Contra o subemprego para um “Sub SUS”
Nelson Rodrigues dos Santos*
É indiscutível o grande mérito da Medida Provisória 021/2013 ao ampliar e aprofundar como nunca o debate da elevação inadiável do acesso aos serviços médicos para a maior parte da população, inseparável da fixação dos médicos nos municípios e bairros mais carentes em todas as regiões do país. Nesta contribuição ao debate trazemos, na sua terceira parte, recomendações oportunas e viáveis com resultados desde já. Mas com o cuidado de evitar que, em curto prazo, sobrevenham a ineficácia e fracasso, caso não sejam consideradas, também desde já, as condições para adesão/fixação desses profissionais, assim como a rica acumulação de responsabilidades e competências das entidades de ensino e da gestão pública na saúde.
I. Condições para a Adesão/Fixação de Equipes Multiprofissionais de saúde no SUS
As nove condições a seguir apresentadas não objetivam avançar no tema: têm como único objetivo destacar a desastrosa omissão da realização da nossa política pública de saúde, no que tange o papel decisivo dos profissionais de saúde.
1 –Existência de redes de UBSs, Ambulatórios de Especialidades (Policlínicas), Serviços de Diagnose e Terapia, Unidades de Pronto – Atendimento e Hospital Regional. Se houver condições precárias, deve haver planos de implementação e qualificação com metas, etapas pactuadas, cronograma de execução e compromisso orçamentário.
2 –Condições de trabalho atrativas e necessárias aos resultados (acomodações, equipamentos, medicamentos e outros materiais): direitos da população usuária e dos profissionais de saúde que integram as equipes.
3 – Ingresso por concurso e outros processos seletivos públicos, com carreira e remuneração justos e atrativos, incluindo diferenciais voltados para a adesão/fixação dos médicos e demais profissionais nas regiões e municípios mais distantes/carentes e periferias urbanas mais carentes.Deve ser agregada a essa condição, uma expressiva ampliação e qualificação do PROVAB.
4 – As vagas para médicos e demais profissionais assim como o perfil profissional mais generalista ou especialista, devem ser definidas em cada município e região de saúde segundo as necessidades da população.
5 – É parte obrigatória da gestão pública em cada Região de Saúde, a educação permanente com ênfase nas atualizações e aprimoramentos de todos os trabalhadores de saúde, as graduações e pós-graduações profissionalizantes, priorizando a Atenção Básica e o suporte de especialidades estratégicas de acordo com as necessidades regionais.
6 – Agilidade e eficácia no gerenciamento público da prestação de serviços, com autonomia gerencial e orçamentária, além da participação dos trabalhadores de saúde no acompanhamento do gerenciamento. Exemplos:
a) concursos públicos, reposição de pessoal, licitações e reposição de material, etc, e
b) agendamento eletrônico de consultas, exames, tratamentos e internações, assim como comunicação eletrônica ao usuário de confirmação de agendamentos, resultados de exames e outros.
7 – Garantia do acesso às tecnologias necessárias para a realização da Integralidade e Equidade nas redes regionalizadas de serviços, desde que apresentem boa relação custo-efetividade, eficácia e segurança.
8 – Vontade política governamental nacional para ordenamento estratégico das regiões de saúde com cronograma de metas e etapas da realização concreta das condições acima expostas.
Todas essas condições já contam há mais de duas décadas com grande experiência acumulada das comissões intergestores e dos conselhos de saúde do SUS, especialmente nas áreas do planejamento, avaliação, controle, gerenciamento, participação, na aplicação das Normas Operacionais, na realização da Atenção Básica, na produtividade, na aplicação do Pacto da Saúde (pela vida, em Defesa do SUS e de Gestão) e na aplicação do Decreto 7508/2011 e Lei 141/2012. Um exemplo: na efetivação das Diretrizes Nacionais para Planos de Cargos, Empregos, Carreiras e Salários, os concursos públicos e contratações de profissionais de nível superior podem,parcial ou totalmente ser efetivados ao nível regional por consórcios públicos intermunicipais, com a necessária agilidade e eficácia, evitando dificuldades e impedimentos nos municípios de pequeno porte. Esta modalidade deverá ser sinérgica com os concursos e contratações pelos municípios e Estados, desde que cumpridas as diretrizes nacionais, que por sua vez deverão ser atualizadas e enriquecidas em função da construção do SUS.
9 – Vontade política governamental junto à sociedade para comprometer os recursos financeiros suficientes e crescentes para a realização concreta de cada meta em cada etapa no rumo da atenção integral e equitativa à saúde em cada região de saúde de um sistema público de saúde universalista constitucionalmente estabelecido em 1.988. Sabemos que o pleno exercício destas condições exigirá necessariamente que a parcela federal no financiamento do SUS chegue ao mínimo de 10% da Receita Corrente Bruta.Por simples questão de coerência e consciência, essa vontade política deve contemplar a precedência do direito de cidadania e do serviço público acessível de qualidade, pré-pago com os impostos e contribuições sociais arrecadados. Como decorrência, a desativação de todas as formas de subvenções e subsídios públicos ao desenvolvimento do mercado de serviços de saúde,deixando as empresas e entidades de planos e seguros privados assumirem e competirem sob as leis do mercado.
Estas e outras condições vêm sendo objeto de incontáveis esforços e tentativas nos 25 anos do SUS, mas avançam somente até os limites financeiros e político-administrativos impostos pela esfera federal. O SUS é capaz de cumprir plenamente essas condições, tão logo a política federal, ao contrário de limitar, compartilhe nesse cumprimento. Por outro lado, o cumprimento dessas condições deve priorizar as regiões mais distantes/carentes e periferias urbanas mais carentes e menos acessíveis, em respeito à diretriz da Equidade. Mas deve sedar também nas demais regiões e centros urbanos em respeito à diretriz da Universalidade e adesão das classes médias e dos trabalhadores ao SUS.
Como em todo processo socialmente positivo e consistente de mudanças na política pública, a desejada adesão e fixação dos médicos e demais profissionais de saúde não permaneceria estancada até a plena concretização de todas as condições expostas e outras. As práticas políticas e históricas mostram que o compromisso público governamental, visível e aberto, com os objetivos finalísticos constitucionais, e com metas, etapas e prazos democraticamente pactuados, além de providências concretas de recursos e operações imediatas iniciais, são suficientes para o início da resposta da sociedade, incluindo o início da adesão e fixação dos profissionais, agora, além de seu trabalho, também como cidadãos interessados na implementação das condições comprometidas e do próprio SUS. Como até agora esse compromisso público governamental não foi assumido, ainda é tempo de pagar para ver o início de adesões e fixações, talvez surpreendente.
Além de reequilibrar o mercado de trabalho para os profissionais de saúde por meio da “civilização” do setor público e da relação público – privado, a implementação das referidas condições, ainda que gradativa por metas e etapas, certamente proporcionará credibilidade e viabilidade para outro objetivo não menos importante: o de avançar na implementação e qualificação dos estágios profissionalizantes do ensino médico e demais profissionais da saúde. Este objetivo vem sendo formulado e proposto há três décadas pelas entidades ligadas ao ensino da saúde e à gestão do SUS. Algumas recomendações vem sendo resgatadas e formuladas como alternativa à MP nº 621/2013, por exemplo, de entidades como a ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica), faculdades como a FCM/UNICAMP e de estudiosos como a referência Gastão Wagner de S. Campos, além das entidades historicamente ligadas à Reforma Sanitária no Brasil, e que serão referidas no segundo capítulo deste texto.
II. Responsabilidades e Competências das Entidades de Ensino e de Gestão Pública da Saúde, Acumuladas desde os anos 80
1 – Anos 80 nos debates da reforma sanitária com participação da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) quanto a reformas curriculares e campos de estágio em unidades extra – hospitalares.
2 – Anos 90 com o SUS, a Comissão Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico – CINAEM, (ABEM, CFM, AMB, FENAM, DENEM e outras): análises e avaliações do ensino médico , proposições de reformas e diretrizes curriculares voltadas para ensino e pesquisa em saúde em um sistema público universalista, integral e equitativo. Emerge também a Associação Brasileira de Hospitais Universitários de Ensino – ABRAHUE com análises e proposições quanto à inserção dos hospitais.
3 – Na Comissão Intergestores Tripartite e Conselho Nacional de Saúde – CIT e CNS: Normas Operacionais Básicas, Diretrizes para Norma Operacional de Recursos Humanos do SUS, Diretrizes para PCCS no SUS, Experiência inédita de gestão descentralizada e produtividade para inclusão de quase metade da população, Pacto pela vida, em Defesa do SUS e de Gestão (2006) e dispositivos diretamente voltados para a gestão de pessoal e gestão regional no Decreto 7508/2011 e Lei 141/2012.
4 – Anos 90 e 00: Avançam e são aprovadas as diretrizes curriculares nacionais, emerge a Rede Unida que mobiliza a articulação e integração ensino – serviço – comunidade sob as diretrizes do SUS. Várias comissões inter – institucionais de assessoria ao MEC convocadas para analisar e propor sobre a criação de Escolas Médicas, diante do crescimento explosivo das particulares, a maioria com incontrolável baixa qualidade principalmente nos campos de estágio.
Nessas mesmas três décadas em que se acumularam tão ricas experiências e proposições para a realização das políticas públicas constitucionais, o MS e MEC revelaram-se vulneráveis às estratégias anti–públicas e anti-cidadania, mas sensíveis às estratégias pró-consumidores e pró-mercado. Vem predominando estímulos e polpudas subvenções à criação e funcionamento de faculdades privadas em todas as áreas e, na saúde, os planos e seguros privados de saúde, a maioria de má qualidade que constituem hoje ramos de acumulação intensiva de capital, com entrada pesada de capital internacional e financiamento de campanhas eleitorais. Só na Medicina, entre 60 e 70% dos formandos são de faculdades privadas, compelidos a repor ou compensar os gastos com as mensalidades de 6 anos, dificuldade adicional à inserção no SUS. Por outro lado, de 60 a 70% do pessoal de saúde no SUS são terceirizados com relações e condições de trabalho extremamente precarizadas. Tudo consequência do drástico desinvestimento federal no SUS, isto é, na Atenção Básica, na Atenção Integral, na Gestão e nas Condições de Trabalho. O rico e extenso conjunto de avaliações e proposições dedicadamente produzido e apresentado por três décadas, referido nos quatro tópicos iniciais, vem sendo desconsiderado solenemente pelo MS e MEC.
Em regra as más e péssimas condições de trabalho e demais desestímulos profissionais predominantes na Atenção Básica e Assistência de média densidade tecnológica, retiram do SUS decisiva capacidade de disputa de opções no mercado de trabalho, e esse fator deve ser devidamente considerado em contraposição à apressada e cômoda uni-causalidade debitada ao mercadismo, ambição e corporativismo. O mercado de trabalho resultante para os profissionais de saúde acabou sendo o maior fator gerador da busca de especializações, de regiões mais desenvolvidas e de nichos de mercado para os profissionais se estabelecerem, além do corporativismo. O sistema público afora poucas exceções, encontra-se tolhido para colocar-se como alternativa atrativa para a realização profissional e pessoal.
Não por outro motivo, dos atuais 371 mil médicos atuando no país, 247 mil estão no sul e sudeste enquanto 124 mil no norte, nordeste e centro-oeste. O país está com 1,9 médicos por mil habitantes, temos 21 Estados entre 1 e 1,8/1.000 e 6 Estados acima de 2/1.000, entre eles o DF com mais de 4/1.000 e Rio de Janeiro com 3,7/1.000. Nas capitais temos 3,8/1.000 e dos 5.565 municípios temos 2.868 sem médicos, a maior parte com menos de 10 mil habitantes. Por final, a relação médico – usuário é 4 vezes maior nos planos privados em comparação com o SUS. Nossa relação de 1,9/1.000, abaixo da média européia entre 2,5 e 3,5/1.000, aponta para a necessidade de ser melhorada ao nível de 2,2 a 2,5/1.000. Mas a continuarem as mesmas distorções na distribuição e mantidas as condições geradoras das distorções, oficializaremos um sub – atendimento e sub – emprego para um “sub – SUS”, além do já existente, isto é, apenas ampliaremos e consolidaremos o “SUS pobre para os pobres”. Avaliações similares são válidas também para os demais profissionais de saúde.
III. ALGUMAS RECOMENDAÇÕES OPORTUNAS E VIÁVEIS APRESENTADAS DURANTE OS ATUAIS DEBATES
a – Qualificar os dois anos finais do curso de Medicina (Internato) com ampliação e qualificação do estágio em unidades básicas de saúde da microrregião no entorno da faculdade, sob supervisão docente da área de Medicina Geral e Comunitária e do gestor da unidade (Formam-se anualmente entre 15 e 16 mil internos). Lembramos que é a fragilidade do internato o maior fator de baixa qualidade do ensino médico conforme avaliações do próprio MEC, onde predominam a criação de faculdades privadas sem responsabilidades sérias com campos de estágio. (Nos últimos 2 anos foram anuladas as penalizações de cortes de vagas nas faculdades pior avaliadas e autorizadas 23 novas faculdades privadas).
b. Com a responsabilidade do financiamento de 90 a 95% das bolsas de residência médica, o SUS e o MEC devem promover a realização do 1º ano de residência (R–1) na área de Medicina Geral e Saúde Comunitária para a totalidade dos recém – formados que se candidatam à Residência, como condição para o ingresso no 2º ano de residência (R–2) ao nível das especializações,entre elas a de Medicina Geral e Saúde Comunitária. As bolsas desse R-1 deverão ser atualizadas financeiramente, com direitos trabalhistas similares ou equivalentes aos dos médicos concursados para o SUS inclusive quanto à contagem do tempo de serviço e pontuação adiantada nos concursos para o SUS ou para R-2. O campo de estágio de trabalho do R-1 será opção entre alternativas oferecidas pelo SUS (CIT e CIBs) nos municípios e periferias mais carentes no território nacional, em UBS/ESF e NASF. Estes R-1 são estimados entre 7 e 10 mil médicos ao ano.
C – Residentes de 2º ano: além das bolsas com as mesmas prerrogativas e direitos oferecidos ao R-1, terão pontuação maior nos concursos públicos para o SUS e estímulos para preenchimento prioritário de vagas para especialidades estratégicas na atenção integral à saúde, definidas pelas Comissões Intergestores Regionais e as Bipartites.
d – Tendo em vista o alto significado estratégico da Atenção Básica no SUS e meta de no mínimo dobrar o número de Equipes de Saúde de Família no Território Nacional, impõe-se a elevação desde já das vagas na Residência em Medicina Geral e Saúde Comunitária com o crescimento de por volta de 10 mil.
e – Como todos os estágios de internos e residentes depende decisivamente de supervisão e preceptoria, devem ser implementadas desde já as condições de trabalho, atualizações na formação, estímulos atrativos na carreira e na remuneração, para o desenvolvimento do corpo de supervisores e preceptores, assim como a organização da logística presencial e a distância.
f – Respeitadas as singularidades das demais profissões na saúde, e as necessárias adequações, todas essas recomendações para elas são igualmente válidas.
Se o MEC e MS iniciarem sua implementação desde já, uma parte decisiva da necessidade de mais médicos ficará assegurada de 2 a 3 anos. O restante, para atingirmos 2,2 a 2,5/1.000, deverá ser completado com aumento de 3 a 4 mil vagas nas escolas médicas públicas já legalmente inseridas e comprometidas com o SUS, o que pode ser também efetivado em poucos anos.
Apesar da objetividade dessas recomendações e providências que entre outras, acumulam-se nos 25 anos do SUS, o MEC e MS não as vem priorizando nas suas estratégias de implementação das respectivas políticas públicas, tampouco orçamentando-as. Os recursos financeiros necessários são plenamente viáveis para a nação, mas seguramente, com complementação orçamentária em 2013 e orçamentos maiores a partir de 2014. Não há como implementar as condições apontadas para a adesão/fixação de profissionais nem prover bolsas e direitos aos estagiário-residentes e sua supervisão, sem suportes financeiros suficientes adicionais, o que por sua vez permanece dependente da vontade política dos governos que se sucedem nestes 25 anos.
Caso Contrário, todas as propostas alternativas terão que caber na “caixinha” do drástico sub-financiamento federal, da tabela de procedimentos e valores ao setor privado complementar, das polpudas subvenções públicas às empresas dos planos privados e da limitação imposta pela Lei da Responsabilidade Fiscal às contratações públicas de profissionais. Mais ainda: além da pequenez da “caixinha”, incorporarão estratégia do MEC dos anos 1.973/1.974 de expandir e massificar a oferta médica para a “auto-regulação” do mercado de trabalho e rebaixamento das exigências, assim como a expansão dos poderosos lobbies do ensino superior privado e empresas de planos e seguros de saúde, financiadores de campanhas eleitorais. Por final, a importação de médicos de países em crise financeira.
IV. Observações Finais
Fragilidade e inoportunidade da MP-621/2013 do ponto de vista técnico e de política de saúde:
– É sabido que cada profissional de saúde inclusive o médico, tem a maior parte da sua capacidade resolutiva reduzida ou anulada quando atua isoladamente dos demais profissionais. Por isso o trabalho em equipe vem sendo construído no SUS com grande esforço porque dele depende a realização da atenção equitativa e integral à saúde em cada município e região de saúde. Ao centrar o debate nacional somente no profissional médico, contribui para retroceder o referido esforço.
– É sabido que os índices da exacerbada concentração dos médicos e demais profissionais em regiões, cidades e bairros privilegiados pelo mercado de trabalho privado e esvaziamento nas regiões, cidades e bairros restantes, é de ordem gritantemente maior na desassistência da população, que a ainda baixa relação médico-habitante no país, quando comparada aos países europeus.
Ao centrar o debate em salto de mais 10 mil formandos nas escolas médicas públicas e privadas, em dois anos adicionais de estágio de graduandos a serem realizados nas regiões carentes (com bolsas precárias), e na importação de médicos contribui para desviar a questão central e inadiável sobre a implementação já das condições de adesão e fixação dos profissionais, que efetiva com consistência e permanentemente, não só mais médicos como mais equipes e mais SUS.
– É sabido que o desafio do ordenamento da formação de recursos humanos para o SUS e gestão do trabalho no sistema público vem sendo omitido ou distorcido pelo Estado brasileiro desde a promulgação da Lei Orgânica da Saúde em 1.990. O MEC e MS,com participação das entidades de Ensino e Gestão Públicas em Saúde, possuem plenas condições de reparar o conteúdo apressado, simplista e ineficaz da MP – 621/2013.
– As proposições de encaminhamentos para “mais médicos” e sua melhor distribuição para a população aqui expostas, ao lado de várias outras similares que já foram debatidas nos 25 anos do SUS são perfeitamente factíveis com primeiras etapas a partir do próximo ano, desde que haja vontade política para tal, em outras palavras: reconhecer que a inserção do “Mais Médicos” no “Mais Equipes de Saúde” e no “Mais SUS” é a estratégia mais eficaz, duradoura e de adesão mais rápida e responsável. Vontade política esta, já na direção do destino do mínimo de 10% da RCB da União para o SUS. Por sinal, um pleito muito modesto, que apesar de inabdicável para a saúde da população, mantém o Brasil ainda com per-capita anual de recursos públicos para saúde discretamente abaixo da média dos latino-americanos Argentina, Chile, Uruguai e Costa Rica.
Sob o ângulo do significado das políticas públicas, será uma construção de oportunidade histórica do MS e MEC sintonizarem-se na “frequência” (ou voltagem) da sociedade nas ruas clamando por um Estado democrático que realize os direitos da cidadania no transporte coletivo urbano, na saúde, educação e segurança pública.
*Conselho Consultivo do Cebes e Presidente do IDISA
Leia também artigo da diretora do Cebes, Isabel Bressan, sobre o tema:
A corporação médica versus o Sistema Universal de Saúde
Vejam que nenhum sistema de saúde universal prosperou sem enfrentar resistência da corporação médica. No meu Mestrado em Politicas Públicas de Saúde, fiz uma compilação do artigo “The Logic of Health Policy-Making in France, Switzerland, and Sweden”, que compara a introdução dos sistemas nacionais de saúde da França, Suíça e Suécia em relação ao sucesso da oposição médica à “socialização da medicina”.
Encontrei as seguintes conclusões da autora e suas evidências:
1- Os médicos opuseram-se à socialização da medicina nos três países França, Suíça e Suécia, com diferente intensidade e usando diferentes meios e com diferentes resultados. Combatiam especialmente o controle de honorários médicos porque o consideravam como uma forma de acabar com a autonomia médica.
Também nos três países os médicos detinham o monopólio formal da assistência, o que tornava a greve uma arma poderosa de luta. Estavam organizados em associações e exerciam influência sobre os políticos.
A autora concluiu, porém, que os resultados alcançados não foram diretamente proporcionais à capacidade de influência da classe médica, mas foram modulados pela sua posição e pelo aproveitamento de oportunidades de veto do Estado, possibilitadas ou não pelos diferentes desenhos institucionais vigentes.
Na França o processo resultou na implantação de num sistema nacional e no controle relativo dos honorários médicos por meio da obrigatoriedade da negociação deste entre os médicos e os fundos públicos de saúde. Porém isto se deu depois de um longo processo no qual os médicos exerceram grande influência política num primeiro momento, por meio de associações politicamente competentes que exerciam pressão sobre parlamentares que possuíam poder estratégico de vetar a legislação. Por fim o relativo controle sobre eles veio por meio do aumento da capacidade de poder político do executivo, por meio de mudança das regras institucionais.
Na Suíça os médicos conseguiram vetar completamente o controle de seus honorários e a implantação de um sistema nacional por meio de sua capacidade de influenciar os possíveis votantes em um referendo proposto e temido pelo executivo. Por outro lado conseguiram que fosse aumentado o subsídio público para a medicina privada.
Na Suécia os médicos eram mais sindicalizados, porém com sindicatos mais fracos que os da França. Existiam em quantidade relativamente maior que na Suíça, mas nem por isso conseguiram bloquear a implantação de um sistema nacional público por parte de um executivo com maioria parlamentar e livre de vetos parlamentares e populares, que os assalariou, aumentou o número de médicos mesmo contra a opinião da associação médica, proibiu a atividade privada nos hospitais públicos e reduziu os honorários médicos privados nos hospitais públicos a valores simbólicos, o que resultou numa restrição à atividade privada em consultórios por meio da concorrência com o atendimento público.
2- A autora concluiu também que diferentes ideologias dos formuladores de políticas, diferenças na participação política da comunidade ou nas preferências e modos de organização de grupos de interesse ou a presença de centralização administrativa foram fatores menos relevantes nos resultados dos processos de implantação de sistemas públicos de saúde nos países estudados do que as regras institucionais vigentes, que determinam o alcance efetivo dos grupos de interesse por meio de influência em um legislativo com maior ou menor poder de veto ou por meio da pressão sobre eleitores na escolha de representantes ou em um possível referendo.
Os governos da França, Suíça e Suécia tentaram igualmente estabelecer sistemas públicos de saúde, por certo influenciados por demandas sociais. Porém, a condução da implantação efetiva por meio de legislação seguiu diferentes caminhos nestes países, caminhos estes pautados principalmente pelo desenho das instituições políticas.
Também os resultados foram fruto de como as forças sociais e políticas estiveram organizadas para a batalha e de que meios dispunham de vetar a implantação do sistema público. O teor ideológico e o tamanho destas forças foi menos relevante do que as regras do jogo político que nortearam sua influência.
Na França, as reformas foram efetivadas por um executivo de direita com grande poder, por causa da ausência de veto parlamentar, condição esta diferente das que provocaram o fracasso de governos anteriores onde a força dos grupos de interesse contrários às reformas entre os parlamentares era grande, num ambiente de pouca fidelidade partidária.
Na Suíça, a existência da possibilidade de grupos relativamente pequenos convocarem um referendo e de sua capacidade de influenciar eleitores deste, numa condição de voto não obrigatório, onde a minoria votante era representada pela camada mais rica e instruída da população, impediu a implementação do Sistema Nacional de Saúde.
Na Suécia um executivo forte, com representação proporcional, uma primeira câmara eleita indiretamente, que ajudava a manter uma maioria parlamentar, estável, sem a ameaça de vetos juntamente com uma monarquia que exercia um papel de incentivar a discussão técnica das questões e forçava o controle da burocracia estatal na implantação das políticas, pode implantar um sistema nacional de saúde realmente socializado.
Portanto, só um Estado forte e com apoio popular pode enfrentar a corporação médica e implantar um sistema nacional de saúde realmente socializado.
(1) IMMERGUT, E M 1995 The Rules of the Game: The Logic of Health Policy-Making in France, Switzerland, and Sweden, In: Structuring Politcs (pp. 57-89), Cambridge University Press.