Carlos Fidelis: ‘Sangue não é Mercadoria’

A Proposta de Emenda Constitucional sobre o plasma sanguíneo é um verdadeiro retrocesso no processo civilizatório, a PEC 10/2022, como está sendo chamada, altera o § 4º do art. 199 da Constituição Federal relativo às condições e requisitos para a coleta e processamento de sangue e seus derivados no país. Trata-se de uma alteração que possibilita a comercialização de plasma sanguíneo humano, abrindo mercado para grandes grupos empresariais transformarem o sangue dos brasileiros em mais uma commodity.

Um negócio de bilhões que pode gerar desabastecimento nos hemocentros que passaram a concorrer com o setor privado em uma área de enorme relevância para a saúde pública e para a autonomia nacional para a produção de hemoderivados.

A PEC 10/2022 acrescenta o seguinte parágrafo ao artigo 199: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada (grifo nosso) para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde.

O Brasil já conviveu com a indignidade de ver brasileiros vendendo o seu sangue para garantir uma subsistência miserável. Não podemos permitir uma afronta dessas à nossa dignidade. Estão querendo literalmente colocar um dreno nas nossas veias e sugar o nosso sangue para alimentar uma sede por lucro que não tem fim.

Sangue é tecido, assim, ao permitir a sua comercialização, estamos abrindo brechas para a comercialização de tecidos. Não nos espantaria se nessa esteira viesse a comercialização de órgãos.
A Constituição de 1988 acabou esse tipo de comércio aviltante e o país investiu no controle de qualidade do sangue e na produção de hemoderivados. Em 2004 foi criada a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) com o objetivo de alcançar a autossuficiência na produção de hemoderivados. Atualmente o país faz forte investimento na qualificação da Hemobrás. Caso a PEC 10/2022 seja aprovada a empresa sofrerá a concorrência de grandes conglomerados internacionais que atuam no setor. Corremos o risco de matar no nascedouro uma iniciativa fundamental para a saúde pública.

Diversas autoridades, especialistas e entidades já se manifestaram contra a aprovação da PEC, dentre eles, o Presidente Lula, a Ministra Nísia Trindade Lima, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), A Frente Pela Vida, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Rede Unida, a Sociedade Brasileira de Bioética, o Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores da Fiocruz e muitos outros.

Entretanto, enfrentamos um lobby fortíssimo com muitos recursos. Um lobby que publicou um encarte no jornal Valor Econômico ontem e que hoje está presente nas páginas da Folha de São Paulo e em outros meios de comunicação. Um lobby que levianamente aponta um suposto desperdício de plasma para justificar a entrada do setor privado e transformar o sangue e seus derivados em mercadoria. Vale lembrar, que antes de 1988 o setor privado não garantia a qualidade do sangue e dos derivados, motivando a contaminação e a morte daqueles que recebiam transfusão, a exemplo do caso dos irmãos Betinho, Henfil e Francisco Mário contaminados com HIV em uma transfusão de rotina. Cabe ressaltar ainda, que a nova fábrica da Hemobrás será capaz de fracionar até 500 mil litros de plasma por ano e de produzir quatro dos tipos de hemoderivados de maior consumo no mundo: Albumina, Imunoglobulina e Fatores VIII e IX da coagulação.

Consideramos que a PEC 10/2022 fere a dignidade do povo brasileiro e atenta contra a política de autossuficiência que o país vem buscando. Defendemos investimentos no Complexo Econômico e Industrial da Saúde que abriga a Hemobrás. Defendemos também o fortalecimento da Coordenação Geral de Sangue e de Hemoderivados (CGSH), órgão do Ministério da Saúde encarregado de execução da política de atenção hemoterápica e hematológica conforme a Lei 10.205/2001, chamada, também, de “Lei do Sangue”.

Sangue não é mercadoria! Salve o sangue do povo brasileiro!

Carlos Fidelis da Ponte
Presidente do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, membro titular do Conselho Nacional de Saúde e pesquisador da Fiocruz

Texto originalmente publicado no Blog da Saúde no portal Viomundo. Acesse nesse link.