As pandemias na história e o desafio da Covid-19: Contemporaneidade
Sede de Organização Mundial de Saúde (OMS)

Maria Eneida de Almeida, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva, IMS-UERJ. Docente do curso de medicina na Universidade Federal da Fronteira Sul – campus Chapecó-SC. Coordenadora do CEBES – Núcleo Chapecó-SC. Membro do Conselho Consultivo da Diretoria do CEBES Nacional. Contato: maria.almeida@uffs.edu.br

Matheus Ribeiro Bizuti, Acadêmico de Medicina, UFFS – Campus Chapecó-SC. Gestão de Comunicação do CEBES – Núcleo Chapecó-SC. Membro do Conselho Fiscal da Diretoria do CEBES Nacional. Contato: matheus_ribeiro.bizuti@hotmail.com

Acesse aqui o texto introdutório e o 1o capítulo (sobre Antiguidade e Idade Média) e o 2o capítulo (Idade Moderna) dessa série de textos do núcleo Chapecó do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde.

Com o movimento internacional da reforma sanitária começaram a ser definidas posições mais concretas para a operacionalização de medidas fronteiriças, com mecanismos legais e normas específicas que atendessem melhor as necessidades sanitárias da época, e de estruturas institucionais internacionais para proteger as populações nacionais das doenças provenientes de outros Estados. Nesse sentido, segundo Dogson et all (2002), passou a existir uma Governança de Saúde Internacional como um movimento regulatório. Sobre governança em saúde entende-se,

(…) ações e significados adaptados pela sociedade para organizar a promoção e a proteção da saúde de sua população. As regras que definem tal organização e seu funcionamento podem ser formais ou informais, para prescrever e proscrever comportamentos. O mecanismo da governança, desta forma, pode estar situado local/sub-nacionalmente, nacionalmente, internacionalmente e em nível global. A governança da Saúde pode ser pública, privada ou uma combinação de ambas. (Dogson, et all, 2002, p. 6).

Esta governança era a tônica dos formuladores de políticas internacionais da época, pois como diz Stefan Ujvari,

A história das três pandemias da peste traça um paralelo com a evolução e desenvolvimento do transporte e comércio da humanidade, que caminhou para a ‘globalização’. Na pandemia do Império Romano, com o Ocidente já esfacelado pelas invasões bárbaras, o transporte marítimo levou a epidemia apenas ao litoral do Mediterrâneo, e a doença não progrediu para o interior pela falta de vias ativas de transporte terrestre. Já no século XIV, com estradas europeias em pleno uso do comércio medieval, a epidemia alastrou-se, por via marítima e terrestre, por todo o continente, em apenas dois anos. O século XX começava dispondo de navios a vapor que transportavam a peste com maior velocidade e de uma rede comercial que não mais se restringia ao Mediterrâneo, mas se estendia a colônias distantes dos países industrializados europeus, o que ocasionou a disseminação da doença pelos continentes. Em pouco tempo, nos anos 1899 e 1900, a peste originada na China atingiu cidades nos Estados Unidos, Europa, América do Sul, África e Austrália”. (2003, p. 208).

Em fins do século XIX, o fluxo de pessoas e, mesmo de povos inteiros, cruzando as fronteiras havia aumentado muito e com grande velocidade, sendo no período de 1880 a 1910, a segunda grande onda migratória que os Estados Unidos receberam. E este fato, cruzado com surtos epidêmicos, fazia gerar uma nova necessidade de ajustes sanitários, que ampliasse a abrangência da quarentena.

De acordo com George Rosen, foi Peter Frank, em 1776, na Inglaterra, o primeiro a pensar em uma organização sanitária internacional, discutindo a necessidade de uma regulamentação para o licenciamento dos médicos, seguindo mecanismos internacionais para trocas permanentes de informações sobre a Saúde Pública de seus países.

De 1833 até 1839, no Egito, foi criado um Conselho Sanitário Internacional, chefiado por uma Comissão de Saúde Consular com representantes de vários países da Europa. Esta Comissão salientava a importância de aumentar a proteção dos países europeus, e se responsabilizou por cuidar dos problemas das Quarentenas e da Higiene Internacional.

Em 1834, na França, Segur de Peyron fez a primeira proposta de uma Conferência Sanitária Internacional. Em 1843, a Inglaterra imperial reforçou esta proposta. Em 1845, Melier, da França, assumiu a ideia, tomando a iniciativa de começar a organização desta Conferência, em vista das grandes epidemias de cólera que registravam a urgência desta convenção. “A necessidade de controlar a expansão dos surtos trouxe à baila o tema da cooperação internacional, e levou à fundação de uma organização sanitária internacional” (Rosen, 1994, p. 205). De maneira geral, as condições sanitárias nos países onde erigiam a industrialização e o urbanismo na Europa eram semelhantes.

A Primeira Conferência Sanitária Internacional foi realizada em Paris a 05 de agosto de 1851, com a presença de vários Estados nacionais e povos soberanos: Áustria-Hungria, as duas Sicílias, Espanha, Estados Papais, Grã-Bretanha, Grécia, Portugal, França, Rússia, Sardenha, Toscana e Turquia. As Comissões representativas de cada país eram constituídas por dois delegados: um diplomata e um médico, porque esta primeira Conferência dizia respeito tanto a problemas técnicos e médicos quanto a problemas administrativos e diplomáticos. O objetivo era claro: remover todos os obstáculos que a disseminação das epidemias gerava para o comércio internacional.

Com uma série de normas e regras, foi formulado o Primeiro Código Sanitário Internacional, com quarentenas e notificações obrigatórias para cólera, peste e febre amarela. Entretanto, os resultados práticos foram mínimos e este Primeiro Código Internacional não foi colocado em prática em larga escala, pois apenas França, Portugal e Sardenha ratificaram a Convenção. Em 1865 Portugal e Sardenha se retiraram, e a França ficou isolada. Este foi o período de ascensão do imperialismo inglês, do fortalecimento da soberania das nações, do nacionalismo e das relações interestatais, as quais estavam sendo organizadas de acordo com esta nova realidade.

A importância dessa primeira conferência sanitária se mostrou, no entanto, clara. Assim, com muita paciência chegou-se a uma convenção e a uma série de normas. Essas regulações representavam uma primeira tentativa de criar um código sanitário internacional (…) Concordou-se, também, em não examinar nada que pudesse considerar uma interferência na soberania de cada país. Não obstante, a semente tinha sido lançada. (Rosen, 1994, p. 214).

Do nosso ponto de vista, como neste século a política externa dos Estados estava sendo organizada de acordo com novas exigências nas relações de poder, os efeitos naturais das Convenções Internacionais de Saúde atingiriam a soberania das nações, em maior ou em menor grau. Sendo assim, apesar da “semente ter sido lançada”, as políticas internacionais de saúde demorariam quase um século para serem assimiladas pelos Estados.

A Segunda Conferência Sanitária Internacional foi em 1859, também em Paris. Dois fatos retomaram a importância de sua continuidade: uma pandemia de cólera em 1863 e a abertura do Canal de Suez em 1869, com interesse do comércio internacional. Os transportes e a imigração aumentariam os riscos de transmissão transfronteiriça de doenças. Foi o que manteve o mecanismo de Cooperação Internacional, dando continuidade ao processo de Conferências Internacionais.

A Terceira Conferência em 1866, em Istambul; a Quarta em 1874, em Viena; a Quinta em 1881, em Washington; a Sexta em 1885, em Roma; a Sétima em 1892, em Venice, a Oitava em 1893, em Dresden; a Nona em 1894, em Paris; e a Décima em 1897, em Venice.

Os resultados destas dez Conferências foram limitados, entretanto, foram cruciais para o incentivo da criação de mecanismos institucionais para elaboração de relatórios com dados epidemiológicos, bem como um princípio de coordenação para reações em surtos epidêmicos. Através desses movimentos iniciais, se formalizaram os princípios básicos para a construção da Governança em Saúde Internacional, através do reconhecimento de que esta ação cooperada entre as nações, através de regras e procedimentos acordados, capacitariam os governos para melhor proteger suas populações, estendendo as responsabilidades da Saúde Pública das nações.

Em 1903 foi realizada a Décima Primeira Conferência Sanitária Internacional, em Paris. E, em 1911, a Décima Segunda, também em Paris. Foram avanços consideráveis com elaboração de propostas de cooperação entre Estados nacionais. Começou a ser constituída a comunidade internacional de Saúde, impulsionando a produção de conhecimento científico específico que criou um corpo crescente de cientistas especializados em Saúde Pública em nível nacional, cujos conhecimentos alcançavam a esfera internacional.

As Conferências científicas internacionais, desde o século XIX, trouxeram a cooperação internacional como necessidade das sociedades, reemergindo o tema da Medicina Social que priorizava o princípio da “universalidade”, para a construção de um sistema internacional de governança em Saúde. Encontros científicos sobre temas associados refletiam os avanços nas pesquisas das causas das enfermidades e nas questões sociais com impacto na Saúde Internacional.

A cooperação sanitária internacional em saúde nasceu da compreensão cada vez maior de um mundo que, por mais de cem anos vem diminuindo de tamanho – em virtude de uma interdependência econômica e política internacional cada vez mais complexa – a presença de doença em uma área se constituía em um perigo para muitas outras. A coordenação dos procedimentos da quarentena representava um problema urgente. (Rosen, 1994, p. 343).

Nos Estados Unidos, em 1909, o Instituto Rockfeller criou uma Comissão de Saúde e, em 1913, uma Comissão Internacional de Saúde para apoio aos serviços de saúde e programas de controles das doenças em vários locais do mundo que,

(…) seu princípio era de que a saúde comunitária é uma função do governo e de que só se pode atingir resultados de longo alcance se os países forem ajudados a se ajudar, com a criação de agências de saúde, nacionais e locais. (…) Esse propósito tem sido perseguido mediante a execução e o financiamento da pesquisa, da educação e do treinamento de pessoal de saúde pública (com ajuda financeira ou a criação de centros de treinamento) e instalação de exposições. Ou a oferta temporária de recursos, pessoais e materiais, para estabelecer serviços de saúde comunitária completos. Esses são, em essência, os princípios sobre os quais o trabalho internacional em saúde e, em particular, os programas de assistência técnica, se desenvolveram [sobretudo] a partir da II Guerra Mundial”. (ROSEN, 1994, p. 344).

Da mesma forma, de acordo com Black (2003), foi fundada em 1902 a Instituição Carnegie, com a responsabilidade de atendimento da Saúde Pública na vertente do aperfeiçoamento do homem, para a construção de uma nova sociedade dentro do ideal de progresso dos Estados nacionais. Esta instituição foi a mola propulsora do campo da higiene, determinante para a formulação de políticas e legislações que faziam face à criação da ciência eugênica nos primeiros anos deste século.

Até 1914, doze instituições internacionais no campo da Saúde, relacionadas com direitos humanos, bem-estar social, educação e pesquisa, foram estabelecidas. Entre elas, algumas foram mais proeminentes; em 1902, o Departamento Sanitário Internacional, a primeira organização internacional de saúde das Américas; depois Departamento Sanitário Pan-americano, precursor da Organização Pan-americana da Saúde – OPAS.

Em 1907 foi criado o Escritório Internacional de Higiene Pública, em Paris, um marco na questão da Governança em Saúde Internacional, que fazia articulações entre países para intercâmbios e trocas de informações em Saúde Pública. Este Escritório foi a primeira organização internacional em âmbito mundial, com a missão de informação e articulação de conferências sobre peste, cólera, varíola, tifo exantemático e febre amarela.

Em 1919 foram estabelecidas organizações importantes como a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha e o Fundo de Salvação das Crianças.

Segundo Dogson et all (2002), a falta de recursos, de apoio político e uma competição inter-organizacional do Escritório Internacional de Higiene Pública vinha impedindo a abrangência do trabalho. O campo das Organizações Não-Governamentais (ONGs), desde o século XIX, fornecia uma contribuição crescente à governança de Saúde Internacional, suprindo deficiências e suplementando ações governamentais, como as missões religiosas. As Convenções de Genebra em Saúde Internacional estabeleciam padrões de normas de comportamento e ética para tratamento dos casos de guerra, foram sucedidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, estabelecido desde 1863. A partir de 1920, organizações de Saúde governamentais e não-governamentais contribuíram crescentemente com a governança em Saúde Internacional.

Em 1923 foi constituída a Organização de Saúde da Liga das Nações, tendo como unidade principal o Serviço de Inteligência Epidemiológica, que tinha uma grande coleção de dados e pesquisas em Saúde Pública. Esta foi a primeira tentativa de se criar um mecanismo eficaz para atendimento das epidemias, em que foram instituídos os primeiros programas internacionais.

Estes programas dependiam da necessidade de cada país: malária, tuberculose, sífilis, raiva, hanseníase, câncer, doença do sono, tifo exantemático. “Ia tornando-se claro, simultaneamente, que problemas além da quarentena e do controle de doenças comunicáveis exigiam ação mundial”. (ROSEN, 1994, p. 343). Em 1928, a Grécia e a Bolívia solicitaram assistência técnica para organização de seus programas nacionais de saúde; o mesmo acontecendo, em 1929, com China, Polônia e Romênia.

A Organização de Saúde da Liga das Nações, e o trabalho do Escritório Internacional de Saúde Pública, da Fundação Rockfeller, acostumaram as nações à ideia da cooperação internacional em muitas áreas da saúde e constituíram um grande fundo de experiência. (ROSEN, 1994, p. 344).

Em 1942 estas Organizações assumiram a liderança para resolver problemas de saúde no hemisfério americano através do desenvolvimento de assistência técnica, e estabeleceram o Instituto de Assuntos Interamericanos.

Do ponto de vista da política mundial, o contexto de conflito armado das Guerras Mundiais na primeira metade do século XX foi transformado, na segunda metade, em conflito bipolar de poder, com a ascensão da Guerra Fria. Após a II Guerra Mundial, foi no movimento da hegemonia americana sobre o mundo, sobretudo de 1947 a 1973, que houve uma expansão no campo da Saúde Internacional com o estabelecimento de instituições e desenvolvimento oficial das propostas deste campo.

A estrutura, crescentemente idealizada desde o século XIV com a pandemia da Peste Negra – um espaço de tempo de cinco séculos pôde ser estruturada e gradualmente passou a ser parte da política externa dos Estados.

A Carta das Nações Unidas incluiu o princípio da ajuda mútua em face dos problemas sociais e sanitários. E a Organização Mundial da Saúde tem olhado a saúde internacional com uma visão larga, reconhecendo ser a saúde ‘um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, credo, crença política, condição social ou econômica’. Segundo essa linha, a OMS se tornou a agência de coordenação mundial no campo da saúde. (ROSEN, 1994, p. 345).

Dentro do sistema das Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde – OMS, foi instituída em 1946 como uma agência especializada em Saúde Internacional, “assumindo os deveres e os poderes da Organização de Saúde da Liga, do Escritório Internacional e da Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas” (ROSEN, 1994, p. 345), sendo oficializada em 1948 e ratificada por vinte e seis países.

Em 20 de janeiro de 1949, o Presidente Truman propôs, em seu discurso inaugural, a incorporação de um elemento à política externa americana. Como ‘Ponto Quatro’ ele insistiu em que os Estados Unidos ‘deviam envolver-se em um novo e audaz programa para fazer com que os benefícios de nossos avanços científicos e de nosso progresso industrial contribuam para a melhoria e o crescimento das áreas subdesenvolvidas.’ Desde então, essa proposta se transformou em um amplo programa. Em consequência, em 1953 o governo federal instalou uma agência – a Administração das Operações Externas – responsável por todas atividades de assistência técnica internacional dos Estados Unidos; em 1955 existiam programas de saúde bilaterais em 38 países” (ROSEN, 1994, p. 345).

O ideal que permeia as atividades da OMS desde sua fundação é o princípio da universalidade, com atendimento a todas as pessoas no nível mais alto possível. Este é um desafio permanente e principal fundamento da Medicina Social, e cujo princípio foi traduzido pela ideia de “Saúde para Todos”. A OMS trabalha integradamente com várias outras organizações: Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).

Com grande número de países representando as necessidades de Saúde nas Assembleias de Saúde da OMS, o papel desta Instituição foi sendo crescentemente destinado a apoio aos governos nacionais para promoção e proteção da Saúde de suas populações. Sua Constituição original define Saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência da doença ou enfermidade”. Com esta estrutura internacional, foram sendo estabelecidas regulamentações internacionais para monitoramento e controle transfronteiriço de doenças infecciosas, bem como de reação coordenada em casos de disseminação. E assim foi elaborado o Regulamento Internacional que ampliou política e tecnicamente a abrangência da tradicional quarentena.

O Regulamento de Saúde Internacional é um código “único” e “legal”, um “instrumento jurídico” de procedimentos comuns e práticas de rotina de Saúde Pública em aeroportos, portos e estradas transfronteiriças, para prevenção, proteção, controle e previsão da disseminação global de doenças infecciosas. São procedimentos de medidas preventivas de propagação transfronteiriça de doenças infecciosas.

O objetivo central é a rapidez na detecção, na reação e na informação, tanto as que partem dos Estados quanto da própria OMS. A ideia central de um mecanismo de ação política e técnico-científica de duas mãos: da OMS para os Estados e vice-versa. Em 1951, os Estados-membros da OMS adotaram o Regulamento Sanitário Internacional para controle e monitoramento de seis doenças infecciosas: cólera, peste, febre amarela, varíola, febre recorrente e tifo. Em 1969, este regulamento foi renomeado para Regulamento de Saúde Internacional e a cólera, a peste e a febre amarela tiveram como obrigatórias suas notificações em nível internacional, sofrendo mínimas revisões em 1973 e em 1981.

Entretanto, com surtos epidêmicos re-emergentes ocorridos no início da década de 1990, de cólera em partes da América do Sul, de peste na Índia, e a emergência de novos agentes infecciosos como a febre hemorrágica Ebola, foi dado um impulso para uma revisão mais abrangente deste Regulamento, envolvendo o surgimento da AIDS e do SARS, que tiveram um papel determinante para esta revisão.

As dimensões internacionais e a velocidade da disseminação de doenças determinaram novas pesquisas e exigiram novas respostas para apoiar as necessidades de todos os Estados-membros da OMS. O nascimento da Era da Informação, da tecnologia, do aumento da velocidade do comércio, viagens e comunicações transnacionais, foram pontos ressaltados dentro de novos desafios do atendimento às epidemias, frente aos novos canais de disseminação das doenças infecciosas.

Em maio de 2001, a OMS adotou a resolução WHA 54.14: “Segurança Global de Saúde: alerta e reação epidêmica”, a qual se propõe a dar suporte aos Estados-membros em identificação, verificação e reação às emergências de Saúde Pública Internacional. A partir desta resolução até maio de 2005, uma Comissão Internacional de Revisão deste Regulamento se aprofundou no tema. O resultado foi o estabelecimento de um Regulamento de Saúde Internacional Revisado, aprovado em assembleia – WHA 58.3.

Este novo regulamento é ‘uma única’ Lei Internacional, com o objetivo de controlar com eficácia e eficiência os surtos epidêmicos para se alcançar uma proteção máxima dos Estados nacionais. Para tal, novos papéis e funções foram determinados, bem como novas e amplas obrigações foram designadas aos Estados-membros.

Esta revisão é uma matriz de detecção para um mundo que vive uma revolução tecnológica, com uma rede de comunicação que abrange todo o mundo instantaneamente. Prevê o aumento do fluxo de informações pela internet, com aumento da segurança e eficácia, com fidedignidade e oportunidades específicas.

Neste sentido, é um código de condutas – compulsórias – de notificação de eventos de Saúde Pública com riscos internacionais, bem como uma forma destinada à reação coordenada. Todas as esferas de ação precisarão estar fortalecidas e envolvidas neste movimento, e a OMS prevê auxílio para os sistemas nacionais de saúde de todos os Estados-membros porque estas mudanças necessitarão de reforço em sua capacidade técnico-científica, e também na administração das informações ou no gerenciamento das mesmas nos momentos de emergência.

A ideia determinante é atingir a eficácia global de reações coordenadas em tempo real. Este novo Regulamento não somente cobre as três doenças de notificação compulsória, mas também prevê assistência internacional para as novas doenças infecciosas, re-emergência das tradicionais, emergências causadas por doenças não transmissíveis e ameaças biológicas. O fundamental é a identificação da origem ou do “endereço” dos surtos ou ataques para reação instantânea.

Quatro critérios foram definidos, que indicam o potencial do Regulamento de Saúde Internacional: i) seriedade nos impactos e eventos de Saúde Pública; ii) natureza inesperada e incomum dos eventos; iii) potencialidade da disseminação internacional; e iv) os riscos que as restrições das viagens e comércio poderão causar pelos eventos.

Esta determinação sublinha a necessidade de tomada de decisão nos contextos da ocorrência de eventos, tanto das doenças transmissíveis quanto das não transmissíveis. Entre os fatores que influenciam as análises de risco internacional estão: o lugar de ocorrência, tempo e dimensão do surto, fechamentos das fronteiras nacionais terrestres, navais e aéreas, velocidade da disseminação e modo de transmissão, entre outros fatores.

Ao longo dos séculos foram sendo intensificadas as interações humanas através das fronteiras nacionais e, consequentemente, o aumento do risco transfronteiriço das doenças epidêmicas.

Na segunda metade do século XX, a estrutura operacional da Saúde Internacional, a OMS, se espalhou por todo o globo envolvendo Estados nacionais ricos e pobres. A governança de saúde internacional envolveu ONGs e Fundações públicas e privadas, as quais permaneceram com papel definido, porém limitado, nas relações oficiais com a OMS até a década de 1990, quando seus papéis ganharam nova relevância e se expandiram.

Nesta década, o mapa da governança global em saúde foi sendo alterado com o processo de globalização, desafiando o modelo central do sistema de governança mundial da Saúde passando, por seu turno, a se mover como uma organização multi-institucional, na emergência de uma multiplicidade de atores com particularidades constitucionais, trazendo novas e diferentes diretrizes, princípios, especializações, recursos financeiros e estruturas de governança.

Segundo Dogson et al (2002), em 1998 havia 188 ONGs com relações oficiais nos campos da medicina, ciência, educação, legislação, cuidado humanitário e comércio, sendo reconhecidamente contribuintes importantes no alcance das metas da OMS, com grande diversidade de atores políticos circulando nas negociações.

Neste contexto começaram debates de uma emergente “transição” da Saúde Internacional para a chamada “Saúde Global”, a qual envolveria um novo espectro de prioridades e atividades no campo internacional da saúde, decorrentes dos efeitos da globalização que trouxe, como questão central, a definição dos determinantes sociais e ambientais em saúde.

O conceito de Saúde para a OMS é amplo, com princípios da Medicina Social, apesar de que suas atividades têm convencionalmente o modelo biomédico.

Desde os anos de 1970 têm sido engendrado esforços no sentido de incorporar uma abordagem mais multissetorial e multidisciplinar dentro das atividades da Organização; como exemplo, a estratégia de “Saúde para Todos no Século XXI” relaciona a Saúde com direitos humanos, equidade, gênero, desenvolvimento sustentável, educação, agricultura, comércio, energia, água e sanitarismo. (Dogson et all, 2002, p. 12).

Neste sentido, o mesmo autor considera que o processo da globalização foi permeando o campo da Saúde Internacional, dedicando maior atenção aos determinantes básicos de Saúde que inclui as doenças não-comunicantes. Isto seria devido à necessidade de sublinhar as mudanças criadas pelas transformações socioeconômicas, demográficas e ambientais, bem como a erosão das fronteiras entre os determinantes de saúde pública e de saúde privada.

Assim começaria a haver uma distinção mais explícita entre Saúde Internacional e Saúde Global. Reações políticas para a inclusão dos determinantes básicos de saúde que transcenderiam as fronteiras territoriais dos Estados, e a Saúde Global requereria um repensar sobre a identificação das origens das doenças e estabelecimento de compromissos com um raio de ação setorial mais abrangente.

Mas por outro lado, o ano de 2001 trouxe uma nova realidade política mundial que, do nosso ponto de vista, reforça e acentua a importância do papel da Saúde Internacional tradicional. A partir da Doutrina Bush (2002), o avanço da política externa estratégica dos Estados Unidos está associado à parceria entre as nações, com complementaridade em iniciativas científicas em C&T e em P&D, e políticas associadas à saúde pública para combate ao bioterrorismo.

Os institutos, as organizações e as agências que envolvem pesquisas em doenças infecciosas recebem grandes financiamentos para criação de novos departamentos e pesquisas estratégicas para atender questões bélicas. Nos Estados Unidos, a estratégia fundamental para a saúde pública está na promoção de melhorias nas habilidades para prevenção, preparação e reação ao bioterrorismo, juntamente com outras emergências de saúde pública.

Para Ulysses Panisset (1992), as diferentes dimensões da saúde (ideológica, política, econômica, cultural, étnica, demográfica, epidemiológica, ecológica) que operam no cenário nacional são os elementos de uma cadeia que articulam no campo internacional as reações e muitas batalhas ideológicas.

Os países com maior poder podem utilizar o campo da Saúde Internacional para promover ou desacreditar diferentes ideologias de Estado, além de que este é um campo que reflete claramente a definição das prioridades e das políticas nacionais que seguem os governos. A natureza ideológica de um Estado dá forma às suas políticas de saúde nacionais e internacionais.

A ideologia dominante é que, em última instância, determina as políticas de saúde principais de um Estado-nação. Dado que a ideologia define suas relações com os outros países, também o faz no campo da saúde. (…) O modelo do ‘realismo’ dominou o estudo das relações internacionais nos Estados Unidos deste a década de 40 ao final da década de 60. Seus fundamentos teóricos e doutrinários seguem sendo a base da tomada de decisões em política externa dos Estados Unidos nos momentos atuais”. (1992, p. 173; 175).

O autor diz que o Estado que promove a intervenção global na base da doutrina do realismo e da política de contenção de ideologias opostas trata, também, de controlar o processo saúde-doença em relação às suas próprias pretensões e interesses geopolíticos globais.

O campo da Saúde Internacional vem trabalhando seus espaços e as suas estruturas a cinco séculos, sendo uma parcela das estruturas da organização do poder no Sistema Mundial Moderno que somente conseguiu se estruturar após a II Guerra Mundial, mediante processo institucional de grande porte.

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