Argentina: para que o aborto seja legal em 2020

artigo escrito por Beatriz Giri*, em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO publicado originalmente em Folha de Pernambuco

“Quando em 2018 o Senado argentino rejeitou, por uma margem estreita, o projeto de descriminalização e legalização do aborto, a Argentina perdeu uma oportunidade histórica de alcançar avanços significativos na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos”. Assim começa o relatório apresentado, no final de agosto de 2020, por Human Rights Watch. Nele, exorta o presidente Alberto Fernández a cumprir seu compromisso de apresentar o projeto de legalização ao Congresso, e impulsionar sua tramitação.

“O rechaço a este projeto de lei deixou mulheres, meninas e grávidas  argentinas, especialmente aquelas de baixa renda e as que vivem em áreas rurais, com acesso limitado ao aborto, o que afeta seriamente suas vidas e saúde”, segue o relatório da organização internacional de direitos humanos, com um título muito claro: “É hora de saldar uma dívida: o custo humano das barreiras ao aborto legal na Argentina”.

A obra, uma investigação exaustiva de quase 100 páginas, oferece um marco histórico, jurídico e social da situação do aborto no país. Explica o alcance do Código Penal em vigor, que só autoriza o aborto em caso de estupro ou de risco à saúde da mãe, traz estatísticas sobre intervenções, internações hospitalares, óbitos, fala sobre processos e encarceramento de mulheres que abortaram.

O relatório é baseado em múltiplas entrevistas e dados fornecidos por especialistas: “abortos inseguros podem causar problemas de saúde a curto e longo prazo, e inclusive a morte. Em 2018, o Ministério da Saúde da Nação relatou 35 mortes causadas por abortos, as quais representam 13% das mortes maternas. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas. De acordo com estatísticas oficiais, 39.025 mulheres e meninas foram internadas em hospitais por complicações de saúde relacionadas a abortos em 2016. 16% tinham entre 10 e 19 anos”.

Também detalha o projeto da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Gratuito e Seguro, apresentado no Congresso Nacional, e o que foi o debate que se deu na sociedade. Mobilizou milhões de mulheres no que se chamou de “maré verde” pela já conhecida cor do lenço que as identifica – que foi incorporado por movimentos feministas de diversos países – e que estava prestes a conseguir a aprovação da lei da interrupção voluntária da gravidez em 2018.

Em 2019 a Campanha apresentou novamente o seu projeto, pela oitava vez desde 2005, quando foi formada a agrupação. O projeto de lei visa garantir o acesso ao aborto gratuito (independente da causa) até a 14ª semana de gestação. Tem dois objetivos principais. Por um lado, deixar de criminalizar as mulheres que desejam fazer um aborto e que agora são forçadas a arriscar sua saúde com métodos e instalações clandestinas. Por outro lado, que a intervenção possa ser realizada com segurança dentro do sistema público de saúde. Isto asseguraria as condições de higiene e o acesso universal ao aborto. 

Na campanha eleitoral de 2019, Alberto Fernández, candidato da Frente de Todos, manifestou-se a favor da aprovação do projeto. Já no comando da presidência, em seu discurso de abertura do período ordinário do Congresso Nacional, em 1º de março de 2020, o presidente eleito anunciou que enviaria um projeto de lei para legalizar o aborto. “Um estado que cuida deve acompanhar todas as mulheres”, disse. “A existência de ameaça penal condenou as mulheres a abortos que colocaram em risco sua saúde”, definiu. “Todo mundo sabe do que estou falando. O aborto acontece, é um fato. Um Estado presente deve proteger aos cidadãos em geral e às mulheres em particular. Dentro de 10 dias apresentarei um projeto de interrupção legal da gravidez”, se comprometeu.

Em 3 de março foi confirmado o primeiro caso de coronavírus na Argentina e a agenda política mudou completamente. No dia 20 de março teve início o Isolamento Social Preventivo e Obrigatório, que suspendeu todas as atividades não essenciais para evitar a disseminação do vírus, e o Congresso Nacional também deixou de se reunir. Posteriormente, foi acordada uma modalidade de funcionamento em parte presencial e em parte virtual, o que permitiu avançar em algumas leis de emergência para atender às necessidades da pandemia e seus efeitos econômicos e sociais. No entanto, a oposição macrista cria obstáculos para iniciativas com as quais não concorda. Por isso, o governo, embora tenha reiterado a intenção de apresentar o projeto de lei para legalizar o aborto – cujo texto ainda não se conhece, mas que se entende compatível com o apresentado pela Campanha – considera que se deve aguardar uma normalização da situação para garantir as melhores condições para a sua tramitação  e aprovação.

As referencias da Campanha insistem perante aos representantes governamentais que acreditam que o debate tem que ser em 2020 porque o próximo ano é ano eleitoral, e em ano eleitoral é muito difícil ter força para aprovar o projeto.

“Eles são governo, nós somos movimento. Vamos continuar a manter o direito ao aborto na agenda pública e política, insistindo. Porquê todos os dias morrem mulheres ou há “meninas mães”, afirmou Marta Alanis, integrante da Campanha e da rede Católicas pelo Direito de Decidir. E ainda reforçou que “o aborto não está separado da pandemia”. De fato, o acesso a métodos anticoncepcionais e a interrupção legal da gravidez é considerado um serviço essencial. Apontou para que se trabalhe coordenadamente com o programa de Saúde Sexual e Reprodutiva para garantir que não haja obstruções a esses direitos.

As ativistas da Campanha não deixaram de trabalhar incansavelmente em todas as províncias e a nível regional e nacional, mantendo as suas reivindicações em vigor, defendendo o cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos vigentes, realizando atividades permanentes de comunicação, divulgação e formação, articulando-se com todos os tipos de organizações da sociedade, universidades, sindicatos, artistas, etc.. 

A título de exemplo, às terças-feiras, que haviam sido estabelecidas como o dia em que se manifestavam, todas as semanas, perante o Congresso Nacional – reuniões que não são mais possíveis devido às restrições às atividades públicas decorrentes da pandemia – são realizadas desde há mais de três meses: conversatórios, atividades artísticas e de difusão através sas redes sociais.

Para o dia 28 de setembro, dia em que será realizado o Grito Global pelo Direito ao Aborto em todo o mundo, a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto na Argentina realizará diversas ações para enfatizar a urgência de sancionar a Lei do Aborto Legal durante este ano de 2020. Entre elas estarão comunicações para legisladores e formadores de decisão política, campanha nas mídias, disseminação do apoio de referencias de outros países, colocação de cartazes nas avenidas centrais da cidade de Buenos Aires e um virtual “pañuelazo” pelas redes social.

*Beatriz Giri é feminista argentina, socióloga, especialista em estudos de gênero. 

O documento citado pode ser lido em: https://www.hrw.org/es/report/2020/08/31/es-hora-de-saldar-una-deuda/el-costo-humano-de-las-barreras-al-aborto-legal-en