Aquecimento pode tirar até 2% do PIB, diz cientista

Por Daniela Chiaretti /Valor Econômico

 

O aquecimento global pode causar perdas entre 0,2% e 2% do PIB dos países se as temperaturas subirem perto de 2°C. O impacto dependerá do padrão de desenvolvimento de cada nação, da concentração de renda, do grau de pobreza, da exposição ao risco das populações e de muitos outros fatores ligados à capacidade de adaptação aos fenômenos climáticos. Essa é uma das conclusões do relatório mais importante sobre impactos, adaptação e vulnerabilidades à mudança do clima lançado ontem, em Yokohama, no Japão, pelo IPCC, o braço científico das Nações Unidas.

“Todos serão afetados. Já estão sendo”, diz o físico e meteorologista José Marengo, um dos 1.729 autores do relatório e o único representante do Brasil na conclusão do sumário para formadores de políticas, divulgado ontem. “O assistencialismo não ajuda a adaptar-se ao clima futuro. Ao contrário, cria dependência”, diz, sobre o preparo que países têm que fazer para lidar com o clima em mutação.

Haverá impacto nos mercados devido à falta de produtos. “A mudança do clima pode ser perigosa para culturas da cesta básica mundial, como batata, milho e trigo. Essas culturas estão em risco”, diz. A boa notícia é que, com adaptação, a agricultura pode ter ganhos se trabalhar com espécies mais resistentes à seca ou escassez hídrica.

O estoque de peixes pode se reduzir drasticamente. “Toda a cadeia alimentar dos mares pode se quebrar. O sistema dos oceanos é frágil”, diz. Ameaça seriíssima pode vir da liberação do gás metano que está congelado na tundra, o bioma das regiões polares. “Metano é um gás-estufa gravíssimo. Sua liberação pode neutralizar qualquer medida de mitigação”, diz Marengo. “Seria uma catástrofe.”

O estudo aponta o risco de mais conflitos causados pela falta de comida e água. “A mudança climática não cria o problema social, mas agrava o que já existe”, explica Marengo. Haverá (e já estão ocorrendo) impactos na saúde, com infartos e doenças respiratórias mais recorrentes. Perdas de pessoas queridas e de bens materiais podem provocar mais casos de depressão e transtornos psíquicos.

“Os conflitos podem piorar. A mudança climática não cria o problema social, mas agrava o que já existe”

O relatório indica impactos por regiões do mundo. O planejamento no Brasil tem que focar a segurança hídrica, alimentar e energética, diz Marengo. Veja a seguir trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor:

Valor: Valor: O ser humano consegue se adaptar às mudanças climáticas?

José A. Marengo: O ser humano e os ecossistemas podem suportar certos extremos. Se tivermos uma onda de calor e chegarmos a 37 ou 38 graus, nos adaptamos: consumimos muito líquido, ligamos o ar-condicionado. Mas existe um limite. O problema da mudança climática é que ela pode ser mais rápida, forte e agressiva que a nossa capacidade natural de adaptação.

Valor: Por que as populações mais carentes são mais afetadas?

Marengo: Veja, a seca no Nordeste afeta mais a agricultura familiar porque a agricultura industrial usa técnicas de irrigação com muito investimento e a familiar, não. Os grupos mais vulneráveis são geralmente os mais marginalizados e pobres, mulheres e crianças. Em muitos lugares a mulher fica em casa, não sai, e não percebe que há uma enchente acontecendo lá fora. São as que mais morrem nos desastres naturais.

Valor: Alguns países sofrerão mais do que outros?

Marengo: Países em latitudes mais baixas, como os tropicais, que geralmente são mais pobres, são mais vulneráveis.

Valor: Cidades mais ricas, como São Paulo, também são afetadas?

Marengo: Todos são afetados, ricos e pobres. São Paulo é rica, mas tem vulnerabilidade de água. O suprimento de energia está associado ao nível dos reservatórios, se falta chuva… Cruze-se isso com fatores não climáticos: perfil de consumo de energia da população, sistemas pouco eficientes, aumento da população e da demanda. Neste verão as pessoas usaram mais ar-condicionado e o sistema energético não suporta. A oferta energética é quase a mesma de 2001 e a temperatura está aumentando. Se faltar energia não haverá ar-condicionado que funcione.

Valor: Vocês sugerem uma cesta energética diferente?

Marengo: Isso seria entrar nas minúcias das políticas de cada país e o IPCC não diz isso. Falamos de fatores climáticos e dos fatores não climáticos que agravam a cena.

Valor: O que isso significa?

Marengo: Por exemplo: ocorre uma chuva intensa sobre um solo deteriorado e com a vegetação removida. É a receita ideal para deslizamentos de terra. E pode ter uma pequena comunidade morando na área de risco. Mas, se o governo sabe que aquela área é vulnerável e proíbe a ocupação, o fenômeno climático acontece, mas não teríamos impactos. Existem fatores que nada tem a ver com clima, mas a mudança do clima piora o quadro. Quando acontecem juntos, podem ser uma mistura letal.

Valor: Como a agricultura é afetada? Quais culturas sofrem mais?

Marengo: Analisamos as consequências do aumento da temperatura e mudança no regime de chuvas, por exemplo. A mudança do clima pode ser perigosa para culturas da cesta básica mundial, como batata, milho e trigo. Essas culturas estão em risco. Se não houver adaptação, pode-se chegar à perda de 25% na produção e haver fome em várias regiões. Mas, quando há adaptação, podemos ter melhora e até aumento na produção.

Valor: Por quê?

Marengo: Porque as variedades já estariam adaptadas à seca ou falta de água. Mas isso vai depender se a adaptação funcionará ou não. Variedades geneticamente melhoradas, como a Embrapa faz, acontecem depois de muitos anos de pesquisa. Não é algo que se faz de um dia para o outro.

Valor: O estudo fala em impacto nos mercados.

Marengo: Se afetar a disponibilidade de um produto, o preço aumenta, há especulação e cria-se um problema social. A Índia teve problemas de seca, o açúcar faltou, o Brasil exportou muito e se descuidou do mercado interno. O preço do álcool subiu. A mudança do clima tem efeito nos mercados.

Valor: Pode provocar conflitos mais violentos, mais tensão?

Marengo: A mudança climática não cria o problema social, mas agrava o que já existe. A seca que acontece em muitas partes da África faz com que os africanos migrem para a Europa. Muitos morrem no caminho e quando chegam não conseguem emprego. Isso também ocorre no Nordeste do Brasil, com as pessoas deixando o sertão e vindo para cidades já saturadas. A falta de água e de comida pode gerar conflitos graves.

Valor: Qual o impacto na saúde?

Marengo: Os impactos das altas temperaturas são maiores que das baixas. Os invernos podem ser mais intensos, mas geralmente acontecem em países desenvolvidos e mais preparados. Ondas de calor são fenômenos que acontecem mais em latitudes tropicais, em países em desenvolvimento. Podem afetar a saúde com o aumento de infartos e doenças respiratórias. Já há evidências também nas doenças mentais.

Valor: Como?

Marengo: Uma pesquisadora da Fiocruz, Sandra Hacon, estudou a população depois das enchentes de Blumenau, no vale do Itajaí, em 2008. Meses depois do desastre ela encontrou um aumento nos casos de depressão associados a perdas de pessoas queridas, perdas materiais, bichos de estimação. São os impactos invisíveis. São claros em grupos de idosos ou crianças.

Valor: A mudança climática entrou no planejamento do Brasil?

Marengo: Não só aqui. Começa a entrar nas políticas e nos planos de desenvolvimento mundiais. Os ministérios do Meio ambiente e da Ciência e Tecnologia estão trabalhando em um plano nacional de adaptação. Para isso, antes tem de haver estudos sobre vulnerabilidades, é preciso identificar os setores mais impactados. No Brasil é preciso pensar na segurança hídrica, alimentar e energética. São Paulo tem problema de segurança energética, o Nordeste, hídrica, o Amazonas, as duas. O Brasil todo tem problema de segurança alimentar. Tem que identificar e depois fazer a política de adaptação.

Valor: O relatório lista quais os motivos de preocupação dos governos. É o resultado de uma enquete?

Marengo: Colocamos o que pensam as autoridades baseados em consultas com eles e nas evidências. São oito riscos de preocupação com fatos que já estão sendo observados. Por exemplo, os prejuízos nas áreas costeiras com o nível do mar subindo, extremos de temperaturas e secas nas áreas urbanas e rurais, enchentes em áreas de vales, como acontece em São Paulo. Perdas nas áreas rurais, escassez de água para beber e irrigar, temor que eventos extremos possam destruir a infraestrutura.

Valor: Isso já ocorreu?

Marengo: Sim. Na Bolívia um gasoduto foi destruído por um deslizamento de terra. Outros fatores de preocupação são perdas nos ecossistemas marinhos e problemas de saúde.

Valor: Haverá novas doenças?

Marengo: Não. As que já existem podem se espalhar para áreas onde não estão. Doenças que se pensava superadas podem reaparecer, como a tuberculose e o sarampo. Há aqui uma combinação entre fatores climáticos e políticas de saúde. Se há campanhas de vacinação, água tratada, saneamento, o efeito do clima pode ser minimizado.

Valor: Quais os riscos nas áreas costeiras e ecossistemas marinhos?

Marengo: Espécies mais suscetíveis podem sumir. A pesca pode diminuir muito e se houver excessiva exploração, o problema pode ficar muito grave. E tem a acidificação dos oceanos, que afeta corais e o organismo dos peixes. Toda a cadeia alimentar pode se quebrar. O sistema dos oceanos é super frágil.

Valor: A mitigação de gases-estufa pode reduzir riscos no final do século 21? Como?

Marengo: Reduzindo o aquecimento, os impactos diminuiriam. A forma de fazer isso é via mitigação, porque são gases associados à atividade humana.

Valor: No quesito água, há risco também com os lençóis freáticos, não só com fontes superficiais?

Marengo: Lençóis freáticos são alimentados com água de chuva. Se a chuva parar não haverá nada que os alimente.

 

“Culturas da cesta básica mundial, como batata, milho e trigo, estão em risco. Pode haver perda de 25% na produção”

 

Valor: O que se diz sobre a Amazônia e a tundra boreal?

Marengo: Há alguns anos modelos mostraram que a partir de 2050 a floresta amazônica poderia sofrer uma savanização. Ela poderia parar de funcionar como um sumidouro de carbono e agir como uma fonte, mas sobre isso as incertezas são grandes. A floresta pode ser afetada, mas chegar a nível de savana parece pouco provável, embora não impossível. No caso da tundra trata-se da liberação do solo congelado, o permafrost, e isso pode significar a liberação de um volume gigantesco de metano. É um gás-estufa gravíssimo. Esse fato pode neutralizar qualquer medida de mitigação. Seria uma catástrofe. É o que se chama de mudança abrupta e irreversível. Há estudos sobre isso, mas não há certeza absoluta.

Valor: E as perdas na economia?

Marengo: O cálculo é: com um aumento de temperatura de 2°C, pode-se chegar a uma perda entre 0,2% e 2% do PIB dos países. Depende do padrão de desenvolvimento do país, do nível de riqueza, da sua distribuição de pobreza etc.

Valor: Qual o efeito na indústria de seguros?

Marengo: Em alguns países, as pessoas asseguram suas propriedades contra furacões e desastres. Mas as companhias de seguro costumam ser relutantes em trabalhar com pequenos produtores ou famílias pobres, porque é um risco alto. Mas no mundo todo o setor começa a trabalhar assim.

Valor: Há bala de prata para a adaptação? O modelo de um país pode ser exportado para outro?

Marengo: A adaptação muda geograficamente e depende do contexto. Não existe uma única forma de enfrentar o problema. Pode-se desenvolver uma estratégia para um país, mas não significa que funcione em outro. Os planos têm que integrar os diferentes níveis de governo, todos falando a mesma língua. Exige integração também com a população.

Valor: O que é má adaptação?

Marengo: É uma forma de adaptação que não funciona e provoca uma situação pior que antes. Acontece uma seca e os governos começam a mandar cestas básicas, por exemplo. Acaba a seca, acaba a cesta básica. Mas se no futuro existe probabilidade de seca permanente não vai ter cesta básica eterna. O ideal é que a população se adapte a esse clima futuro. O assistencialismo não ajuda a adaptação, só cria dependência.

Valor: Quando adaptar pode ser mais fácil e barato?

Marengo: Se a mitigação for intensa. Mitigação é reduzir a emissão de gases-estufa e assim reduzir a intensidade do aquecimento. Se o aquecimento for menor, a adaptação será mais fácil. Se não houver corte nas emissões e o aquecimento disparar, não haverá adaptação que funcione. Mitigar significa mudança no paradigma cultural e social, na estrutura de governo, no padrão de uso de energia. Tem que ser uma mudança radical.

Valor: Vocês reforçam a cifra que está na mesa das negociações internacionais: dizem que serão necessários US$ 70 a US$ 100 bilhões ao ano de investimento nos países em desenvolvimento entre 2010 e 2050 para a adaptação.

Marengo: Esse é o custo da adaptação. O problema é quem paga a conta. EUA e Europa dizem que Brasil, Índia e China também são poluidores e são mais desenvolvidos do que os não desenvolvidos. Que têm um grau de participação e também deveriam pagar. Mas aí vem a questão da responsabilidade histórica: Reino Unido e EUA poluem há mais tempo, os emergentes estão poluindo nos últimos anos. Há todos esses entraves.

Valor: Cientistas sugerem que se coma menos carne. Por quê?

Marengo: O gado é forte produtor de metano, que é um gás-estufa mais perigoso que o CO2. Mas é algo radical. Obviamente a carne bovina é fonte de proteínas que não pode ser rejeitada. Agora, a redução do volume de cabeças de gado seria algo que poderia ajudar bastante como medida de mitigação.