Ciclo eleitoral e financiamento da saúde: o caso dos subsídios
Por Carlos Octávio Ocké-Reis (*)
Alguns países oferecem incentivos governamentais aos contribuintes, mediante a redução dos impostos, para o consumo de planos privados de saúde.
Tal incentivo representa um gasto tributário, se percebido como imposto não recolhido ou como gasto público não aplicado diretamente nas políticas de saúde.
No detalhe, expressando visões antagônicas, a renúncia pode ser vista, ou reforçando a política de contenção de custos no setor público, ou promovendo a rentabilidade do setor privado (ou ainda, compensando os supostos efeitos negativos da carga tributária e do ‘abuso do usuário’).O Brasil segue essa tendência, uma vez que não só os gastos com planos privados de saúde, mas também com profissionais de saúde, clínicas e hospitais, podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar, tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, reduzindo a arrecadação tributária do governo federal.
Em particular, uma vez que os mecanismos privados de financiamento tendem a afetar, negativamente, o setor público de saúde, pode-se afirmar, de um lado, que a renúncia subtrai recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), que poderiam melhorar o acesso e a qualidade dos serviços; de outro, que a renúncia reforça a iniquidade, piorando a distribuição do gasto público per capita para certos grupos da população.
Nesse sentido, considerando esses efeitos colaterais sobre o financiamento do SUS e sobre a equidade do sistema de saúde brasileiro (público e privado / duplicado e paralelo), parece moralmente razoável que o Estado procure atenuar o conflito distributivo instalado com a aplicação de subsídios dirigidos aos estratos superiores de renda, que acabam favorecendo a lucratividade das operadoras de planos de saúde.
Entretanto, essa agenda apresenta limites no plano subjetivo e objetivo, que precisam ser negados e superados na atual conjuntura histórica: no curto prazo, a denúncia de tais distorções parece insuficiente para encorajar a adoção de medidas governamentais.
No plano ideológico, a renúncia não é percebida enquanto peça-chave para a reprodução do subsistema privado (afinal, não se trata de uma desoneração fiscal qualquer – pelo contrário – ela foi e é fundamental para a estrutura e a dinâmica do mercado de planos de saúde); no plano político, apesar do governo federal combater a pobreza e a desigualdade, contrariar determinados interesses enraizados na relação Estado/mercado/sociedade, pode gerar realinhamentos imprevisíveis no ciclo eleitoral: o governo federal pode ser contestado na rua e no voto pelas ‘classes médias’, que gozam desses subsídios e tem influência na opinião pública; pelos sindicatos do setor público e privado, cujos trabalhadores teriam uma elevação de suas despesas; pelo mercado, que perderia parte de suas receitas, uma vez que o gasto tributário patrocina o consumo de bens e serviços privados de saúde.
Apesar desse quadro defensivo, na atual correlação de forças, não é correto naturalizar essa situação (aceitá-la como natural, uma vez que resultou da ação humana, condicionada por interesses econômicos e políticos, neste período histórico), tampouco manter desregulada a prática da renúncia de arrecadação fiscal (afastada do controle governamental e do marco constitucional do SUS).
Dependendo do ritmo de crescimento da economia, das mudanças na política fiscal e do escopo das ações regulatórias da Agência Nacional de Saúde Suplementar haverá mais ou menos espaço para disputar outra hegemonia política-ideológica, construindo, organizando e mobilizando uma base social de apoio necessária para reduzir ou para eliminar os subsídios, alocando esse gasto público de forma direta para a atenção primária e para a média complexidade do SUS.
Estrategicamente, lutando por suas reivindicações no ciclo eleitoral, mas disputando sua agenda para além dele, no Estado e na sociedade civil organizada, o bloco histórico sanitarista deve lutar para ampliar os recursos, para melhorar a qualidade da gestão e para fortalecer a participação social do SUS, ao mesmo tempo em que cria estruturas e mecanismos institucionais para reduzir o gasto dos trabalhadores e das famílias com planos privados de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios, tornando o sistema de saúde brasileiro mais equitativo.
(*) Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia – DIEST-IPEA.