Carta Aberta em defesa do caráter público da Atenção Básica à Saúde no Recife

Núcleo Recife do Cebes e diversos movimentos Sociais em defesa do SUS expressam profunda preocupação com a Atenção Primária à Saúde na capital de Pernambuco. A proposta de PPP 100% Saúde da Família levanta preocupações sobre a garantia do caráter público. Assine a Carta Aberta pela valorização da APS, gestão pública eficiente e um SUS forte e universal!

Diversos Movimentos Sociais organizados e militantes individuais, a partir do seu caráter histórico em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), vem por meio desta explicitar a profunda preocupação com os rumos da Atenção Primária à Saúde (APS) em Recife, colocando-se junto à gestão municipal para avaliação através de diálogo e apoio na construção do processo de expansão da APS, com vistas à um sistema verdadeiramente universal.

Apesar dos inegáveis avanços da APS, com forte expansão e diretrizes de reorganização orientada pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) desde 2001, aliadas aos princípios de garantia do acesso, integração em rede e aumento da resolutividade, ainda preocupa a baixa cobertura populacional, além da necessária política de pessoal estruturada para o SUS, com caráter permanente, direcionada para APS e sustentada na atuação interprofissional e colaborativa. No contexto recente do projeto Projeto: PPP 100% Saúde da Família (USF), que objetiva a concessão ao setor privado a administração dos serviços da chamada “área meio” na rede de Atenção Primária à Saúde do Município do Recife/PE, pelo prazo de 20 anos, causa-nos preocupação também a garantia do caráter público do sistema, fundamentalmente na APS.

Considerando a alta carga de doenças e alta vulnerabilidade em Recife nas suas dimensões sociais, político-programáticas e individuais, fica evidente a complexidade do sistema de saúde para garantir atenção integral com acesso universal a toda população, considerando suas necessidades referenciadas ao território de moradia e sua participação na gestão do sistema. A organização de carreiras que valorize políticas estratégicas a partir das grandes áreas temáticas do SUS como atenção primária, vigilância em saúde, saúde mental, urgência e emergência e apoio em gestão para o SUS é uma defesa antiga e necessária na atual conjuntura.

O prosseguimento e valorização da APS como pilar sustentador do SUS requer o fortalecimento de uma política pública com garantia de, entre outros: pessoal para ampliação das equipes, orientadas pela ESF para alcance da universalidade e integralidade da atenção, ampliação e diversificação de modalidades e dispositivos assistenciais; mecanismos de integração em rede e melhoria da articulação com serviços especializados; maior retaguarda terapêutica e diagnóstica; melhoria da infraestrutura; e institucionalização do cenário de ensino-aprendizagem a partir de diretrizes de modelos de atenção e gestão, garantindo o caráter público do sistema.

É fundamental a diversidade de dispositivos e modalidades assistenciais, garantindo ações de promoção e prevenção, orientação familiar e comunitária, estratégias de educação em saúde, aliadas às ações curativas e de reabilitação individuais e coletivas, com mecanismos comunitários e de integração em rede, com atenção especializada e hospitalar. A APS é o lugar da integração sanitária, do trabalho colaborativo entre disciplinas e profissões, da diversidade dos saberes, arranjo importante contra o aprisionamento corporativo de qualquer natureza. O investimento público precisa garantir educação permanente, equipes ampliadas interprofissionais e toda retaguarda que atenda as necessidades das pessoas na complexidade territorial e demandas de uma grande cidade.

Neste sentido, precisamos de um modelo de gestão pública que garanta o caráter público, eficaz e eficiente na administração direta, assegurando agilidade, desburocratização, compromisso social e responsabilidade sanitária. Isso é possível a partir das experiências no Brasil e no mundo em modelos de gestão pública com investimentos diretos ao SUS, sem a necessidade de importar ferramentas típicas da concorrência de mercado, inclusive de forma muito mais cara e pior do que o que o SUS tem feito. Vender serviços da APS para exploração comercial pelo mercado privado não é saída, gerando uma dependência por 20 anos com alto custo e investimento de recurso público. A nossa escuta, pesquisas e evidências revelam que esse modelo é fonte inesgotável de corrupção, caro e não resolve os problemas que precisam ser enfrentados. Ao contrário, aprofundam a falta de transparência, a mudança de finalidade, esquecendo o atendimento às necessidades de saúde das pessoas, a valorização dos trabalhadores e a defesa do SUS na sua sustentabilidade e legitimidade. O enfrentamento da pandemia é o exemplo de modelo de gestão pública para regiões, redes e serviços que buscou combinar integração e responsabilidade com certo grau de autonomia operacional, já que não houve plano nacional coordenado. Mais uma vez o mercado e serviços privados assistiram de camarote, sem preocupação alguma para além das vantagens e lucros às custas do SUS e da população brasileira. A população, os trabalhadores, a saúde coletiva não merece esse modelo em Recife, muito menos para APS.

Enfim, a trajetória da APS em Recife está ameaçada pela crise que afeta à população e as políticas públicas, com piora das condições de vida e impactos no adoecimento e morte, as ameaças na restrição de recursos para políticas sociais e para o SUS, o favorecimento do mercado na saúde, a perda da capacidade de gestão territorial e com isso o descrédito no SUS e a desesperança das equipes de saúde, a descontinuidade da PNAB pautada na integralidade e práxis de cada território. Defendemos recuperar o financiamento e direcionar o investimento, retomar e adequar as diretrizes de qualificação da APS, investir nas políticas de pessoal e de formação, avançar nas mudanças das práticas de cuidado e atenção, envolver toda a população e equipes em diálogo aberto e democrático. Ainda, repactuar compromissos com a melhoria e profissionalização da gestão, ampliar a integração política, organizacional, colegiada e operativa no SUS garantindo seu caráter público.

Colocamos, assim, à disposição o nosso conhecimento, experiência e vontade de fazer junto na defesa do direito universal à saúde, da vida e da democracia.