Democracia, Saúde e a 16a Conferência Nacional de Saúde: qual futuro?

por José Carvalho de Noronha, médico e integrante do Conselho Consultivo do Cebes e psicólogo Leonardo Castro

Ao convocar a 16a Conferência Nacional de Saúde, em dezembro de 2017, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) entendeu que seria momento de revisitar e atualizar as diretrizes definidas pela 8a Conferência de 1986. Propôs, assim, organizar o debate em torno dos eixos que orientaram aquela Conferência (Saúde como Direito; Reformulação do Sistema Nacional de Saúde; Financiamento Setorial), ajustados aos tempos atuais, explicitando o seguinte tema central: Democracia e Saúde: Saúde como Direito e Consolidação e Financiamento do SUS 1.

A convocatória, sob o lema “8a + 8”, incita a revisitar a conformação do sistema de saúde brasileiro a partir do início da Nova República, em 1985: iniciativas universalistas na assistência à saúde, desenvolvidas unilateralmente ou por convênio com estados, municípios e entidades filantrópicas; condução pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária da transição entre a 8ª Conferência e a Assembleia Nacional Constituinte; debates na própria Constituinte, até a promulgação da Constituição de 1988; conjunto de disposições legais e normativas introduzidas desde então. Trata-se de um sistema regido pelos preceitos estabelecidos na Constituição: (i) direito à saúde garantido pelo Estado, (ii) por meio de políticas sociais e econômicas, (iii) com garantia de acesso universal e igualitário a ações e serviços.

Foram, entretanto, muito diferentes os contextos históricos em que ocorreram as duas conferências. Em 1986, o Brasil emergia de um período ditatorial que durou 21 anos. Eram vivas as marcas das lutas de resistência ao regime, que passava pela grande frente política em torno do único partido de oposição existente até o retorno do pluripartidarismo, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Também foi época de ressurgimento do movimento sindical e das greves operárias; movimentos das periferias urbanas, favelas e Comunidades Eclesiais de Base; emergência de uma intelectualidade progressista em áreas como Economia, Ciências Sociais, Educação, Saúde, Habitação e outras. À crescente luta pela retomada dos direitos civis e políticos, associava-se a luta por avanços também nos direitos sociais e ambientais.

A coalizão governamental que deu início à Nova República refletiu esse amplo espectro político, cabendo à centro-esquerda da época os Ministérios da Previdência Social, Trabalho e Cultura, além de posições importantes no Ministério da Saúde. As eleições municipais de 1985, primeira em que os analfabetos exerceram o voto, deram ampla vitória ao sucedâneo do antigo MDB, que elegeu 19 dos 25 prefeitos das capitais. Nas eleições estaduais de 1986, na esteira do plano de controle da inflação conhecido como Plano Cruzado, o partido elegeu todos os governadores, exceto o de Sergipe. Também em 1986 foram escolhidos os representantes para a Assembleia Nacional Constituinte, resultando em uma composição favorável à introdução de reformas e políticas sociais.

O período foi caracterizado pela estagnação econômica e pela aceleração inflacionária, que o governo buscou deter por meio de sucessivos planos de estabilização. O insucesso dessas iniciativas conduziu a um surto inflacionário que somente seria contido na década seguinte, a um custo que se mostraria elevado sobre a economia nacional.

No plano internacional, uma grande onda de protestos e movimentos por direitos havia abalado os países capitalistas centrais em fins da década de 1960, acrescentando novas pautas às reivindicações tradicionais relacionadas ao conflito distributivo. À crise social, somava-se a incapacidade dos estados, pressionados por déficits fiscais crescentes, para atender às novas demandas. Na década de 1970, experimentos participativos e comunitários em nível local e no mundo do trabalho, como os conselhos de fábrica, nutriam uma promessa de aceleração da história, pela ampliação dos espaços de participação de setores subalternos e minorias 2.

No Brasil, a luta pela redemocratização e os movimentos sociais emergentes despertaram as expectativas de ampliação da democracia, com a introdução de novas formas de participação política. A dimensão histórica da 8a Conferência Nacional de Saúde deveu-se, assim, à confluência de um conjunto de fatores que transcende sua realização.

A história tomou outra direção na virada da década de 1980, com a ascensão de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A “solução” neoliberal para a crise econômica foi adiá-la, pela desregulação dos mercados de capitais, pela expansão do crédito e pelo endividamento privado, tornando a política econômica, na prática, independente de supervisão política no âmbito dos Estados nacionais 3. Paradoxalmente, o “novo espírito” do capitalismo neoliberal absorveu muitos elementos dos ideais autogestionários das décadas anteriores 4 .

Na contramão dessa tendência – que nos países centrais resultou em contração das políticas de proteção social e estímulo ao pleno emprego –, a Constituição brasileira promoveu uma ampliação inédita e histórica dos direitos de cidadania, cuja conquista maior foi a extensão universal do direito à saúde para todos, por meio de um sistema público nacional.

O arcabouço legal do Sistema Único de Saúde (SUS) incorporou grandemente o ideal participativo gestado na redemocratização. A “participação da comunidade” tornou-se princípio constitucional, e a legislação estabeleceu a realização periódica de Conferências de Saúde em nível municipal, estadual e nacional, tendo por atribuição definir diretrizes para a política setorial nos níveis correspondentes. Além disso, a descentralização de recursos e responsabilidades de gestão previstas no novo sistema foi condicionada à criação de Conselhos de Saúde nas esferas subnacionais. A área da saúde foi pioneira na formalização de mecanismos do denominado “controle social”, expressos na Lei no 8.142/1990.

A conquista da Presidência da República, em 2003, pelo Partido dos Trabalhadores, agremiação fortemente identificada com as teses “participativas”, deu forte impulso às tentativas de aceleração democrática via criação de fóruns e instâncias de consulta e deliberação alternativos aos dispositivos de escolha e representação via sufrágio universal. Aos conselhos e conferências em áreas tradicionais como saúde, educação e assistência social, vieram somar-se instâncias relacionadas com políticas mais específicas ou voltadas para segmentos vulneráveis da população 5.

Assim, foi o próprio Estado que assumiu a tarefa de organizar a participação da “sociedade”, por meio de instâncias consultivas ou deliberativas com chancela oficial, nas quais, porém, a “participação” ocorre, de fato, pela mediação de setores organizados da “sociedade civil”, ou seja, por “representantes” capacitados para vocalizar interesses na esfera pública. Pela sua fragmentação e “especialização”, essas instâncias apresentam fragilidades que se evidenciariam no período mais recente.

Transformações importantes ocorreram desde fins dos anos 1980 no plano internacional. A queda do muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da União Soviética, pouco depois, prenunciavam o triunfo final das democracias liberais do Atlântico Norte, mas a crise financeira global que eclodiu em 2008 – consequência da desregulação financeira com expansão do crédito e endividamento privado no período anterior 3 – significou uma inflexão decisiva. Passada uma década, as respostas à crise mostram-se largamente insuficientes: o afrouxamento monetário que injetou trilhões de dólares na economia global teve impacto limitado sobre o crescimento, e a contenção fiscal aprofundou o quadro de estagnação e inibe medidas anticíclicas, em proveito de um punhado de megacorporações e uma ínfima minoria de rentistas que detêm porções cada vez mais exorbitantes da riqueza global 6.

O plebiscito do “Brexit”, que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia, e a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em 2016, entronizaram a “crise da democracia”, como novíssimo diagnóstico de época. O avanço da extrema-direita xenófoba na União Europeia já havia soado o alarme. Falhas nos filtros, freios e contrapesos dos sistemas políticos ajudam a compreender a crise, mas suas raízes são mais profundas: a erosão de um fundamento da democracia poliárquica, “controle da agenda”, isto é, capacidade da comunidade política para efetivamente definir a pauta dos governos eleitos 7. O dogma da austeridade e constrangimentos econômicos diversos, nas últimas décadas, reduziram a margem de manobra dos governantes a um mínimo residual em matéria econômica e política social, gerando descrença na democracia e em suas instituições 3.

Além disso, há evidência de uso crescente de plataformas digitais de relacionamento para extração de dados privados e veiculação de propaganda dirigida com propósitos comerciais, mas também interferência em processos eleitorais e desestabilização de governos, como mostra o documentário Privacidade Hackeada, no Brexit e nas eleições presidenciais norte-americanas 8.

O contexto brasileiro reflete os aspectos acima, com ingredientes particularmente perversos. Chegamos à terceira década do século XXI sem concluir tarefas civilizatórias básicas: modelo de desenvolvimento predatório e ambientalmente desastroso no campo, baseado no latifúndio e na expansão desordenada da fronteira agrícola; grande massa de excluídos “estruturais”, concentrada nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos, sem perspectivas de incorporação aos setores dinâmicos da economia; falha, igualmente, na “tarefa weberiana” de assegurar o monopólio estatal do uso legítimo da coerção, isto é, expropriação eficaz dos meios privados de violência.

A configuração política e econômica global encontra-se em um novo patamar, que transparece na nova “estratégia de segurança nacional” dos Estados Unidos. Explicitamente, os Estados Unidos abandonam a ideia de construção de uma ordem mundial pacífica em torno de “valores universais” e assumem a persecução de seus interesses nacionais a partir de uma posição de força 9.

Com relação à América do Sul e especificamente ao Brasil, as mudanças na política estadunidense são visíveis a partir da descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, com a reativação da Quarta Frota Naval em 2008 e o desencadeamento de “guerras híbridas” em países do subcontinente, visando a sua desestabilização política e econômica 10.

A economia brasileira, que padece há tempos da perda de complexidade em sua base produtiva, sofreu forte abalo com a crise política instalada após a sucessão presidencial de 2014, abrindo um quadro recessivo que levou a uma retração do PIB de 3,8% em 2015 a 3,6% em 2016. A ortodoxia culpa a fragilidade fiscal do Estado, mas, previsivelmente, a “terapêutica” de restrição fiscal somente agravou o quadro, e a recuperação tem se mostrado extremamente lenta.

No Brasil, o comprometimento de regras e garantias constitucionais com a cumplicidade de autoridades que deveriam por elas zelar, para fins de intimidação política e inviabilização de lideranças, incluindo o impedimento da Presidente da República em 2016, coincidentemente se conclui com a eleição de um governo que busca alinhamento incondicional aos Estados Unidos. A coalizão que assumiu o governo após as eleições de 2018, eleita segundo os ritos constitucionais, em processo controverso, não parece interessada em pôr fim à turbulência iniciada quatro anos antes. Desde seu início, o novo governo fez avançar uma política econômica de restrição e liquidação de políticas sociais, retração de investimentos públicos, ataques a direitos humanos, civis e ambientais e renúncia à soberania.

Ao contrário da Conferência de 1986, a 16a Conferência Nacional de Saúde realizou-se em uma conjuntura de retração da mobilização política e social. O objetivo da construção de um sistema de saúde universal e “único” não foi atingido e permanece distante. Alguns fatores foram determinantes para esse desfecho: (i) constituição, no período ditatorial, de um complexo médico-empresarial privado com significativa capacidade instalada, construída em grande parte com financiamento público; (ii) existência de uma enorme massa de desassistidos, excluídos do sistema de medicina previdenciária até então vigente, que passaram a ser cobertos pelo novo sistema, ampliando grandemente a demanda por serviços; (iii) não previsão de fontes de financiamento compatíveis, gerando um quadro de subfinanciamento crônico, agravado pela desvinculação de recursos do orçamento da seguridade social no período subsequente. A consequência foi a não adesão ao SUS de segmentos importantes: camadas médias ligadas às profissões liberais e intelectuais, servidores públicos e trabalhadores dos setores mais dinâmicos e organizados da indústria e serviços (ver, a respeito, Costa et al. 11).

As instâncias participativas podem influir positivamente na resolução de entraves na elaboração de políticas, mas se mostram frágeis como fonte de legitimação alternativa à representação derivada do sufrágio universal e não substituem o trabalho de articulação política, especialmente em momentos de crise como o atual.

A significativa vitória expressa pela conclusão de todas as etapas da 16a Conferência, pela reafirmação dos compromissos e luta pela democracia e saúde e por sua extensa pauta setorial, só terá possibilidade de avanço se se associar ao despertar de mobilizações em torno de uma agenda mais ampla, que interrompa o ciclo de retrocessos e que recomponha e faça avançar o pacto celebrado em torno da Constituição de 1988.


Referências

  1. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 568, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União 2018; 15 jan.
  2. Offe C. New social movements: challenging the boundaries of institutional politics. Soc Res (New York) 1985; 52:817-68.
  3. Streeck W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual; 2013.
  4. Boltanski L, Chiapello E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009.
  5. Lopez FG, Pires RRC. Instituições participativas e políticas públicas no Brasil: características e evolução nas últimas duas décadas. In: Brasil em desenvolvimento: Estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2010. p. 564-87.
  6. Dowbor L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária; 2017.
  7. Dahl RA. A democracia e seus críticos. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2012.
  8. Amer K, Noujaim J. Privacidade hackeada [filme]. Los Gatos: Netflix; 2019. Color, 113 min.
  9. Fiori JL. Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos. Saúde Debate 2018; 42 (n.esp 3):10-7.
  10. Fiori JL. Onde estamos e para onde vamos? Uma “potência acorrentada”. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590645-onde-estamos-e-para-onde-vamos-uma-potencia-acorrentada (acessado em 05/Jul/2019).
  11. Costa AM, Noronha JC, Noronha GS. Barreiras ao universalismo do sistema de saúde brasileiro. In: Tetelboin C, Laurell AC, editores. Por el derecho universal a la salud: una agenda latinoamericana de análisis y lucha. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; 2015. p. 17-39.