Como garantir eqüidade de acesso ao SUS nos hospitais filantrópicos que comercializam planos de saúde próprios?

Uma nova modalidade de planos de saúde está crescendo no país e já conta com mais de dois milhões de clientes. Trata-se dos planos de saúde oferecidos pelos hospitais filantrópicos que, dessa maneira, encontraram uma saída para complementar sua fonte de receita, sendo inferior apenas à fonte do SUS, que ainda é o principal responsável pelos recursos desses hospitais. O Blog do Cebes entrevistou especialistas no assunto para ampliar o debate sobre essa situação.

Em geral, os hospitais filantrópicos com planos próprios oferecem preços menores do que aqueles das demais operadoras de planos de saúde do mercado, constituindo-se em alternativa para os segmentos médios da população. Isso é possível devido à prestação direta de serviços de saúde para seus clientes, geralmente feita pelos próprios hospitais, além dos incentivos fiscais disponíveis para o setor filantrópico e da amortização de parte de seus investimentos por meio de financiamentos públicos, proporcionados pela oferta concomitante de serviços ao SUS.

A pesquisadora Maria Alicia Ugá, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz), coordenou um estudo que analisou o perfil e funcionamento dos planos de saúde que são oferecidos por hospitais filantrópicos. A equipe central do estudo foi composta pelos pesquisadores Sheyla Lemos, Pedro Barbosa, Margareth Portela, Silvia Gerschman e Miguel Murat Vasconcellos.

De acordo com a Alicia Ugá, esses planos de saúde constituem-se numa alternativa suplementar à do SUS, já que, por um lado, trata-se de um sistema herdado dos planos de saúde que estavam vinculados às casas de beneficência, por meio dos chamados planos de associados. Além disso, a busca dos hospitais por fontes adicionais de recursos impulsionou a criação dessa modalidade de planos de saúde.

Para a diretora do Cebes, Ligia Bahia, especialista em Saúde Suplementar, os hospitais filantrópicos possuem um caráter híbrido, por apresentarem uma estrutura jurídica e legal que é privada, mas por terem financiamento de recursos públicos. “Os hospitais filantrópicos atuam como estabelecimentos privados quando decidem investir em seus leitos e equipamentos, dispondo parte deles para empresas privadas de plano de saúde ou secretarias de saúde. Assim, o perfil assistencial em favor dos procedimentos mais rentáveis e não das necessidades de saúde. Esse status privado compromete a inserção adequada dos hospitais filantrópicos na rede do SUS”, completa.

O que muito se questiona sobre esses planos de saúde está relacionado à eqüidade no acesso da população aos serviços do SUS, já que o sistema público de saúde financia aproximadamente 64% dos recursos das instituições filantrópicas, o que corrobora para o direito de todos ao acesso gratuito.

Há que se notar, contudo, que ao mesmo tempo, estes hospitais são prestadores de serviço para o SUS e para os seus próprios planos, estabelecendo uma evidente concorrência dentro do serviço público. A pesquisadora Alicia Ugá complementa: “Em alguns casos, o fato da pessoa possuir o plano de saúde encurta as filas de espera – inclusive do próprio SUS – e, portanto, introduz desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Isto ficou evidenciado na pesquisa qualitativa que desenvolvemos através de grupos focais realizados com clientes desses planos”.

Financiamento

Geralmente, a oferta de planos de saúde pelos hospitais filantrópicos é defendida como uma alternativa para complementar os recursos necessários para a manutenção dos serviços, a fim de ampliar a estrutura e, até mesmo, melhorar o atendimento. Embora o SUS seja o principal mantenedor, para os hospitais esses planos representam uma importante forma de complementação da renda, constituindo-se em uma dupla porta de entrada.

Quanto a essa situação, Ligia Bahia mostra-se categórica. “A comercialização de serviços de hospitais filantrópicos na modalidade pré-pagamento não deveria, a rigor, sequer ser caracterizada como um plano de saúde. Além disso, é inadmissível que o estatuto de filantropia seja conservado para organizações que integrem seu patrimônio a partir de transações, nitidamente, financeiras. A existência de uma outra razão social para a comercialização de planos privados de saúde só agrava o problema”.

Ao mesmo tempo, os planos de saúde filantrópicos podem estabelecer uma relação de concorrência aos serviços das grandes operadoras, forçando a queda dos preços, já que os costumam ser de 20 a 30% mais baratos, oferecendo serviços de média e alta complexidade para as classes B, C e D.

Para a diretora do Cebes, essa concorrência não é válida, pois não atinge as grandes seguradoras. “Hoje há uma nítida tendência de comercializar planos com uma rede assistencial extremamente restrita. Os planos dos filantrópicos concorrem com os “planinhos” de poucos estabelecimentos acessíveis. Isso caracteriza quase uma compra de senha para passar à frente na fila do SUS”, argumenta Ligia.
O estudo de Alicia Ugá comprova a quase inexistente concorrência, uma vez que o perfil dos planos de saúde filantrópicos mostrou que esse segmento atua, principalmente, no interior, em pequenos municípios, onde existem operadoras com planos de abrangência municipal e um baixo número médio de beneficiários.

“Este característico mercado peculiar evidencia as limitações quanto à expansão e os riscos referentes à estabilidade e solvência do negócio em médio e longo prazo. A necessária oferta do rol de procedimentos estabelecido pela ANS para os planos novos e as obrigações para migração dos planos antigos aos novos são claros constrangimentos para as operadoras de hospitais filantrópicos, que padecem de escala quanto ao número médio de beneficiários e, portanto, têm limitações quanto ao compartilhamento do risco entre os segurados”, observa Alicia.