Carmem Teixeira sobre as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil

Carmen Teixeira, Professora Titular (aposentada) do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Milton Santos-UFBA. Docente do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do ISC-UFBA. Pesquisadora do Observatório de Análise Política em Saúde -OAPS.

Saudosismo e Miopia: breve comentário sobre as diretrizes programáticas da esquerda para a Saúde

O documento “DIRETRIZES PARA O PROGRAMA DE RECONSTRUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO BRASIL”, apresentado pela coalizão de centro-esquerda (PT, PSB PC do B, PV, PSOL, REDE e Solidariedade), como ponto de partida para a elaboração do Programa de Governo 2023-2026 dedica exatos dois parágrafos à SAÚDE (23 e 24). O primeiro (23), reafirma a saúde como Direito e aponta o descaso do atual Governo federal com o SUS, chamando a atenção para a necessidade de garantir “o atendimento às demandas represadas durante a pandemia”, o “atendimento de pessoas com sequelas de Covid”, e a retomada (sic) do “programa nacional de vacinação”. O segundo parágrafo (24) faz menção à forma como a Saúde foi tratada nos Governo Lula e Dilma (como direito de todos e investimento estratégico), e apresenta, sinteticamente, o compromisso com “o fortalecimento do SUS público e universal, o aprimoramento da sua gestão, a valorização e formação de profissionais de saúde, a retomada de políticas como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, bem como a reconstrução e fomento ao Complexo Econômico e Industrial da Saúde” (p. 9).

Pode-se perceber, pela simples leitura desses trechos, que o foco com relação ao enfrentamento da pandemia da Covid-19 e seus efeitos sobre a saúde da população, concentra-se na garantia de assistência ao doentes e pacientes recuperados com sequelas, e enfatiza a continuidade da campanha de vacinação. Isso representa uma visão estreita com relação ao controle de um problema complexo, como a pandemia da Covid, cujos efeitos, analisados largamente pela comunidade científica da área de Saúde Coletiva nos últimos dois anos e meio, vão muito além dos indicadores de morbimortalidade e das ações assistenciais dirigidas aos doentes.

De fato, segundo os inúmeros estudos que tem sido feitos no Brasil, os efeitos da pandemia se estendem à intensificação da crise econômica e social, com todas as suas repercussões sobre as condições de vida e saúde da população, principalmente dos grupos em situação de grande vulnerabilidade, por conta do desemprego, da precarização do trabalho, da inflação acelerada, do aumento da violência social e doméstica, com impacto sobre a saúde mental da população em geral, e, em especial, das mulheres, dos negros, comunidades indígenas e quilombolas, população LGBTQIA+, e dos trabalhadores da saúde, da educação e da cultura, que foram particularmente afetados pelas mudanças no modo de vida e trabalho provocadas pela pandemia.

Além disso, percebe-se nesses trechos, um marcado saudosismo com relação às políticas e programas de saúde implementados nos governos do PT (2003-2014), com destaque ao Programa Mais Médicos e Farmácia popular, ambos expressão, em que pesem seus benefícios, de uma opção política pelo fortalecimento do modelo médico-assistencial hegemônico, que tem sido reproduzido e ampliado no âmbito do SUS, apesar dos esforços que tem sido feitos, ao longo do anos, para a implementação de Políticas e ações de Promoção e Vigilância em saúde, imprescindíveis para o desenvolvimento de um sistema de saúde pautado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade.

A reafirmação dos compromissos com o “SUS público e universal”, parece se concentrar no “aprimoramento da gestão”, sabidamente um nó crítico do processo de consolidação desse sistema, inclusive pelo avanço da privatização por “fora” do SUS (através do crescimento do setor privado, vinculado a planos e seguros de saúde, que retira recursos do SUS, através de contratos e convênios de prestação de serviços, além da renúncia fiscal que beneficia os segurados), e também por “dentro” do SUS, na medida em que tem avançado a incorporação de modalidades alternativas de gestão dos serviços do SUS (através de Organizações Sociais e Parcerias Público-privado), inclusive durante a pandemia (na gestão de Hospitais de campanha e policlínicas), sem falar na proposta do atual governo de privatização da Atenção Básica, através da criação da ADAPS, proposta que, no mínimo, deve ser rechaçada no programa do futuro governo.

Senti falta, portanto, da incorporação de propostas que tem sido elaboradas ao longo dos anos pelas entidades do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) e pelas Conferências Nacionais de Saúde, inclusive a 16ª (Oitava mais 10), que apontam para uma serie de problemas enfrentados cronicamente pelo SUS, e agravados na conjuntura recente, como é o caso do subfinanciamento (e desfinanciamento), o sucateamento da infraestrutura, a precarização da força de trabalho em saúde e o desmonte de políticas estratégicas em várias áreas, a exemplo da Política nacional de Saúde Mental e várias outras.

Enfim, para não me alongar demais nesse comentário, é importante ressaltar que a leitura de outros trechos das “Diretrizes….”, permite a identificação de algumas propostas que, apesar de não estarem endereçadas apenas à Saúde, podem, caso incluídas no Programa de governo 2023-2026, incidir favoravelmente na criação de condições para o reconstrução e fortalecimento do Estado de direito e do SUS constitucional, dando mais concretude às intenções genéricas que aparecem nos parágrafos 23 e 24. São elas:

  • a. A revogação do teto de gastos (EC 95) e a revisão do regime fiscal, com a implementação de uma reforma tributária justa que pode repercutir no aumento de recursos públicos para a Saúde;
  • b. A revogação da reforma trabalhista do governo Temer e Bolsonaro, e o investimento na geração de emprego e renda, que pode contribuir para o enfrentamento do desemprego, da precarização (uberização) do trabalho em saúde;
  • c. A retomada de investimentos em educação, inclusive na educação superior, que pode contribuir para o enfrentamento do desmonte da universidade pública, e, para a reorientação do ensino das profissões de saúde;
  • d. A proposta de “reindustrialização” da economia brasileira, que pode contribuir para a retomada e o fortalecimento dos investimentos em C&T e Inovação em saúde, o que também pode contribuir para o fortalecimento da capacidade nacional de produção de vacinas, fármacos e outros, o que incide sobre a proposta de fortalecimento da independência e soberania nacionais e pode contribuir para a sustentabilidade do SUS;
  • e. As propostas com relação ao enfrentamento da crise climática, que uma vez detalhadas no programa e implementadas na prática, poderão contribuir para a preservação do meio-ambiente, especialmente na Amazônia legal, mitigando efeitos deletérios sobre a saúde de populações do campo e da floresta, inclusive promovendo a redução da violência exercida pelo garimpo ilegal e pelo próprio Estado através dos órgãos de “segurança” (que aliás, também é objeto de propostas de reforma, no âmbito do documento de Diretrizes).
  • f. A proposta de “retomar o processo coletivo e participativo de construção de políticas públicas por meio da restauração de todas as instâncias de participação social extintas pelo atual governo, aprimorando sua composição e fortalecendo sua institucionalidade”. Nesse aspecto, cabe ressaltar que a constituição das instâncias de participação e controle social do SUS, apesar dos seus limites, tem sido uma das maiores conquistas do MRSB, que pautou, desde o início, a relação orgânica entre Saúde e Democracia, de modo que é importante ressaltar a necessidade de ampliação do debate sobre o programa de governo 2023-2026 junto a estas instâncias, inclusive no espaço da Conferência Livre, Democrática e Popular de saúde, prevista para 5 de agosto desse ano e atualmente em fase de preparação. (www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentos-sociais/conferencias-preparatorias-livres-polulares-2022/65875/)

Pelo exposto, percebemos que uma análise mais apurada do conjunto das Diretrizes pode apontar alguns vetores da retomada do desenvolvimento econômico e de fortalecimento da capacidade do Estado (reconstruído), na área de políticas sociais (inclusive no combate à pobreza extrema, à fome (33 milhões de brasileiros e brasileiras vivendo em situação de insegurança alimentar), ao desemprego (cerca de 11 milhões de desempregados), à violência social em suas diversas formas (doméstica, sexual, patrimonial e étnico-racial, pela permanência e fortalecimento do machismo e do racismo estrutural no país) e outras áreas críticas para a melhoria das condições de vida e saúde da população, que impactam, direta ou indiretamente, na Saúde.

Considerando, ademais, que esse documento (Diretrizes), é apenas o disparador de um debate que espero se amplie e aprofunde no âmbito dos movimentos sociais organizados que trabalham sobre diversos temas e tem formulado propostas de políticas nas mais diversas áreas, gostaria de sugerir à equipe que está trabalhando na elaboração do Programa de governo 2023-2026, a ser apresentado à sociedade brasileira, que recupere, como fonte de inspiração, as propostas concretas que tem sido sistematizadas nas agendas das entidades vinculadas ao Movimento da Reforma Sanitária, especialmente CEBES e ABRASCO, nos documentos que aponto a seguir.

Afinal, a experiencia acumulada em quase meio século de lutas pela saúde e pela democracia, desde a criação do CEBES em 1976, não pode ser desperdiçada. Até porque a garantia da sustentabilidade política do SUS só advirá de um processo amplo e democrático, que envolva uma extensa rede de movimentos sociais, lideranças sindicais, estudantis, profissionais comprometidos com a democratização da saúde e a população em geral, com utilização intensiva dos mecanismos de comunicação social de que dispomos atualmente, disputando espaços com os representantes do projeto liberal-conservador da direita e da ultra direita neste país, que todavia, permanecem como a maior ameaça ao processo de retomada e consolidação do SUS. A construção coletiva do Programa de Governo das forças democráticas para o período 2023-2026, portanto, é uma enorme e inescapável oportunidade histórica para recolocar a saúde no cotidiano do debate sobre a sociedade em que queremos e merecemos viver.

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