Crise climática e os novos desafios para os sistemas de saúde: o caso das enchentes no Rio Grande do Sul/Brasil
Por Maria Lucia Frizon Rizzotto, Ana Maria Costa, Lenaura de Vasconcelos da Costa Lobato
Editorial da revista Saúde em Debate v. 48 n. 141
OS EFEITOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO PLANETA, previstos pelos cientistas para as próximas décadas, anteciparam-se. Nos primeiros meses de 2024, ocorreram enchentes em países da África (Quênia) e da Ásia (Indonésia, Afeganistão), deixando centenas de mortos e milhares de desabrigados. Em maio, no Brasil, as chuvas causaram a maior tragédia da história do estado do Rio Grande do Sul e uma das maiores do País.
O estado possui uma população de 10.880 milhões de habitantes que residem em 497 municípios, dos quais 90,9% (452) foram atingidos pelas enchentes, muitos deles completamente destruídos. A tragédia, além dos danos materiais incalculáveis (destruição de casas, comércio, plantações, estradas, aeroporto, infraestrutura em todas as áreas), causou, até o dia 25 de maio, a morte de 169 pessoas, e 61 seguem desaparecidas. Cerca de 2,1 milhões de pessoas foram afetadas, 650 mil foram desalojadas e 71.500 estão desabrigadas (acolhidas em abrigos públicos). Além disso, centenas delas não poderão mais voltar para suas casas por estas terem sido levadas pela enchente e por estarem em áreas de risco, sendo impossível reconstruí-las no mesmo lugar1. Na área da saúde, mais de 3 mil estabelecimentos de saúde foram atingidos2.
A ação dos governos estadual e municipais teve o apoio humano e financeiro imediato do governo federal, que enviou mais de 20 mil profissionais dos diferentes ministérios para auxiliar na reconstrução do estado e destinou mais de R$ 51 bilhões em diferentes programas, direcionados aos setores produtivos e às famílias atingidas, buscando mitigar o sofrimento de quem tudo perdeu3.
A solidariedade, demonstrada de norte a sul do País, envolveu os mais diversos setores da sociedade, artistas, influencers, Organizações Não Governamentais (ONG), movimentos sociais, setores da economia e mídia, com doações e atuação direta na defesa civil, que se revelaram fundamentais nos primeiros dias da tragédia, cujo objetivo era salvar vidas, por meio do resgate das pessoas e animais ilhados, busca de desaparecidos e acolhimento dos desabrigados. No entanto, essa solidariedade – necessária e fundamental – não substitui o papel do Estado como neoliberais, defensores do Estado mínimo, tentaram fazer crer. Sem investimentos públicos, não há como recuperar a infraestrutura destruída (estradas, pontes, aeroportos, escolas, serviços de saúde etc.) nem estimular a recuperação do setor produtivo (comércio, indústria, agricultura e outros), tampouco garantir a transferência de recursos financeiros às famílias.
A tragédia desvelou o descaso das administrações do estado do Rio Grande do Sul, da capital Porto Alegre e de vários municípios, que adotaram políticas de estrangulamento do setor público e privatização de áreas de interesse público. Várias recomendações de medidas de prevenção haviam sido anunciadas por técnicos das áreas afins, mas pouco ou nada foi feito. O exemplo mais evidente foi o alerta, feito ainda em 2018, e agora tornado público, de que o sistema de bombeamento da cidade de Porto Alegre requeria manutenção urgente, sem a qual poderia falhar em uma provável enchente – foi exatamente o que aconteceu. Também falhou o sistema de comportas, que tinha visíveis fragilidades de manutenção. O prefeito da cidade desprezou todos os avisos dos servidores municipais. Diante disso, o jornalista Leandro Demori chamou a capital Porto Alegre de “a cidade case do estado mínimo”4. O governador do estado, Eduardo Leite, também conhecido defensor do estado mínimo, quando cobrado sobre os avisos repetidamente anunciados sobre as fortes chuvas que viriam, manifestou que não investiu em prevenção porque o estado tinha “outras agendas”.
De fato, as agendas eram outras. Foram mais de 489 medidas tomadas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, a partir de 2019, primeiro ano de mandato do atual governador Eduardo Leite, que causaram o desmonte da legislação ambiental, como a flexibilização de regras ambientais para a construção de barragens para irrigação em Áreas de Preservação Permanente (APP)5 e, mais recentemente, o não investimento em infraestrutura para proteção de encostas e na recuperação do sistema de proteção conta enchentes de Porto Alegre (capital do estado), que, na enchente de setembro de 2023, já havia mostrado a necessidade de recuperação e que agora “falhou miseravelmente”, lamenta Walter Collischonn, professor de engenharia ambiental e engenharia hídrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)6.
O negacionismo climático desconsidera os alertas dos cientistas e repete a narrativa de que eventos extremos acontecem de tempos em tempos, sendo, portanto, um acontecimento natural. Ademais, não admitem que tais eventos estão acontecendo com muito mais frequência e em uma intensidade muito maior, consequência do aquecimento global, causado pela ação humana. O próprio Rio Grande do Sul sofreu duas enchentes no prazo de menos de um ano: uma em setembro de 2023, que deixou 47 mortos e dezenas de desabrigados, e a atual, além de alertas para outras em curto espaço de tempo.
O enfrentamento das mudanças climáticas implica, além da redução do desmatamento, da emissão de dióxido de carbônico, com redução do uso de combustíveis fósseis, mineração etc., repensar o processo de urbanização e de proteção das populações, especialmente as mais vulneráveis, sejam urbanas ou rurais.
Paralelamente à demonstração de solidariedade da população, muitos utilizaram a tragédia para autopromoção ou disputa política, utilizando-se de fake news que atrapalharam o trabalho de resgate e mesmo de doações, o que mostra que a regulação das redes sociais é tema urgente.
Os sistemas de saúde e as mudanças climáticas
Muito se analisou sobre as demandas dos sistemas de saúde na pandemia da covid-19, a importância de sistemas universais, a capacidade de resiliência e a preparação para pandemias futuras, mas pouco sabemos sobre as demandas de saúde em casos de tragédias ambientais.
A devastação causada pelas enchentes tem evidente impacto à saúde mental dos mais de 160 mil desalojados, pois as chuvas afetam de modo imediato as pessoas que perderam entes queridos, suas casas, seus modos de vida e seu sustento. Nessas situações, há o risco de elevação de casos de violência doméstica e do consumo de álcool e outras substâncias. O sofrimento mental, aliado às doenças respiratórias facilitadas pelos abrigos coletivos, é a primeira preocupação em termos de saúde. No momento que as águas começam a baixar, deixando rastros de esgoto, putrefação e lama nas cidades, surgem, diariamente, novos casos de leptospirose (um mês depois do início da enchente, já temos 7 mortes, 141 casos confirmados e mais de mil em investigação), aumento de doenças diarreicas agudas, doenças parasitárias, tétano, dengue, hepatite A e picadura de animais peçonhentos, que se somam aos problemas relacionados com saúde mental, doenças respiratórias e doenças crônicas da população atingida.
A complexidade da situação de saúde e os fatores que a determinam mobilizam diversos setores nas respostas e urgências que vão da garantia à segurança alimentar drasticamente alterada pela tragédia, à segurança de meninas e mulheres expostas ao risco da violência sexual. Já houve denúncia de violência sexual cometida contra mulheres e meninas em abrigos, indicando que as estratégias de enfrentamento de crises climáticas exigem cuidar de aspectos associados às relações e vulnerabilidade de gênero, requerendo planos e estratégias especificas7. Estima-se que dois terços das unidades de Atenção Básica estejam comprometidas e que muitos dos profissionais de saúde que atuam nos serviços de saúde (incluindo farmácias e laboratórios) tiveram familiares e residências afetadas. Com suas unidades hospitalares e de atenção primária debaixo d’água, o Sistema Único de Saúde (SUS) deslocou a atenção primária para os abrigos coletivos e criou hospitais de campanha para operar como retaguarda assistencial. Para isso, contou com as equipes da Força Nacional do SUS e das Forças Militares, além do voluntariado que nacionalmente se mobilizou para atuação remota em apoio aos gaúchos. Esse cenário demanda urgência em restabelecer as capacidades do SUS em responder aos conhecidos e aos novos problemas e necessidades de saúde da população.
A emergência cria um caos de gestão no sistema que deve ser enfrentado por planos de contingência específicos para cada um dos eventos. Simultaneamente, é fundamental que estados e municípios desenvolvam planos de gestão de riscos de desastres, envolvendo os diferentes setores e atores da sociedade – e não apenas sobre medidas de preparação e respostas aos desastres, mas também de prevenção de riscos futuros à mitigação dos riscos existentes, além de políticas de reabilitação e reconstrução baseadas no princípio do Marco de Sendai de reconstruir de modo melhor e mais seguro7,8.
Reconstruir é preciso! Mas em que bases? O consenso razoável é o de reavaliar os cenários e redimensionar os riscos já que a tendência é a recomposição da minimização do risco após a fase da comoção com a tragédia. Isso vale não apenas para as habitações, mas também para os equipamentos públicos que, se reconstruídos nos mesmos locais, continuam a submeter as populações a viverem nas mesmas condições de vulnerabilidade que já estavam antes. Nesse contexto, urge passar das políticas e ações reativas aos desastres para políticas e estratégias prospectivas e preventivas.
A Constituição brasileira prevê o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial “à qualidade de vida, tendo o poder público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”9. Por outro lado, ela também prevê que o direito à saúde deve garantir “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”9, o que é qualificado no conceito ampliado de saúde da Lei nº 8.080, que regulamenta o SUS, em que
[…] a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País10.
Essas diretrizes, estabelecidas há quase quatro décadas, são mais atuais do que nunca, e cabe à sociedade cobrá-las de seus gestores, pela segurança e bem-estar de todos.
Toda solidariedade ao povo gaúcho!
Referências
- Rio Grande do Sul. Coordenadoria Estadual de Defesa Civil, Defesa Civil do Rio Grande do Sul. Avisos e Alertas em vigor. Porto Alegra: CEDF; 2024. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://defesacivil.rs.gov.br/inicial.
- G1 RS, RBS TV, TV Globo. Cheias no RS afetaram mais de 3 mil estabelecimentos de saúde, afirma Fiocruz. G1. 2024 maio 22. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande–do-sul/noticia/2024/05/22/cheias-no-rs-afetaram–mais-de-3-mil-estabelecimentos-de-saude-afirma–fiocruz.ghtml.
- Brasil. Secretaria de Comunicação Social. Mais de 20 mil profissionais ligados ao Governo Federal atuam diretamente no auxílio ao Rio Grande do Sul. Gov.br. 2024 maio 12. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/05/mais-de-20-mil-profissionais-ligados–ao-governo-federal-atuam-diretamente-no-auxilio–ao-rio-grande-do-sul.
- Demori L. Resumão do Demori #22: POA é “case” global. A Grande Guerra. 2024 maio 25. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://www.agrandeguerra.com.br/p/resumao-demori-22-porto-alegre-case-global.
- Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal; Ministério Público da União. Mais de 400 normas ambientais foram mudadas pelo governo do RS em 2019; medidas acompanharam política de Sales, ministro da “passagem da boiada”. Sintajufe RS. 2024 maio 10. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://sintrajufe.org.br/mais-de-400-normas-ambientais-no-rs-foram-mudadas-pelo-governo-do–rs-em-2019-medidas-acompanharam-politica-de–sales-ministro-da-passagem-da-boiada/.
- Pontes N. Por que sistema contra cheias não funcionou em Porto Alegre. G1. 2024 maio 18. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://g1.globo.com/ meio-ambiente/noticia/2024/05/18/por-que-sistema-contra-cheias-nao-funcionou-em-porto-alegre.ghtml.
- Maçulo L. Enchentes no Rio Grande do Sul e os desafios para a Saúde Pública: crise, insegurança alimentar e violência. Abrasco. 2024 maio 13. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://abrasco. org.br/enchentes-no-rio-grande-do-sul-desafios–para-a-saude-publica-em-meio-a-catastrofe/.
- Silva RF, Siqueira AM, Silveira LTC, et al. A redução de risco de desastres, a agenda dos Objetivos Sustentáveis e os princípios do SUS, no contexto da pandemia de COVID-19. Ciênc. saúde coletiva. 2023 [acesso em 2024 maio 26]; 28(6):1777-1788. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.11272022].
- Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
- Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990. [acesso em 2024 maio 26]. Disponível em: https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.