Cidadania: caminho para a concretização das igualdades sociais

Por Graziela Wolfart, Rafaela Kley e Thamiris Magalhães (IHU On-Line)

A cidadania se concretizará quando os direitos e deveres dos indivíduos forem transformados em mecanismos de proteção social às necessidades sociais, afirma Sonia Fleury

“A ideia da cidadania supõe uma inserção dos indivíduos na esfera pública através de um conjunto de direitos e deveres e de benefícios que se transformam na área social em benefícios sociais.” A afirmação é de Sonia Fleury. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, a pesquisadora afirma que “a cidadania é um principio de igualdade”. E completa: “na medida em que se criam sistemas libertários de política para que todos possam ter, de acordo com a sua situação, acesso a esses benefícios, há uma materialização da cidadania. A ideia da igualdade é aquela de que, diante da lei, as pessoas terão direitos e deveres conformados e que isso se transformará em mecanismos de proteção social para as necessidades sociais, de acordo com as políticas públicas”. Essas seriam, segundo Fleury, formas de materialização da cidadania. “É claro que ela envolve um componente físico, que é o componente da cidadania participativa em ação. No caso da sociedade brasileira, nós inovamos muito em relação à concepção de cidadania tradicional”, diz.

Pesquisadora na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Sonia Fleury é doutora em Ciência Política e mestre em Sociologia pelo IUPERJ, além de bacharel em Psicologia pela UFMG. Membro da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), no período de 2006 a 2008. Pesquisadora Titular Aposentada (1995) da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, onde coordenou centro de pesquisas em políticas e reformas de saúde. Foi presidente do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (CEBES), na gestão 2006-2009.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Como pode ser caracterizada a Seguridade Social no Brasil hoje?

Sonia Fleury – Desde a Constituição de 1988, houve uma mudança muito grande na maneira de tratar a proteção social no Brasil. Até esta Constituição, os direitos previdenciários e o direito à saúde eram ligados à condição de trabalhador no mercado formal. Não havia cobertura para quem não estava no mercado formal. O direito social era ligado à condição de trabalho. Não existia nem na Constituição um capítulo “ordem social”. Os direitos trabalhistas apareciam como direito social dentro da ordem econômica. Não estavam ligados à condição universal de cidadania. Então, a primeira grande mudança na Constituição é criar um capítulo específico da ordem social, em que entram várias questões, como a seguridade social, o ambiente, a educação e outras que fazem parte da área social. Essa foi uma grande mudança no sentido de ter no mesmo grau de importância a ordem social e a ordem econômica. A segunda mudança é que os direitos sociais passam a ser vinculados não à condição de trabalho, mas à condição de ser cidadão. E isso na seguridade social, que reuniria ações integradas de saúde, previdência e assistência. A assistência não constava das constituições brasileiras, com exceção da de 1934, mas como cuidado com os desvalidos e não como direito de cidadania. Pela primeira vez, a assistência entra como direito de cidadania. Há uma universalização dos direitos e uma integralidade da atenção. É claro que a previdência é diferente da saúde e da assistência, porque na previdência há uma contribuição ou da própria pessoa ou de outro por ela. No caso da saúde, isso não é necessário, pois ela é totalmente integral, e no caso da assistência é preciso que a pessoa prove que ela não tem condições de se sustentar; há uma série de requisitos para que ela receba os benefícios. Mas todos esses três estão hoje ligados à condição de cidadania com a perspectiva de universalização. Então, desvincula a ideia de que o beneficio social é só daquele que já pagou por ele. É claro que a política social tem um custo e alguém tem que pagar, mas na seguridade social se diz que não precisa ser a própria pessoa a pagar. A sociedade como um todo vai se solidarizar para isso.

IHU On-Line – Em que medida a Seguridade Social auxilia na diminuição da pobreza e das desigualdades sociais?

Sonia Fleury – Em primeiro lugar, o fato de que foi estabelecido na Constituição que nenhum benefício poderia ser menor do que salário mínimo. Antes, tínhamos benefícios, como os rurais, que eram ¼ do salário mínimo. Este, por exemplo, foi multiplicado por quatro a partir da Constituição. O atrelamento dos benefícios ao salário mínimo reduziu muito a pobreza no meio rural no Brasil. Nos últimos anos, o salário mínimo está crescendo acima da inflação. E toda vez que isso acontece temos mais redistribuição através de todos os benefícios sociais que são atrelados ao salário mínimo, como grande parte das pensões, das aposentadorias e também dos benefícios assistenciais como, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Este não é um programa de governo igual ao Bolsa Família. Ele é um benefício de direito de cidadania. Há uma diferença entre programas e direitos. O BPC é um benefício que tem condições muito restritas. As pessoas que se enquadram nas exigências podem automaticamente pleitear o BPC. A partir daí surgiram várias outras políticas, que são mais focalizadas, são programas, não ligados a sistemas universais. No caso da saúde, surgiu o programa Saúde da Família, focalizado em certas áreas, mas que se inclui dentro de um sistema universal. E apareceu toda essa política de combate à pobreza através de vários programas que depois foram unificados no programa Bolsa Família. Nesse caso, a condição para ingresso, para ter acesso, é uma renda familiar de até meio salário mínimo. As condições de ingresso são muito melhores do que o BPC, mas as condições do beneficio são muito piores, porque o valor máximo não alcança a metade do salário mínimo. Além disso, o Bolsa Família não é um direito constitucional. Se mudar de governo, se mudar de programa, pode acabar. Então, a partir das características da seguridade social que apontei, a pobreza foi particularmente reduzida, principalmente, pela aposentadoria rural, pelo fato de que os benefícios são atrelados ao salário mínimo, pelo valor crescente do salário mínimo, pelo BPC e pela Bolsa Família.

IHU On-Line – Podemos afirmar que a Seguridade Social é uma concretização da participação política da sociedade?

Sonia Fleury – A seguridade social, do ponto de vista da democracia, além dos benefícios, fez duas mudanças fundamentais no desenho do sistema político brasileiro, portanto, da institucionalidade democrática brasileira. A primeira é um pacto federativo. É a primeira vez, a partir da seguridade social, que se cria um modelo pactuado de federalismo, através de comissões bipartites, tripartites, em que os três níveis de governo deverão negociar e pactuar as relações entre os poderes da federação. Este é um novo desenho importante da democracia brasileira e de participação também, porque é uma forma de participação dos poderes subnacionais nas decisões do poder nacional. Há uma questão da participação que é relativa no interior do estado, do nível central para o nível local, envolvendo o nível estadual e como eles vão interagir através de fóruns que foram criados para a negociação. Esse é um modelo de participação intergovernamental. Outra coisa é o modelo de participação entre Estado e sociedade, que também foi criado na seguridade social através de dois mecanismos: a criação de conselhos em todos os níveis de governo nas políticas sociais e a criação das conferências. O mecanismo do conselho é um modelo institucionalizado de participação através de uma representação da sociedade civil e do Estado no processo de controle social e o outro modelo das conferências, que é mais de mobilização social, para a discussão de certos temas e para a criação de uma agenda política nova para o governo vinda de uma discussão com a sociedade. São inovações muito importantes em termos de concretizar a participação. No entanto, essa participação não segue o modelo deliberativo, que supõe que as decisões tomadas nessas instâncias obrigatoriamente deveriam ser transformadas pelo governo em políticas públicas. Não é o caso. O orçamento participativo é um modelo deliberativo de participação, ou seja, a partir daquelas decisões é que se mostra como vai ser aplicado e o governo segue aquilo à risca. No caso dos conselhos, há um debate, a aprovação de contas, uma série de prerrogativas que a lei concede aos conselhos, mas não é deliberativo no sentido de que a decisão tomada pelos conselhos seja necessariamente vinculante a uma dada política pública.

IHU On-Line – De que maneira a Seguridade Social pode ser relacionada ao conceito de cidadania?

Sonia Fleury – A ideia da cidadania supõe uma inserção dos indivíduos na esfera pública através de um conjunto de direitos e deveres e de benefícios que se transformam na área social em benefícios sociais. A cidadania é um principio de igualdade. Na medida em que se criam sistemas libertários de política para que todos possam ter, de acordo com a sua situação, acesso a esses benefícios, há uma materialização da cidadania. A ideia da igualdade é aquela de que, diante da lei, as pessoas terão direitos e deveres conformados e que isso se transformará em mecanismos de proteção social para as necessidades sociais, de acordo com as políticas públicas. Essas seriam formas de materialização da cidadania. É claro que a cidadania envolve um componente físico, que é o componente da cidadania participativa em ação. No caso da sociedade brasileira, nós inovamos muito em relação à concepção de cidadania tradicional.

IHU On-Line – Os recursos pagos pela Previdência Social são maiores do que os do Fundo de Participação dos Municípios, em quase 70% dos municípios brasileiros. Como a senhora avalia essa situação?

Sonia Fleury – Esse é o mecanismo de distribuição de renda, por um lado, que tem tido impactos econômicos muito importantes porque os grandes municípios e o próprio mercado dependem disso. Este último depende da redistribuição que está sendo feita. Por outro lado, mostra uma incapacidade muito grande dos municípios de gerar renda. Então, por um lado, é bom, porque está redistribuindo e está indo para o interior do Brasil, está fazendo a economia circular, impediu a crise de ter um impacto econômico forte no Brasil, exatamente porque existia redistribuição e, portanto, havia um mercado interno que pudesse consumir. Tanto do ponto de vista social, quanto do ponto de vista econômico, a descentralização dos recursos que antes estavam somente nas grandes metrópoles, chega para o interior através de políticas públicas, para pessoas e municípios pobres e isto é muito importante para homogeneizar melhor o Brasil.

A outra questão é mostrar a dependência muito grande dos municípios do governo central, e isto teve a ver com a liberalidade da criação de municípios, que foram criados sem nenhuma política de sustentabilidade local, ou seja, é preciso criar capacidade destes municípios para o desenvolvimento local para que eles não fiquem a vida inteira atrelados a transferências, sejam elas via fundo de participação, sejam via políticas sociais. Os municípios hoje vivem disto, ou de fundo de participação ou de políticas sociais, mas eles não têm capacidade de geração própria de emprego, de riquezas. E isso não é bom, porque o Brasil segue com essa diferenciação muito grande entre interior e grandes cidades. Mas isto está melhorando porque, na verdade, se observamos as regiões do Brasil, o desenvolvimento, o crescimento maior hoje não é mais no Sudeste nem no Sul, ele é no Centro-Oeste e no Norte. Então, existe uma tendência de crescimento que está sendo levada para outras áreas, mas nós ainda temos a dificuldade de sustentabilidade em termos de projetos locais de desenvolvimento. Uma agenda prioritária do governo seria o desenvolvimento das potencialidades de cada local.

IHU On-Line – A Previdência Social cumpre adequadamente o papel de concessão dos benefícios?

Sonia Fleury – Ainda há muito que se mudar na previdência, porque existe uma parcela muito grande da população, acredito que 40%, que está fora da cobertura. Claro que isso depende do crescimento econômico. Se as pessoas estão no mercado, elas também estão aumentando a sua inclusão no mercado formal e terão cobertura previdenciária. Mas a cobertura previdenciária não pode estar totalmente atrelada ao mercado, senão a política social passa a ser uma política que somente reproduz as desigualdades do mercado. Se olharmos em termos de redistribuição, a não ser nos benefícios para o setor rural, a previdência é a política social menos progressiva, porque ela menos redistribui, ela reproduz. Quem ganha muito vai ter muito, quem ganha pouco vai ter pouco, então ela não é uma política redistributiva, porque ela está muito atrelada ao salário. Eu acredito que se quisermos ter uma política de cidadania mais igualitária na previdência, nós vamos ter que romper, como já se rompeu na área rural, com essa relação entre contribuição e benefício, porque esta é uma relação perversa que preserva a desigualdade através de política social. Então, é preciso encontrar fontes de financiamento que não sejam somente o salário para sustentar a inclusão destes outros 40% que estão fora. É preciso investir mais ainda em políticas que possam incluir na previdência social sem esperar que a pessoa contribua. A sociedade é que tem que contribuir como um todo.

IHU On-Line – Por que a política de saúde deve ser tratada como política social?

Sonia Fleury – A política de saúde é uma política de atenção à vida. Não há cidadania e não há medidas na sociedade se não tiver vida pessoal. Talvez seja a política social por excelência, porque ela diz respeito à possibilidade de viver, não só viver, mas viver humanamente, em boas condições para poder participar da esfera pública. Não se pode pensar em um sujeito que vai ter direitos civis se ele está morrendo. É preciso ter garantida das suas condições, principalmente nos momentos que ele tenha riscos, que as políticas possam prevenir contra estes riscos e dar uma qualidade de vida boa. Além disso, o modelo para o pacto federativo, para os conselhos, para todo o desenho novo da cidadania no Brasil veio do movimento sanitário, da área de saúde. Ela é a única política das políticas sociais que é totalmente universal, portanto está mais ligada ao conceito de cidadania universal, uma vez que não prevê contribuições na previdência, nem que você tenha que provar que está pobre, ela está ligado a sua existência como cidadão. Então, acredito que ela é por essência a política social, além de ser uma política que tem interface com todas as outras, porque se não tiver saneamento, não tiver condições de moradia, não tiver salário, se a pessoa não tiver tudo isso ela não vai viver bem e isso vai afetar a saúde dela.

IHU On-Line – De que maneira a Proteção Social está relacionada ao Welfare State (Estados de Bem-Estar Social)?

Sonia Fleury – O surgimento da proteção social pode ter vários formatos. A ideia da proteção social como o Estado de Bem-Estar Social é quando esta proteção deixa de ser um modelo caritativo assistencial e também corporativo, só de seguro para trabalhadores, para ser, pela primeira vez, um modelo de proteção para a cidadania. Isto que é chamado de Estado de Bem-Estar Social. É, pela primeira vez, assumir que os cidadãos têm direitos sociais e que o Estado deve através de tributos, etc., resguardar estes direitos de proteção social, assim como os deveres de contribuição de quem pode contribuir. Esta é a ideia do Welfare State, ou seja, é um conceito muito vinculado à noção de construção de uma proteção social no modelo de seguridade social, ou seja, de garantia de direitos de acordo, não com contribuições ou de outros vínculos, mas com as necessidades do cidadão, garantidos pelo Estado e por isso se chama Estado de Bem-Estar Social.