Saúde Digital – Cebes segue com ampliação do debate sobre o tema

Segurança de dados e soberania do SUS frente às grandes empresas de tecnologia são apenas alguns pontos de um debate que cresce a cada dia

Compreender as implicações e avanços tecnológicos no âmbito da saúde e da garantia de direitos é um dos debates que têm mantido presença no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes. Com o olhar sempre em defesa da melhoria das condições de vida e de saúde do povo brasileiro, o Cebes avança acompanhando o momento atual, as novas tecnologias e suas implicações na garantia do direito fundamental à saúde e à cidadania. 

O desenvolvimento digital e tecnológico tem sido uma força motriz da sociedade atual, entretanto, o ritmo acelerado implica em desafios significativos como a exclusão e a possibilidade de aprofundamento das iniquidades sociais. Uma das conferências livres realizadas com apoio do Cebes, Abrasco e outras entidades tratou especificamente sobre o tema. A conferência ocorreu em maio sob o tema “Informação, Saúde Digital e Controle Social: Desafios rumo à Tecnodemocracia e à Soberania do SUS”. 

Riscos e potenciais – A agenda de saúde digital é uma pauta que deve ser central na discussão sobre a defesa de uma saúde universal e igualitária no Brasil. É um tema que implica na necessidade de se debater a parte social e política para evitar concepções eufóricas e precipitadas que possam aprofundar as desigualdades. 

Nos últimos tempos tivemos uma inovação tecnológica muito intensa, tanto no sentido de ampliar nossa capacidade de coletar dados da realidade, produzir dados no campo da saúde, comportamento, padrões de consumo e diversos outros. Associada a essa capacidade, temos também a possibilidade de transformar estes dados em informação”, destaca Matheus Falcão, pesquisador do Centro de Pesquisa de Direito Sanitário da USP e diretor do Cebes. 

Coletar mais dados capazes de produzir informações a partir de regiões com menor acesso aos serviços de saúde, auxílio na vigilância em saúde, inovação e integração de dados clínicos, pode permitir um conjunto de políticas importantes. É necessário que estes potenciais sejam aproveitados para otimizar os serviços de promover saúde para a população. 

Os dados podem ser o combustível dessa inovação. Por outro lado, é preciso ter um levantamento nítido dos riscos. Um deles tem relação com quem receberá o acesso aos benefícios da inovação, ou seja, como se dará a relação público-privado compreendendo a velocidade de expansão das grandes empresas de tecnologia e sua relação com os serviços públicos de saúde. 

Hoje o planeta conta com uma imensa infraestrutura de coleta de dados pertencente ao setor privado, especialmente com grandes empresas baseadas no norte global, as chamadas big techs. São megaestruturas que dispõem de softwares treinados a partir de algoritmos de inteligência artificial – sistema que avança a cada dia e ainda não possui regulamentação. Neste caso, é preciso pensar em quem terá o acesso a estes dados, como eles serão tratados, processados e utilizados e, ainda, quais formas de inovação irão surgir a partir da obtenção destas informações. Por exemplo, se estes dados serão distribuídos igualmente entre a população. “É importante pensar que as pessoas são origem destes dados, muitas vezes são coletados pelo próprio sistema público. Portanto, precisamos saber que estes dados são um patrimônio público. Muitas vezes este patrimônio pode ser apropriado por empresas que acabam não devolvendo as inovações como deveriam”, explica Matheus. 

Outro risco que necessita ser debatido é a possibilidade de os dados de saúde servirem como potencial de discriminação. Inclusive durante o governo passado uma das questões que surgiu neste âmbito foi o surgimento da Open Health, que se resume ao compartilhamento massivo de informações pessoais de saúde com agentes privados, expondo a população aos mais diversos riscos relacionados à discriminação e ao próprio acesso à saúde. Leia a carta aberta da Frente Aberta Pela Vida enviada ao então ministro da saúde do governo Bolsonaro, Marcelo Queiroga. 

A proteção de dados e os interesses econômicos, bem como as nuances que envolvem as duas relações no mercado de saúde não podem deixar de ser levantadas pelas entidades que atuam em defesa da garantia de direitos no campo da saúde coletiva. 

Quando se pensa em ampliação de tecnologias na saúde, também é preciso considerar a infraestrutura, já que digitalizar serviços sem acesso à internet será apenas mais uma maneira de privilegiar quem já possui acesso a essa tecnologia. Garantir a ciber infraestrutura é uma necessidade atual que encadeia com a obrigação constitucional de garantir o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. 

Uma pesquisa divulgada em maio deste ano demonstrou que 36 milhões de brasileiros não tiveram acesso à internet durante o ano de 2022. O levantamento foi realizado pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação). Esta é uma informação que não pode deixar de ser considerada em qualquer debate sobre saúde digital. 

Debates necessários – A realização de conferências livres é uma das formas de trazermos o assunto para a pauta de discussões públicas. O Cebes tem o compromisso de ampliar este debate e difundir as informações para o acesso público e as conferências fazem parte deste processo. 

No último mês foram três eventos específicos sobre Saúde Digital em que o Cebes teve participação ativa. Além do Cebes Debate Transformação Digital no SUS com Democracia e Equidade, com a participação da secretária nacional de Informação e Saúde Digital, Ana Estela Haddad, também tivemos a conferência livre do núcleo Cebes Goiás sobre Saúde Virtual e a 1ª Conferência Livre Nacional de Informação, Saúde Digital e Controle Social: Desafios rumo à Tecnodemocracia e à Soberania do SUS, realizada no dia 22 de maio em parceria com a Abrasco, Aqualtune Lab, Idec, Intervozes, Lapin e Ministério da Saúde. 

A saúde digital é uma pauta atual e urgente que necessita ser avaliada a partir do caráter central que tem que se configurado. “Olhando para o histórico aqui no Brasil percebemos que há uma reprodução de um receituário de organizações internacionais e a influência de alguns países na configuração do que hoje chamamos de saúde digital”, explica Raquel Rachid, advogada e pesquisadora especializada em proteção de dados pessoais. 

Neste sentido, Raquel destaca a atuação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – esta última enquanto fabricante de políticas eminentemente neoliberais, o que traz preocupação para o caráter que a saúde vem ganhando nos últimos anos. 

Dentro dos debates atuais sobre saúde digital existem entidades e organizações que defendem a participação do setor privado neste contexto, a partir de políticas de ampla cooperação entre o serviço público e frações do capital privado. “Cabe a nós, que reivindicamos a reforma sanitária, a defesa do caráter público do SUS sem o compromisso com o mercado que está muito inscrito na agenda da saúde digital”. 

Para além da perspectiva digital, existem disputas antigas que ressurgem neste momento como pontos de tensionamento nos rumos da digitalização e a presença de interesses privados. “Historicamente conhecemos uma disputa pelo tipo de saúde dentro do SUS”, lembra Raquel. “A saúde digital radicaliza um pouco essa disputa da presença do capital na agenda da saúde. É algo que está posicionado em processos de digitalização mais amplos, mas olhando para o campo da saúde, sabemos que o impossível não deixa de ser nosso desafio”. 

Conferência Livre Nacional de Informação, Saúde Digital e Controle Social: Desafios rumo à Tecnodemocracia e à Soberania do SUS 

 Uma luta que não começou agora 

Antes mesmo da Saúde Digital ter essa denominação, os debates sobre saúde e a incorporação das tecnologias digitais já estavam na pauta de entidades e pessoas preocupadas com a defesa dos direitos em saúde. “A primeira Conferência Nacional de Informação e Saúde Digital já faz parte da galeria dos marcos históricos acerca da Informação e Tecnologias Digitais. Vocês podem imaginar a emoção que foi participar dessa conferência nacional”, relata a pesquisadora titular da Fiocruz Ilara Hämmerli, representante da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) na Comissão Organizadora da Conferência. 

Em 2007 Ilara coordenou a elaboração do primeiro Plano Diretor de Informação e Tecnologia de Informação em Saúde – 1º. PlaDITIS – promovido pelo Grupo Temático Informação em Saúde e População (GTISP) da Abrasco, onde foi lançada, como prioridade, pela primeira vez a proposta de convocação da Conferência Nacional de Informação e Informática em Saúde. Foram 16 anos de construção e debates até a chegada, de fato, à realização dessa conferência. “Temos que homenagear todos os companheiros de lutas e utopias, parceiros da Abrasco, do Cebes e de movimentos populares, que são sujeitos históricos na luta pela melhoria das informações em saúde e defesa do interesse público, do Bem Comum, no processo de incorporação das tecnologias digitais no SUS”. 

Para Ilara, a conferência nacional de saúde digital alinha-se ao que diz a primeira frase do documento orientador da 17ª Conferência Nacional de Saúde. “As conferências de saúde produzem novas manhãs para a democracia e para a vida das pessoas”. Ou seja, tem o compromisso com a mudança direcionada à tecnodemocracia e à soberania do SUS, conforme expresso em seu título. “Nos colocamos claramente numa posição contra hegemônica, pois o que se observa é a hegemonia do modelo neoliberal de buscar capturar todo o processo das tecnologias digitais. E, para tal, o SUS é cobiçado como um grande mercado consumidor dessas tecnologias”, aponta Ilara. 

A tecnodemocracia surge no debate como uma necessidade de ruptura do processo elitista de acesso aos meios digitais, e a soberania como algo estratégico para a garantia do direito universal à saúde. “É muito grave o que aconteceu durante a pandemia, que tivemos um apagão de dados porque tudo estava sob controle de uma big tech”, relembra. “O risco do país não deter o controle de todo o ciclo tecnológico não pode existir naquilo que é estratégico e estruturante para o SUS”. 

O domínio das tecnologias digitais é mais uma das lutas que precisaremos encampar para defender os Princípios contidos em nossa Constituição e na Reforma Sanitária. 

”Precisamos homenagear companheiros que estão na luta para que a incorporação das tecnologias digitais esteja sempre a serviço do SUS e do Bem Comum”. – Ilara Hämmerli

Romper os riscos de dependência de empresas privadas é o único caminho para garantir a soberania e a democracia da saúde. “Somente com o estabelecimento de um forte pacto social é que o SUS conseguirá construir uma inteligência pública em saúde digital que garanta sua soberania”, conclui Ilara.