Carlos Octávio Ocké-Reis: A política de saúde, sem trocadilho, é vital

Carlos Octávio Ocké-Reis

Será possível fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), melhorando o acesso e a qualidade dos serviços públicos de saúde? Em contexto de restrição fiscal, será viável consolidar o sistema universal e reduzir as desigualdades sociais?

Existe contradição entre o modelo redistributivo da Constituição e o nível de gasto público. Bastar avaliar o gasto privado per capita, o financiamento público de outros sistemas universais ou, ainda, as necessidades de saúde da população.

Contudo, para que o governo federal não negue a saúde pública enquanto direito social, a ampliação do orçamento se constitui em condição necessária: essa aspiração foi retardada devido à escassez de recursos e boa parte dos problemas de gestão decorre dessa crise de financiamento.

Desse modo, a adoção de medidas promotoras de eficiência não pode servir de base para que se cortem os recursos financeiros ou organizacionais do SUS. Pelo contrário: a melhoria da eficiência pode, na realidade, significar a elevação dos gastos.

A avaliação de eficiência revela quanto poderia ser produzido com os recursos existentes ou quais recursos deveriam ter sido utilizados para atingir determinado resultado. Tais avaliações são importantes na área da assistência à saúde, em que a eficiência deve ser balizada pela efetividade da prevenção, do tratamento e da reabilitação dos indivíduos e não por mecanismos de mercado.

Definir metas qualifica a gestão pública, mas é urgente atacar a corrupção e os desperdícios, bem como alocar melhor os recursos destinados aos serviços de atenção básica, média e alta complexidade. Igualmente é necessário organizar as filas para diminuir o tempo de espera dos exames e cirurgias eletivas. E, finalmente, por que não superarmos a experiência das terceirizações, na qual a busca do lucro máximo pode restringir a quantidade e a qualidade das ações requeridas para o cumprimento da missão institucional do SUS?

Essa política de fomento ao mercado é alternativa pragmática, porém rudimentar. Seus defensores não compreenderam que até a proposta de reforma apresentada pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, visou superar o caráter ineficiente, excludente e desumano do modelo privado de assistência médica e odontológica americana.

No Brasil, os gastos tributários (subsídios) cresceram em ritmo superior ao gasto do Ministério da Saúde (MS) entre 2003 e 2006, indicando que o próprio Estado patrocinou o sistema privado, em particular o mercado de planos de saúde e de serviços médico-hospitalares (ver tabela).

A ausência de uma fonte de financiamento específica vem impedindo a realização de um acordo para se votar a regulamentação da emenda constitucional 29, que definirá o escopo das ações e serviços públicos de saúde, introduzirá mecanismos de fiscalização da alocação de recursos entre os entes federados e aumentará o financiamento da União para 10% do total das receitas brutas correntes.

Entretanto, o crescimento da economia e a criação de um fundo do pré-sal dão lastro para a aprovação dessa emenda. O próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) pode também cumprir uma função social junto aos Estados e municípios – vivificando o “S” presente em seu nome – uma vez que o governo o tirou da tarefa de financiar os investimentos privados de longo prazo da economia.

Um uso racional a ser feito com os novos recursos seria valorizar o profissional de saúde, disciplinando a formação dos especialistas e seu regime de trabalho no sistema público e privado de saúde, acompanhado das seguintes medidas:

1) Eliminar a Desvinculação de Recursos da União (DRU).
2) Limitar o escopo da renúncia de arrecadação fiscal, de modo a ampliar os recursos do SUS e baixar a inflação setorial (diminuição dos preços dos planos privados de saúde e dos serviços médico-hospitalares).
3) Otimizar os recursos do ressarcimento ao SUS pelos serviços prestados aos usuários de planos privados de saúde, previsto na legislação federal desde 1998.
4) Racionalizar os recursos destinados pela União à assistência médica e odontológica na administração pública direta (executivo, legislativo e judiciário) e indireta (empresas mistas).
5) Dinamizar a cadeia produtiva (renda, emprego, produto e inovação tecnológica) para aliviar o déficit da balança comercial.
6) Acompanhar a contabilidade e a qualidade da cobertura da “medicina previdenciária”: sistema S (Sesi, Sesc e Sest), auxílio-doença, seguro de acidente de trabalho (SAT), seguro de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT) e dos institutos de seguridade estadual e municipal.
7) Desencorajar emendas individuais dos parlamentares destinadas aos “centros sociais” em nome da coordenação e planejamento das ações do Ministério da Saúde.

O desfinanciamento e o dinamismo da gestão do SUS precisam ser debatidos no bojo de um pacto federativo em que governadores, deputados, senadores e o poder executivo se convençam da necessidade de reconstruir e integrar as instituições do Estado na área da assistência à saúde, para permitir que a saúde do trabalhador e o bem-estar do cidadão sejam vistos enquanto investimentos de longo prazo.

Nesse sentido, a melhoria da qualidade dos gastos pode exigir a aplicação de mais recursos financeiros. Com pouco dinheiro é improvável melhorar o SUS e torná-lo acessível com qualidade a todos os brasileiros.

Carlos Octávio Ocké-Reis é Economista do Ipea com pós-doutorado na Yale School of Management e ex-assessor da Presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Fonte: Valor Econômico (SP)