Cacique Raoni fará evento histórico em sua aldeia para fortalecer luta indígena
Entre 24 e 28 de de julho de 2023, acontece o Chamado Raoni na aldeia Piaraçu, no Mato Grosso. O evento está sendo convocado por Raoni Metuktire para reunir caciques e lideranças de várias etnias para a nova fase de luta por direitos indígenas no Congresso e no STF, principalmente contra o chamado Marco Temporal – que quer definir a Constituição de 1988 como a definição para a marcação de terras indígenas no Brasil. Veja a seguir a entrevista de Raoni para a repórter Daniela Chiaretti, do jornal Valor Econômico.
O líder indígena mais famoso do Brasil, Raoni Metuktire, está convocando caciques e lideranças de várias etnias e Estados para a nova fase de luta pelos direitos indígenas. As ameaças que chegam do Congresso e a votação do Marco Temporal no STF indicam ao chefe caiapó (como dizem os brancos) que é hora de unir as velhas e novas gerações indígenas e fortalecer a resistência.
O “Chamado de Raoni” acontecerá entre 24 e 28 de julho, na aldeia Piaraçu, no Mato Grosso, onde vive o cacique mais famoso do Brasil. A grande reunião, talvez o maior evento já promovido em uma aldeia indígena, abre com três dias de conversas entre lideranças de todas as regiões. ”Precisamos estar unidos e nos fortalecer”, diz o líder indígena em entrevista ao Valor.
O evento é fechado aos convidados de Raoni. São muitos – algo entre 500 a 700 pessoas. Todos dormirão em redes. A aldeia está em efervescência – constroem-se novas malocas e até estruturas de palha para vips que não se sentirem à vontade de tomar banho no rio.
Nos últimos dois dias virão os não-indígenas. Raoni, que subiu a rampa na posse, aguarda o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama Rosângela Silva para o seu evento. O cacique espera que o brasileiro se comprometa com um documento a ser preparado pelas lideranças, que sele a promessa de respeitar os direitos dos povos indígenas. Raoni quer garantir a permanência desses direitos e que não flutuem de acordo com os interesses dos governantes do país.
Raoni fala firme, em sua língua, gesticulando com o dedo em movimentos vigorosos. Está em Peixoto, sede do Instituto Raoni. Veste uma camisa azul clara e o labret, o disco de madeira cerimonial no lábio inferior, que o caracteriza como liderança desde jovem. Não se sabe bem sua idade, mas são mais de 90 anos. Teve oito filhos, três já falecidos.
A perda de sua companheira de vida, Bekwyjkà Metuktire, em 2020, foi um duro golpe. “Olhei para o céu e de longe vi uma estrela, a mais bela de todas e na minha admiração, ela se aproximou e desceu aqui na terra. Então pude ver que ela era ainda mais linda… essa é a minha estrela”, disse o cacique sobre Bekwyjkà, em texto do Instituto Raoni.
Raoni se recolheu ao longo luto dos caiapós. Esteve internado, colocou marcapasso, teve covid.
Tudo isso, somado ao fato de observar outros indígenas com falas opostas à sua, o motivou a fazer o “Chamado”. Raoni não diz, mas há grupos seduzidos pelo garimpo ou pela produção de commodities nas aldeias. “Temos que ter um posicionamento único e estar unidos para enfrentarmos os brancos”, diz o guerreiro.
Filho do líder Umoro, Raoni e seu grupo só tiveram contato com os brancos em 1954. O jovem Raoni tinha cerca de 24 anos. Com os irmãos Villas Bôas, os mais importantes sertanistas do Brasil, aprendeu português e entendeu as ameaças da época. Na Assembleia Constituinte, fotos mostram o líder indígena ao lado de outros, na primeira fila, no Congresso Nacional. Depois veio a luta contra a usina de Kaparaó – hoje Belo Monte — e uma turnê internacional ao lado do compositor inglês Sting.
Quando o ex-presidente Jair Bolsonaro o destratou em discurso nas Nações Unidas, dizendo que “acabou o monopólio da era Raoni”, o cacique ganhou mais força. A grande filantropia internacional o apoia. Chefes de Estado o recebem com honras. No encontro na aldeia espera-se a presença de muitos deles, de embaixadores a executivos. As ministras Marina Silva e Sonia Guajajara devem ir.
Na noite do dia 27,um jantar na aldeia preparado pelos chefs Roberto Smeraldi, Saulo Jennings e Morena Leite, oferecerá chibé com tucupi, castanhas e ervas (espécie de cuscuz), mujica de piranha, arroz de galinha, a grande piracaia (peixes assados na brasa) e creme de bacuri. No convite se lê: “Homenagem ao cacique Raoni: uma vida de liderança”.
Ciente de que a defesa dos direitos indígenas está em nova fase, com adversários no Congresso, no Judiciário, entre políticos e produtores, Raoni quer que as novas gerações sigam sua luta pelos territórios, pela demarcação e pela coletividade. “Da minha juventude até agora, fiz esse trabalho. Agora estou velho. É uma vida de luta”, diz o guerreiro.
Brasília (DF) 07/06/2023 – O cacique Raoni (c) participa da sessāo de julgamento Supremo Tribunal Federal (STF) julgamento do marco temporal de terras indígenas. O caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários, e está parado na Corte desde 2021.O tema tem relevância porque será com este processo que os ministros vão definir se a tese do marco temporal tem validade ou não. O que for decidido valerá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estejam sendo discutidos na Justiça. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A rara entrevista foi concedida por zoom. Raoni falou em sua língua e contou com a tradução do neto Patxon Metuktire. Leia aqui a versão completa:
Valor: Porque o senhor está fazendo essa grande reunião?
Raoni Metuktire: Nós, povos indígenas, sempre moramos no Brasil. Antes dos brancos nossos ancestrais habitavam aqui. Por isso é legítima a nossa luta. Estou convocando caciques de vários povos e Estados para estarmos juntos e formarmos uma aliança mais forte. Queremos ter reconhecimento do Congresso, do Estado e do governo não só agora, mas no futuro também: queremos um reconhecimento permanente dos nossos direitos.
Valor: É um momento importante para reunir as lideranças?
Raoni Metuktire: Eu estava observando, enquanto faço a minha luta pelo meio ambiente, pela terra e pelos direitos dos povos indígenas. Comecei a escutar algumas pessoas que pensam diferente. Alguns dizem o contrário do meu posicionamento. Foi quando pensei: “Acho que devo reunir os caciques, as lideranças e outros para a gente falar a mesma língua. Ter um posicionamento único e estar unidos para enfrentarmos os brancos.
(Patxon Metuktire esclarece o que o avô quer dizer: “Ele fala os brancos
pensando nos opositores no Congresso, no Judiciário e em segmentos contrários aos povos indígenas”).
É por isso que estou fazendo essa reunião. Eu havia comentado com o presidente Lula e o convidei para o encontro. Para que, além de eu falar, Lula também poder falar. Para que a gente se fortaleça. Caciques e lideranças indígenas precisam ter um posicionamento único.
Valor: São mais de seis meses desde que o senhor subiu a rampa com o presidente Lula. Como vê esse momento do Brasil?
Raoni Metuktire: Bolsonaro falava muita coisa ruim sobre nós, inclusive sobre mim. Então, comecei a apoiar o presidente Lula. Falei que quem tinha que ser o Presidente da República era o Lula.
Ele me convidou para encontrá-lo em Brasília. Na reunião no hotel, conversamos sobre a subida na rampa e a minha participação na posse. Falei para ele que íamos subir juntos. Nessa ocasião, Lula falou boas palavras para nós indígenas. Falou para mim: “Quero apoiar você, cacique, e fazer a demarcação para os indígenas e as comunidades que não têm”. Também falou sobre a preservação do meio ambiente, dos animais, dos peixes, e que a gente precisa cuidar desse ambiente como um todo. Agora estou esperando esse encontro acontecer na aldeia e lá quero que o presidente Lula assine um documento.
Esse documento diz que tem que haver respeito para com os povos indígenas, independente de futuros presidentes. Que governante nenhum pode mexer com a gente. Quero que o presidente Lula e eu, que a gente faça um ato com esse compromisso do governo com a comunidade indígena.
Valor: Como o senhor vê as ameaças aos povos indígenas?
Raoni Metuktire: São inaceitáveis. O Congresso, quando faz um trabalho bom, para nós indígenas também, a gente fica feliz. Mas não concordo com a atitude dos congressistas quando ameaçam povos indígenas.
Lá no Piaraçu, nesse chamado, vou conversar com o pessoal para a gente organizar uma audiência no Congresso Nacional. Não sei como será, mas quero uma audiência para, pessoalmente, falar com os parlamentares. O Congresso não pode trabalhar fazendo esse tipo de provocação, deixando a comunidade indígena triste com essas ameaças.
Valor: A sua vida, cacique Raoni, é uma vida de luta pelos povos indígenas. O senhor vê avanços nesses anos?
Raoni Metuktire: Quero falar para você sobre mim. Meu pai me contava muitas histórias e me dava conselhos. Quando cresci, fui trabalhar com os brancos. Conheci os irmãos Villas Bôas (Orlando, Claudio e Leonardo Villas Bôas foram os mais importantes sertanistas brasileiros) no Parque do Xingu. Comecei a entender um pouco da língua portuguesa. Cláudio e Orlando falavam, coincidentemente, histórias que meu pai também me contava. Sobre a chegada dos brancos, sobre os portugueses.
Os irmãos Villas Bôas também me falavam sobre o trabalho de Rondon (Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, famoso por apoiar indígenas no Brasil). Diziam que Rondon defendia os povos indígenas. Tinha aquela frase “Morrer, se preciso for. Matar nunca”. Os Villas Bôas falavam: “Você tem que trabalhar como Rondon e defender os povos indígenas.” Por isso, desde jovem, quem quer que fosse a autoridade que a gente encontrava, eu dizia que os povos indígenas têm que ser respeitados.
Da minha juventude até agora, fiz esse trabalho. Agora estou velho. É uma vida de luta.
Valor: O que o senhor diz aos jovens indígenas?
Raoni Metuktire: Falo para os novos líderes que eles devem continuar com a minha luta, de defender os povos indígenas.
Valor: Como os doadores internacionais?
Raoni Metuktire: É importante esse apoio. Quando vou viajar as pessoas me recebem e falam que querem me apoiar. Convidei muitas dessas pessoas para o encontro. Pedi para minha equipe fazer projetos para a gente ter apoio.
Valor: É ajuda na demarcação?
Raoni Metuktire: É isso mesmo. Estou defendendo a terra e os povos indígenas há muito tempo, por isso tenho apoio das pessoas de fora. Preciso do apoio para fazer novas delimitações e um marco no limite da terra indígena para que o branco veja que, dali para frente, é terra indígena. Assim vamos conseguir proteger os animais que estão dentro dela, proteger as florestas que estão na nossa terra, proteger os rios que estão no nosso território. Porque no entorno do nosso território não tem mais nada. Só tem pastos.
Como acabou, não tem mais floresta nem recursos no entorno, o pessoal está de olho, querendo o que sobrou na nossa terra. Não concordo com isso. A nossa forma de viver e usar a terra é diferente da do homem branco. O branco cria animais, cria galinha, usa máquinas para plantar soja, feijão, sementes. A gente vive diferente. Nós vivemos da caça dos animais das florestas. Por isso é que a gente precisa defender e cuidar delas. Para a gente viver delas.
Valor: Vai ter em agosto a Cúpula da Amazônia, em Belém, com presidentes de vários lugares. Será importante?
Raoni Metuktire: Fiquei sabendo da Cúpula quando estava no exterior, com Macron (Emmanuel Macron, presidente francês). Ele me disse que eu tenho que participar, que esse evento é importante. O que eles não podem é incentivar o desmatamento, como o Bolsonaro falava. As florestas precisam ser preservadas para garantir o equilíbrio do clima. Para ter menos calor. Quero participar desse encontro e falar com todos os presidentes para que trabalhem em prol da preservação da Amazônia.
Valor: Como o senhor vê o movimento indígena hoje?
Raoni Metuktire: Os jovens precisam se unir para defender o território e o povo. Sempre lutei pelo respeito e pelos direitos dos povos indígenas. Os jovens precisam se unir. Uma das pautas principais de agora do momento é pedir ao governo para ampliar as áreas indígenas. Porque nesse processo de crescimento da população indígena, mais tarde eles não terão mais territórios para habitar. Futuramente a nova geração precisará de território.
Valor: Quais outras pautas são importantes?
Raoni Metuktire: A garantia da sobrevivência é a paz. Os jovens precisam falar a mesma língua para garantir esse bem de todos.
Há muito tempo, quando outros caciques estavam vivos, a gente se reunia e tínhamos um único propósito: ter a mesma palavra, falar a mesma língua. A gente não ficava entrando em contradição. Nossa única missão era defender nossa terra dos brancos.
Valor: O senhor é o líder indígena mais respeitado e conhecido no Brasil, e no mundo. O que recomenda aos povos indígenas um momento tão complicado?
Raoni Metuktire: Penso que novos caciques devem fazer como nós. A gente se reunia, mantinha o foco em um objetivo único e coletivo, de defender a todos, o bem da coletividade. Eles têm que se unir. Se contrariarem um ao outro, não vai ter união. Têm que estar juntos para defender o que a gente defendeu e dar continuidade.
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