Debate sobre os desafios do cuidado nas redes de atenção à saúde no município do Rio de Janeiro. In: Anais do Seminário Coro de Vozes numa teia de significados: sobre o cuidado às pessoas vivendo com HIV/AIDS na rede de atenção à saúde; 2020 fev 11-12; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.
  4. Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface (Botucatu). 2016; 20(57):293-304.
  5. Camargo Junior K. Epistemologia numa hora dessas? (Os limites do cuidado). In: Pinheiro RM, Araujo R, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC; UERJ/IMS; ABRASCO; 2006.
  6. Longhi M, Mon AD. Dossiê “os cuidados” em sua dimensão prática e afetiva. Apresentação. Áltera. 2020; 3(11):11-19.
  7. Barros N. Cuidado emancipador. Saúde Soc. 2021; 30(1).