Covid-19: entre pandemias e endemias

por José Carvalho de Noronha e Leonardo Castro em artigo originalmente publicado no Jornal do Economistas – Maio de 2020

Em meio ao debate das medidas de enfrentamento da Covid-19, particularmente no Brasil, forjou-se uma controvérsia falaciosa sobre se as pessoas deviam morrer da doença ou das medidas empregadas para contê-la. Estes bradavam, e ainda bradam, “que venham saturação dos serviços e mortes porque os danos causados à economia acabarão produzindo mais mortes!” Essas vozes foram progressivamente se tornando minoritárias e praticamente todos os países do mundo passaram, cedo ou tarde, a adotar as medidas de distanciamento social a despeito de seu impacto na redução das atividades econômicas. Ninguém ousou, apesar de declarações sucessivas do Presidente do Brasil, testar o impacto econômico da pandemia descontrolada. Mesmo países como a Itália e Espanha, que retardaram a adoção de medidas restritivas, não fugiram a elas. Combinaram-nas com um salto expressivo de doentes e mortos.

Pandemias, como a Covid, têm como atributo central a súbita e veloz propagação por múltiplas partes do mundo num período do tempo e que tenham ultrapassado um nível habitual que seria considerado “esperado”. As mais conhecidas no passado foram a peste bubônica, a varíola, o cólera, a gripe “espanhola” e, mais recentemente, a influenza H1N1, ebola e aquela mais duradoura, HIV/AIDS. As que registraram maiores saldos de mortes foram a Peste Negra (1346-53, 75 a 200 milhões), a gripe espanhola (1918, 20 a 50 milhões) e Covid-19: entre pandemias e endemias a ainda em curso HIV/AIDS (em seu pico, 2005-12, 36 milhões).

No exato momento, 23 de abril, em que se escrevem essas notas, com a pandemia da Covid em curso ascendente acelerado, foram notificados mais de 2,6 milhões de casos e mais de 180 mil mortes no mundo. Não sabemos, ainda, seu curso final, mas o Imperial College de Londres, em março, estimou um total cerca de 40 milhões de mortes caso não fossem adotadas medidas de mitigação, que poderão ser reduzidas para 1,86 milhão se as medidas forem bem-sucedidas. Para o Brasil, as estimativas foram, respectivamente, de 1,1 milhão sem mitigação, e 44,2 mil com medidas bem-sucedidas. Parece mais que suficiente essa gigantesca diferença para justificar a adoção de medidas supressivas.

Mas há outros contrapontos a serem considerados. Um estudo publicado em março sobre as implicações de intervenções não farmacêuticas com dados da gripe de 1918 nos Estados Unidos revelou fatos extremamente relevantes (Correia et al, 2020). Ao analisarem os dados de mortalidade, constataram que as áreas mais expostas experimentaram um agudo e persistente declínio na atividade econômica. A produção industrial caiu 18%, provocados tanto pelo lado da oferta quanto do lado da demanda. Ao compararem os efeitos das intervenções não farmacêuticas nas diferentes cidades, constataram que as cidades que intervieram mais agressiva e precocemente não tiveram pior desempenho e, além disso, cresceram mais rapidamente após a pandemia. Afirmam que as intervenções não farmacêuticas não apenas reduzem a mortalidade como mitigam as consequências econômicas adversas da pandemia.

As pandemias, quando as enfermidades globais são assim denominadas, têm uma outra característica a justificar esse apodo: elas, grosso modo, não poupam os países ricos nem os ricos dentro dos países. A propagação do coronavírus no Brasil bem ilustra: vem do exterior e se espalha no Rio a partir da Zona Sul e Barra, e em São Paulo, a partir de Pinheiros. Como disse uma moradora da periferia do Rio, “essa doença que a Zona Sul trouxe pra gente”. Em tempos passados houve a pólio, que já se foi, e a AIDS, que persiste. Se isso é verdadeiro, também é verdade que elas agridem mais os pobres e remediados.

Senão vejamos. As medidas de isolamento são implementadas de maneira estratificada. A elite está até mesmo fugindo de seus sobrados e se refugiando em suas casas-grandes ou casas de veraneio ou férias, com sua estrutura de abastecimento, serviços e recreação mantidos. Suas reuniões virtuais afetivas e de negócios asseguradas por redes de internet de alta velocidade. A classe média das metrópoles anda se confrontando com jornadas diuturnas em apartamentos de metragem limitada, aulas suspensas, suprimentos dificultados. Os “batalhadores” (conforme a expressão de Jessé Souza) com seus empregos sendo destruídos e seus direitos suprimidos a pretexto de medidas compensatórias. A “ralé”, termo cunhado por Jessé para denominar os que nada ou pouco têm, a contar migalhas e a buscar os 600 reais dos três meses de auxílio compensatório, sem saber como serão os dias de amanhã.

Adoecendo, nossas elites estarão cobertas pelos seus planos executivos de saúde que garantirão acesso, se necessário, aos quartos e leitos de UTI dos melhores hospitais da Zona Sul e Barra, no Rio, ou no entorno da Paulista e Morumbi, em São Paulo, e seus equivalentes nas outras cidades de maior renda. As probabilidades de sobrevivência dessa gente serão dez vezes maiores que daqueles que se aglomerarem nos hospitais que atendem exclusivamente ao SUS. Os beneficiários de planos intermediários, cerca de 20 milhões de brasileiros, terão que honrar o pagamento de suas mensalidades, agora sem a contraparte patronal, para disputar vagas em leitos e UTIs de hospitais de menor capacidade e qualidade de atendimento. Atualmente, início de 2020, a razão de leitos de UTI disponíveis para quem não tem plano de saúde é cerca de três vezes menor do que para os que têm planos (10,6 vs. 33,6 leitos por 100 mil habitantes). Já apareceram os primeiros estudos comprovando a iniquidade agravada pela Covid. Com a eclosão da pandemia em Nova Iorque, os dados até o momento revelam que, como afirmamos, não só a incidência como a letalidade estão sendo maiores entre negros e latinos, que compõem a maioria da população mais pobre da cidade.

Ocorre que a pandemia surge e se dissemina onde o mundo, e o Brasil mais recentemente, simplesmente ignorava ou subestimava suas tragédias em curso. Não eram pandemias, por serem “permanentes” e atingirem predominantemente países pobres e pobres em países ricos, ganham a denominação de “endemias”. Alguns exemplos que, passada a Covid, continuarão a exibir seus números anuais de vidas ceifadas, aumentados pela depressão econômica pós-Covid, que não provocavam maiores apreensões ou angústias: infecções respiratórias, 2,5 milhões; diarreias, 1,5 milhão; tuberculose, 1,5 milhão; HIV/AIDS, 1 milhão; deficiências nutricionais, meio milhão. Apenas para essas condições e algumas outras, para as quais a medicina e a saúde pública dispõem de terapêuticas eficazes, poderíamos evitar anualmente 10 milhões de mortes. Acrescentando aquelas diretamente provocadas pelo modo de vida do homem, tais como acidentes de trânsito e violência intencional (1,5 milhão cada), alcançaríamos 13 milhões de mortes endêmicas e “invisíveis”. Em países pobres e de pobres em países remediados e ricos.

É difícil estimar impactos da pandemia sobre a atividade econômica. A atual economia globalizada forma um sistema complexo amplamente interconectado e interdependente, com grandes cadeias produtivas e mercados integrados em nível transnacional. A interrupção de um simples elo dessas cadeias traz efeitos em cascata. O surgimento do coronavírus na nova “fábrica do mundo”, a China, paralisou setores industriais estratégicos com impacto muito além de suas fronteiras. A expansão pandêmica do vírus afetou outros países e regiões industriais na Europa, tendo chegado há poucas semanas à América. As consequências podem ser devastadoras.

O enfrentamento do vírus por si só coloca desafios imensos: mobilizar recursos humanos, ampliar rapidamente a infraestrutura hospitalar, fortalecer os sistemas de vigilância, providenciar insumos e equipamentos – o que significa compras emergenciais e importações de bens que escasseiam devido ao aumento inesperado da demanda internacional e se tornam frequentemente objeto de disputas desleais em que o “respeito aos contratos” torna-se relativo. Não menos importante, é preciso encontrar meios de refinanciamento emergencial dos sistemas públicos de saúde há décadas desarticulados pelas políticas de contenção fiscal. Tudo isso em uma corrida angustiante contra o tempo.

O adoecimento e morte de um grande número de pessoas, a pressão sobre os serviços de saúde, assim como as medidas supressivas mais ou menos drásticas, por si sós afetam os níveis de atividade econômica. As incertezas e instabilidades geradas pela pandemia – incerteza quanto à sua duração e impacto e quanto ao tempo de manutenção de medidas protetivas; dúvidas quanto à possibilidade de reincidência da própria virose; emergência de novos patógenos com poder destrutivo análogo e, finalmente, incerteza quanto ao tempo de restabelecimento da própria economia e a demanda futura por bens e serviços – influenciarão a economia global de forma duradoura, afetando os níveis de investimento e de emprego, especialmente nos países em desenvolvimento.

A conjuntura aberta pela pandemia obrigará a uma revisão radical da ortodoxia atual orientada para o “equilíbrio” das contas públicas. O aumento inevitável dos níveis de endividamento e inadimplência de empresas e famílias torna ineficazes medidas restritas à oferta de crédito. Impressiona, embora não surpreenda, que próceres menos respeitados da ortodoxia, alguns deles no governo federal, insistam no discurso de austeridade fiscal contra todas as evidências e constrangimentos e quando os países “liberais” no mundo “desenvolvido” caminham na direção oposta. Na ausência de abertura de espírito e inteligência, serão vencidos pela necessidade.

A pandemia pode ter consequências imprevisíveis caso não sejam tomadas medidas emergenciais de política econômica: suspensão de restrições fiscais, programas de garantia de renda, investimento estatal direto e ampliação da base monetária.

Qual será o desfecho da Covid-19? Impossível prever, porém dois caminhos já estão delineados: um mundo mais fraterno e solidário ou mais selvagem e fratricida. O primeiro caminho, pelo qual estamos reunindo experiências generosas de cooperação internacional e demolição das políticas econômicas da chamada “austeridade”, acompanhadas de reforço de sistemas universais de saúde, é promissor. Lamentavelmente a ordem mundial contemporânea não lhe dará muito crédito e viabilidade. Os Estados Unidos, vitoriosos após a gripe “espanhola”, duas grandes guerras, com derrotas parcia s em poucas das guerras que enfrentou ou provocou desde o final do século XIX, não renunciará a seu papel de potência hegemônica do XXI. Uma parte de nossas elites está ansiosa por voltar aos mocambos, recuperando privilégios perdidos; anseiam pelo regresso das “senzalas livres” em cortiços, favelas, conjuntos habitacionais, trabalhos não regulados, “uberizados”, sem proteção salarial ou securitária. Teremos força de construir um Estado Social igualitário ou caminharemos para a barbárie?


José Carvalho de Noronha é médico sanitarista, coordenador executivo da iniciativa Brasil Saúde Amanhã da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes.
Leonardo Castro é cientista social e analista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz.