Conheça o estudo “A saúde nos programas de governo dos candidatos a prefeito das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro nas eleições de 2020”
produzido por Ligia Bahia (UFRJ) e Mário Scheffer (USP); acesse o documento na íntegra no final do texto
INTRODUÇÃO
As eleições municipais – de vereadores e prefeitos – estimulam debates sobre as cidades e, por isso, são consideradas “locais”, em contraposição às nacionais e nos estados, nas quais a disputa tende a gravitar em torno de temas e proposições estruturais.
No Brasil, como na maioria dos países, as eleições não são unificadas e os resultados dos escrutínios nos municípios não predizem exatamente o que ocorrerá dois anos depois. A preferência partidária por prefeitos e vereadores pode não se confirmar nas eleições proporcionais e majoritárias para os âmbitos estaduais e nacional.
Em 2020, as eleições para as prefeituras se voltam ao equacionamento de desafios específicos, mas também estão atravessadas por uma crise sanitária global, que degrada as condições de vida e aumenta o desemprego e as desigualdades nas cidades.
A propagação do coronavírus interferiu no ambiente eleitoral, no adiamento de datas, nos formatos de campanhas e nas regras sanitárias para o voto presencial, enquanto as dificuldades para controlar a pandemia, organizar o sistema de saúde, conter a transmissão e atender adequadamente aos casos de covid-19 nutrem proposituras e controvérsias entre candidatos.
Outra singularidade do pleito municipal de 2020 é o fim das coligações partidárias nas eleições para cargos proporcionais – de vereadores –, o que incide negativamente sobre os pequenos partidos, que estarão menos representados nas Câmaras Municipais, especialmente nas cidades de menor porte.
São condições inéditas que, resguardadas naturezas e consequências distintas, incidirão na disputa eleitoral municipal.
Embora se atribua às eleições nas cidades um estatuto “inferior”, em termos de densidade dos debates, a força dos partidos políticos no país é inextricavelmente associada ao número de vereadores e prefeitos. O desempenho eleitoral para as prefeituras é vital para os partidos e coalizões. As eleições de 2016 resultaram na redução de votos no PT e no PSDB, preservação da performance eleitoral do PMDB e o aumento da presença de partidos de centro e direita no âmbito municipal.
Descontadas as peculiaridades dos processos locais, os resultados eleitorais de 2020 se projetarão, como redesenho do quadro partidário, para o futuro. A pretendida manutenção do poder do PSDB em São Paulo ou a consolidação da liderança de Bolsonaro no Rio de Janeiro, por exemplo, dependem das próximas eleições municipais.
Ameaças à democracia, que perduram no país desde 2013, serão testadas nas eleições municipais; e a denominada hiper-fragmentação partidária cederá vez a um sistema com número menor de partidos, mas ainda fracionado, segundo balizamentos nem sempre nítidos quanto à representação de interesses.
Em contraponto às teses sobre a amplificação das desconexões entre partidos, representação e aspirações políticas, o número de candidaturas aumentou, sugerindo que as eleições municipais seguem importantes para o recrutamento das elites políticas no país. Em 2016, foram registrados 16.565 candidatos a prefeito e 463.372 a vereador e em 2020 a quantidade dos aspirantes a cargos políticos aumentou para 19.178 e 512.905, respectivamente. Os recursos financeiros destinados às eleições também cresceram. Os valores repassados para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) foram de R$ 1,7 bi em 2018 para R$ 2 bi em 2020.
O acervo de estudos sobre eleições municipais brasileiras contribui para contextualizar o monitoramento do tema saúde nos programas eleitorais. O trabalho seminal de Fábio Wanderley el al (1978), sobre como os partidos se organizam e como o voto local é decidido, e produções mais recentes (Lavareda e Teles, 2020; Nicolau, 2020) destacam a crise de representação, a radicalização ideológica, o desgaste de legendas tradicionais, as pautas identitárias e as polarizações mediadas por redes sociais na Internet. Somam-se estudos que buscam compreender as disputas eleitorais e os resultados das eleições locais na perspectiva de crises nacionais (Cervi e Neves, 2019), gastos de campanhas (Guimarães et al, 2019), volatilidade dos eleitores na escolha de candidatos (Arquer, 2019), fatores associados ao comparecimento e ao voto (Souza, 2019), atributos pessoais e chances de sucesso de candidatos a prefeito (Dufloth et al, 2019), coligações partidárias e fragmentação eleitoral (Melo et al, 2016), dentre outros.
Em períodos eleitorais, os partidos e seus candidatos elaboram programas, também denominados manifestos ou plataformas, que são documentos para expor promessas, posições e prioridades políticas a serem executadas pelos vencedores das eleições. São indicadores de posições dos partidos, em lugar e tempo determinados, sobre temas de políticas públicas e a respeito de questões cotidianas enfrentadas ou percebidas pelos eleitores (Dandoy, 2007).
Autor clássico de estudos sobre eleições, Downs (1957) cunhou a expressão paradoxo programático, ao considerar que os programas não seriam um bom elemento de análise sobre competição eleitoral. Pelo fato de terem relevância nas disputas, esses manifestos de candidatos que pretendem vencer a disputa e buscam votos do eleitor mediano acabariam tendo mais semelhanças que diferenças – mais convergem do que competem.
Os estudos de competição entre partidos passaram a considerar, já nos anos 1980, a teoria da “saliência” (Budge e Farlie, 1983), que valoriza os programas e a formação de agendas em campanhas políticas. Os partidos ou candidatos não fornecem respostas para todos os problemas que afetam os eleitores, mas buscam se concentrar em questões e temas que podem ser vantajosos no processo eleitoral – para seduzir o eleitorado mais cativo ou angariar novos eleitores. A ênfase seletiva ou saliência, mais do que a confrontação direta, seria uma estratégia de competição eleitoral.
As plataformas eleitorais também foram consideradas por estudiosos que analisaram a escolha dos eleitores de acordo não apenas com as propostas dos candidatos ao cargo pretendido, mas também mediante avaliação retrospectiva de partidos e candidatos à reeleição, focando no desempenho de governos e no cumprimento das promessas (Dalton et al, 2011).
O bom desempenho posterior de um programa eleitoral (Theres, 2020) estaria associado à capacidade de maximizar os benefícios da política (cumprimento das promessas) e ao fato de o eleito ser capaz de implementar ou não o que prometeu (competência).
Entretanto, a presunção sobre a relevância dos programas eleitorais não significa ignorar as relações entre a campanha e o governo. Promessas eleitorais dos partidos não são sempre “conversa fiada”, mas nem todas serão cumpridas pelo mandatário (Thonson et al, 2017).
O projeto alemão Marpor (Manifesto Research on Political Representation), o maior esforço mundial de pesquisa sobre eleições, reúne e oferece à comunidade científica referenciais teóricos e abordagens metodológicas para classificar e analisar manifestos partidários e programas eleitorais, além de organizar um vasto acervo de revisão de artigos e base pública com material de mais de 780 eleições em 60 países (Marpor, 2020).
A ênfase nos programas eleitorais se afirmou, portanto, como tema de estudos na literatura estrangeira (Salles, 2020) – e a análise das plataformas constitui uma das estratégias metodológicas possíveis para estudar políticos e partidos (Codato et al, 2019). Mas essas abordagens não costumam integrar estudos sobre competição eleitoral no Brasil, os quais focam as análises em economia, ideologia e identidade partidária.
Faz menos de uma década, com a Lei nº 12.034, de 2009, que tornou-se obrigatório o registro no TSE de programas de governo de todos os candidatos a cargos executivos no Brasil. Apesar de não haver nenhuma regra ou recomendação sobre padronização mínima, cabendo a cada partido ou candidato decidir quais conteúdo e formato desejam explicitar no momento do registro, trata-se de grande avanço em relação ao cenário anterior –de total ausência de documentos formais sobre planos e proposituras eleitorais.
As bem-vindas exigências de apresentação das intenções para o exercício dos mandatos não asseguram, contudo, a coerência partidária e o compromisso de efetivação das proposições durante o exercício dos car-gos. Um trabalho recente sobre programas eleitorais lembra que as eleições no Brasil são permeadas por alto teor personalista, particularismos e clientelismos. Partidos fracos restringem a competição programática, sobretudo nos sufrágios municipais. A análise de 3.410 plataformas de candidatos a prefeito de 1.385 municípios nas eleições de 2016 concluiu que a fragmentação, a inconsistência e a apresentação difusa são traços marcantes de boa parte dos programas, mesmo assim se identificou competição programática no nível local, e propostas distintas nas plataformas de oponentes, em alguns casos alinhadas a partidos (Salles e Guarnieri, 2019).
Consequentemente, seja em função das polêmicas teóricas sobre o valor da análise de programas eleitorais, seja pelas especificidades das eleições brasileiras, é necessário relativizar os resultados de esforços para mapear o repertório de políticas, programas e ações expostos em manifestos dos partidos e coalizões partidárias.
Quanto à saúde, a identificação da origem partidária de propostas tem sido uma ferramenta útil. Nenhum partido político no Brasil é contrário ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas interpretações e reinterpretações dos políticos que exercem cargos executivos sobre o direito à saúde variam ao longo dos processos eleitorais.
Ainda que o peso dos partidos para a formulação de políticas de saúde seja secundário em face de instituições executoras, como ministérios, secretarias e agências reguladoras, órgãos internacionais e centros de ensino e pesquisa, o exame dos programas eleitorais permite delinear tendências, apreender intenções ou prenunciar possíveis consequências para o sistema de saúde (Scheffer e Bahia, 2018).
Estudos anteriores sobre os programas de candidatos a presidente da República nas eleições de 2018 (Scheffer e Bahia, op cit) e de 2014 (Bahia e Scheffer, 2014) constataram que muitas plataformas expressam concepções genéricas, jargões e propostas fragmentadas sobre saúde. Investigação sobre as propostas para a saúde nas eleições presidenciais da França, Espanha e Estados Unidos (Catalan-Matamoro e Tuñón-Navarro, 2020), assinalaram que a visão sobre o tema nos programas dos candidatos espanhóis foi estreita e superficial, predominaram questões pontuais como custos, cuidados preventivos e telessaúde. A campanha francesa foi a única que aprofundou assuntos mais desafiadores para postulantes a gestores de políticas públicas, como as desigualdades em saúde e no uso dos serviços.
Nos EUA a saúde teve lugar destacado nos primeiros embates entre Joe Biden e Donald Trump em 2020. Foi um revival dos embates com Hillary Clinton quando os democratas apoiaram a continuidade e extensão das coberturas do Obamacare, visando reduzir o número de pessoas sem seguro de saúde, enquanto Trump fez da promessa inversa um dos pontos programáticos que pode ter contribuído para sua vitória em 2016 (Galea et al, 2020).
Em termos gerais, a saúde tem destaque nos programas de eleições nacionais e regionais de muitos países, embora, quase sempre, tal como ocorre com educação e o meio ambiente, fique mais à margem, quando comparada ao protagonismo de temas como economia, emprego, segurança e antagonismos do momento da vida nacional ou local. No Brasil, o tema que adquiriu centralidade recente na agenda pública é o da transferência de renda, dos auxílios pecuniários emergenciais, tanto no âmbito nacional, como nas capitais.
Contudo, a coincidência, em 2020, do calendário das eleições brasileiras com elevadas taxas de transmissão do coronavírus, lançam a saúde, que já ganhava espaços nas disputas municipais, mais ao centro do debate eleitoral. Avaliações positivas e críticas ao desempenho dos governos municipais para controlar a pandemia foram temas obrigatórios nos primeiros embates entre os candidatos à reeleição e opositores. Como as reiteradas manifestações sobre deficiências na saúde divulgadas por pesquisas de opinião, e escancaradas pela epidemia, se expressam nos programas eleitorais?
Com enfoque nas eleições nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, este trabalho sistematiza proposições para a saúde e procura desenvolver uma análise sobre semelhanças, diferenças e ausências nos programas, com o intuito de contribuir para sinalizar consensos e divergências e, assim, estimular um debate mais aprofundado ao longo do processo eleitoral. Trata-se de uma abordagem preliminar, para tentar compatibilizar as contribuições acadêmicas com o ritmo do processo eleitoral, necessariamente mais acelerado do que os tempos de decantação exigidos para a produção científica.
Advertências sobre os limites do esforço de organização de informações e hipóteses derivadas da análise dos programas são essenciais. O curto intervalo de tempo decorrido entre a divulgação dos programas e esta primeira publicação conferem um caráter necessariamente provisório ao trabalho. O risco da incompletude e eventuais equívocos é concreto, porém contrabalançado pela compreensão sobre a responsabilidade, também objetiva, de professores e pesquisadores da área de saúde pública, visando o adensamento do debate sobre políticas de saúde.