As sete vidas de David Capistrano Filho

Ricardo Fernandes de Menezes, médico sanitarista. Foi membro da Sexta Diretoria (1982-1983)1 do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) presidida por David Capistrano da Costa Filho. Texto escrito em 15 de novembro de 2000.

David Capistrano da Costa Filho, meu grande amigo e companheiro de pelejas (nessa ordem), já no início dos anos noventa tinha vivido uma cota de vida que o inscrevera na história da esquerda brasileira e, no que diz respeito à Saúde Pública, na própria historiografia do Brasil. Além disso, já tinha se submetido a um transplante de medula óssea, pois, em vida de lutador, luta pouca é bobagem.

No dia 7 de maio de 1991, sem meias palavras, falava David: “é necessário erguer bem alto a bandeira da defesa da vida, se queremos imantar a sociedade (inclusive os funcionários e os especialistas) para enfrentar a deterioração das condições socioeconômicas, dos indicadores de morbimortalidade e da qualidade dos serviços de saúde”.

No ano seguinte, quiseram os homens (e as mulheres) que David fosse eleito prefeito de Santos para continuar dando concretude às políticas públicas que apontam no sentido da defesa da vida!

Depois, a vontade extremada de viver fez com que a luta de David se complicasse ainda mais: submeteu-se a um outro transplante, dessa feita de fígado. O seu sofrimento acabou no dia 10 de novembro de 2000. Restou-me a dor de não poder mais pensar: vou ouvir a opinião do David…

No entanto, como aquela dor ficou guardada num canto da minha alma até hoje – eu estava fora de São Paulo –, selecionei na estante o livro Da Saúde e das Cidades e digitei um pequeno texto do maior sanitarista da geração que viveu adolescente o golpe militar de 1964, em plena juventude os acontecimentos de 1968 e, no início da vida adulta, a derrubada do presidente Salvador Allende.

Por enquanto, fiquem com o “Otimismo da Vontade e a Defesa da Vida”. Continuemos com as lutas de David Capistrano Filho! O pensamento que as orientam têm sete vidas!

O Otimismo da Vontade e a Defesa da Vida

Dos aspectos históricos, conceituais, organizativos, administrativos, jurídicos e financeiros da construção do SUS e da municipalização, falaram e falarão aqui especialistas do maior gabarito, como a drª Luiza Heiman, o prof. André César Médici, o dr. Nizan Pereira de Almeida, o dr. Sebastião Rodrigues Pimentel, o dr. Carlos Alberto Trindade e a minha colega secretária de Saúde de Porto Alegre, Maria Luiza Jaegguer.

Tratarei de outros aspectos do processo de construção do SUS – e, portanto, da municipalização – que chamarei de aspectos político-culturais. Políticos na acepção usada por Cícero, célebre orador e homem público romano, em seu Da República. Isto é, políticos por dizerem respeito aos interesses da sociedade, das cidades, enfim, da coisa pública. Culturais no sentido mais amplo da palavra, que compreende os valores éticos e morais, hegemônicos ou em luta para se tornarem hegemônicos na sociedade.

Que aspectos político-culturais são esses? Cito aqui alguns: a relação hierárquica entre União, estados e municípios. Ela precisa ser quebrada: não haverá verdadeiro controle social, real participação e democracia, sem destruir a “cabeça monstruosa” – para usar uma expressão que vem dos inimigos da Revolução Francesa, e que por si só mostra que a história da França é bem diferente da brasileira.

Sem meias palavras: em saúde, precisamos de mais governo, de mais representantes do interesse público, de mais homens (e mulheres) de Estado. Trata-se, pois, de uma atividade que exige o domínio de todas as questões de Estado: sua organização jurídico-administrativa, seu financiamento, seu controle pela sociedade. Há que se aprender coisas novas, que não são ensinadas pelas faculdades de medicina, enfermagem ou odontologia.

Também sem meias palavras: é necessário erguer bem alto a bandeira da defesa da vida, se queremos imantar a sociedade (inclusive os funcionários e os especialistas) para enfrentar a deterioração das condições socioeconômicas, dos indicadores de morbimortalidade e da qualidade dos serviços de saúde.

A defesa da vida e o compromisso com a vida são valores que nem a mão invisível do mercado nem a mão pesada do planejamento centralizado e burocrático são capazes de garantir. Valores que ou vingarão através do empenho, luta, coragem e convicções firmes, ou simplesmente serão suplantados pelo cinismo, pela indiferença, pela cupidez e pelo individualismo mais feroz.

Companheiros secretários: para o êxito da construção de cada sistema municipal de saúde, do SUS como um todo, para que os brasileiros tenham mais saúde e vivam mais, a paixão, a capacidade de indignar-se e de se emocionar, de ter rompantes de cólera (a boa, não a diarreia) contra os agravos à vida, é indispensável. A paixão que deve nos possuir na nossa atividade de dirigentes municipais de saúde aparece às vezes como uma espécie de voluntarismo. Não faz mal: é mesmo preciso uma férrea vontade, pertinácia, persistência, insistência, para vencer os inúmeros obstáculos postos à nossa frente.

É preciso, além disso, coragem pessoal, política e intelectual para rever conceitos, pré-conceitos, enfim, ideias que não têm mais suporte na realidade. Não podemos ser escravos de nada, nem mesmo de nossas próprias ideias.

Discurso feito em encontro de secretários municipais de saúde em Foz do Iguaçu, 7 de maio de 1991.

1 Fonte: Berlinguer G. A Saúde nas Fábricas. São Paulo: CEBES-Hucitec, 1983. In: Sophia DC. Saúde & Utopia – O CEBES e a Reforma Sanitária Brasileira. São Paulo: Hucitec Editora-SOBRAVIME, 2015.