Depois do gozo: notas sobre o último capítulo de ‘Amor à Vida’ uma semana depois

Diego Semerene/ Brasil Post

 

A excitação — libidinal, sentimental, cinematográfica — tende a embaçar nossa capacidade crítica. Uma semana depois, já deve ser possível falar sobre aquele beijo com a racionalidade que o pós-coito nos permite. Talvez devamos consultar a Rede Globo, que insiste em ser o oráculo previsor do que o brasileiro está ou não preparado a testemunhar. Gilberto Vasconcellos já dizia que “o que não é televisão não tem valor cultural” no Brasil. Isso, claro, não é culpa da televisão, mas de nós mesmos que terceirizamos para ela o serviço de re-conhecimento do que se deve contar como legítimo.

Porque realmente nos apaixonamos por Félix e Niko? E o que a cegueira provocada por tal paixão nos evitou de ver? Mais importante, o que essa dinâmica do espectador presumidamente hétero e seus amantes gays televisivos revela sobre o lugar que a homossexualidade ocupa no regime heterossexual? Um lugar não de negação ou subversão, como poderíamos pensar, mas de dependência fundamental. Para a feminista Luce Irigaray, por exemplo, a heterossexualidade nada mais é do que a homossexualidade entre homens separada pelos corpos femininos. Para Freud, a heterossexualidade é inaugurada por um “não” inconsciente à homossexualidade. Um “não” que temos que repetir todos os dias, a cada minuto, ajudados pelas instituições que policiam as regras de gênero (a TV, a escola, a família, a linguagem) e que nos coercem a jamais dizer sim. Com sorte, e esse talvez seja o mais profundo insight da teoria queer, existe uma lacuna entre a repetição desse “não” e o próximo “não”. É nessa naquila que vive a possibilidade que algo fora do script aconteça. E acontece.

Não saberíamos isso ao assistir à novela, que com tanta pompa progressista na verdade enforçou o que há de mais retrógrado com relação à sexualidade e gênero, remarcando as fronteiras que separam as categorias gay e hétero como impermeáveis. Por mais que Eron (Marcello Antony) e cia. experimentassem “o outro lado”, eles estavam destinados a caírem por si e finalmente “serem eles mesmos”.

Mas enquanto esses gays meigos — até quando personificando o estereótipo da bicha má com maestria — nos seduziam tão sorrateiramente, por onde andavam as mulheres? Se a dinâmica entre os gays de “Amor à Vida” e o público se tratava de um strip tease em slow motion que divorciava a sexualidade da sensibilidade (o psicanalista do “Encontro com Fátima Bernardes” se referiu ao beijo gay como um “beijo de tia”) — esses gays meio Sandy que não trepam, não bebem, não fumam, não frequentam sauna, e nem usam o Grindr, as boas moças na novela nos lembravam que o único papel legítimo da mulher no Brasil é o de ser mãe — uma vez que ela já não possa ser mais mulher-fruta.

Fruta, esse objeto suculento, delicioso que o Brasil possui em abundância. Fruta, curiosamente, esse velho insulto reservado aos gays. Talvez não aos gays da novela, redimidos, passivos e amáveis (são carneiros, pôneis ou unicórnios?). A eles reservava-se a palavra “bichona” nos diálogos, e “baitola” em entrevistas com os atores como a de Marcello Antony no último “Altas Horas”, para as gargalhadas do público. No último programa do Serginho Groisman a palavra “baitola” apareceu no meio de piadas sexistas do outro convidado, Zezé di Camargo, uma espécie de brasileiro-mor, que disse, para delírio dos adolescentes presentes após re-assistirem a cena em que Niko (Thiago Fragoso) termina com Eron, que passar mulher pra trás é fácil, “o difícil é passar mulher pra frente”, pro próximo homem da fila. Já nos dizia Gayle Rubin via Lévi-Strauss que a heterossexualidade é precisamente isso: uma relação não entre homens e mulheres, mas entre homens e homens, na qual a mulher é esse estorvo meio para-choque meio para-lamas garantindo que esse homens se relacionem eroticamente sem precisar se tocarem. A mulher é esse presente que vai passando de mãos em mãos, de dono em dono — literalmente perdendo seu próprio nome. Como uma bola de futebol, de pé para pé, de pai para filho.

Mas se tocaram, no final, não é? As frutas se tocaram. E são frutas, não são homens. Gozamos ao assistir à bicha má ser forçada a extrair o seu ferrão e se transformar num frágil eunuco, apaixonado por um querubim ainda mais castrado. Talvez tivesse sido concessão demais assistir o bofe Eron beijar seu carneirinho e ir contra o essencialismo gritante que associa à prática homossexual não só à uma identidade (estável, hermética, e biológica) mas também uma performance de gênero grotescamente feminina. “As gays se amam entre si” é a mentira que contamos, deixando os homens seguramente (ontologicamente) separados de qualquer possibilidade de desejar essas frutas órfãs, ao invés das, ou ao mesmo tempo que as mulheres-frutas. Os gays acreditam também, forçados à desejarem os homens mas só se tocarem entre si. Afinal, somos todas frutas do mesmo tacho.

Frutas, bichas, e baitolas. Da novela que nos quis ensinar tudo, aprendemos pouco, e não executamos nada. Por mais que o seu Facebook diga diferente, com seus relatos de “somos todos uma grande família” após termos recebido o aval do grande pai Fagundes ao, finalmente, reconhecer seu filho gay como um ser suficientemente humano. A família aparece aqui como pré-requisito para que a homossexualidade consiga status de legitimidade. A família e a falta de sexo. Como nos disse Eve Sedgwick, o bom homossexual é o homossexual macho, ou o homossexual morto. No caso do Brasil parece ser o contrário. Aqui o bom homossexual é a incamuflável fruta que não se confunde com o homem. O homossexual, o verdadeiro palhacinho da novela, só consegue o re-conhecimento como pessoa ao sacrificar sus existência para cuidar do outro — como num seppuku figurativo. Seu direito de viver em sociedade não lhe é inerente. No fim, cabe à ele conseguir forças, para conseguir articular o inarticulável: “Sabe, pai, eu te amo.”

A euforia em torno do beijo gay, ou de sua promessa, disfarçou o conservadorismo dos discursos pseudo-progressistas de “tolerância” e “aceitação” que sustentaram a novela e que colocam a (falsa) maioria na confortável posição de superioridade intrínseca. Cabe à ela decidir aqueles que deve ser “tolerados.” Essa euforia foi o resultado de uma sofisticada estratégia paternalista que colocou o público (leia-se a nova classe média, ou a fantasia do que a nova classe média venha a ser para a emissora) no lugar de pupilos, se alfabetizando na arte das boas intenções da classe média velha, moderna, e devidamente adestrada ao que consta como progresso.

“Amor à Vida” era uma espécie de “Esquenta”, o programa dominical multicolorido onde Regina Casé prega “Xô preconceito” como filosofia de vida… Logo antes de chamar humoristas mal-travestidos para o palco pra geral morrer de rir. No “Esquenta” geral dança e canta como nas chanchadas dos anos 30 e Regina Casé funciona como enviada especial da zona sul catequizando os novos consumidores na arte de viver em sociedade consumidora antes que eles escapem pra algum rolezinho por aí. É uma espécie de “Xou da Xuxa” pra maioridade: elege-se um Outro todo-poderoso que provoca o êxtase em geral ao aplicar Sua mission civilisatrice.

Mas essa missão foi também uma revisão do que já sabíamos e não podemos jamais desaprender. Pois, se gozamos tanto ao esperar aquele beijo, gozamos precisamente porque sua premissa confirmou todo um sistema de verdades fictícias do hetero-patriarcal tupiniquim sem mudar nada de eixo. Aprendemos que é proibido linchá-los, esses gays carneirinhos sem libido, cheios de grana e cheios de filhos. Mas re-aprendemos que eles são eles, nós somos nós, e que qualquer semelhança é mero romantismo. Re-inscrevemos na pele a ilusão que em se tratando de Desejo não há nem confusão nem desordem. Que Ele cabe em nós e não nos governa. Que tudo além do script hetero e homo (dá no mesmo) cai no campo do inimaginável. Caímos no papo essencialista estilo “born this way” que deixa a heterossexualidade inquestionável e sua fronteira com todo o resto como impenetrável.

É verdade que em “Amor à Vida” a filiação biológica parecia jamais coincidir com a filiação emocional. Essa falta de sincronia de parentesco era tratada ora como um problema, ora como parte fundamental da “nova família brasileira”. Mas o fato é que se fetichizou a figura da criança como o único caminho rumo a uma legitimação social. Se a fashionista da novela fazia sexo sem camisinha com o Caio Castro e com o Marcio Garcia (como culpá-la?), sua promiscuidade era moderna. E o resultado era fofo. Mas pra cada Patrícia (Maria Casadevall) havia dúzias de Palomas (Paolla Oliveira) para compensar a sexualidade extraída dos gays. O papel da boa mulher, da mulher sem ferrão, continuou sendo, na melhor das hipóteses, ter filhos. Ter muitos filhos. Se ela correr risco de vida na segunda gravidez, como Paloma, melhor ainda. Pois como disse Bruno (Malvino Salvador) logo apos o segundo parto altamente arriscado de sua esposa, “Você me deu o melhor presente que uma mulher pode dar à um homem”.

“Euforia” parece ser a palavra mais adequada para descrever a estratégia de Walcyr Carrasco e sua turma para camuflar os dois passos para trás que a novela dava à cada passo à frente que ela tão condescendentemente anunciava dar. Essa euforia, essa sensação de bem-estar alucinatório que nos faz sentir do lado certo da história e, logo, menos tomados pelo que os americanos chamam de “culpa branca,” chegou em seu ponto máximo na última cena do capítulo final. A cena que seguiu o beijo que o Brasil esperou com tanto tesão que confundiu frisson com boa política. A cena pós-beijo, que nos desintoxicaria da viadagem performada com uma estética cinematográfica à la Visconti e um diálogo de dar soco no estômago. Quem poderia lembrar de um beijo após um soco?

Aqui os produtores da novela deixaram de lado a dinâmica de jogral tosco que atolava tantos núcleos da novela (do Francisco Cuoco ao José Wilker) — era o sacrifício que o brasileiro se submetia pra poder em algum momento se deparar com seus gays de estimação — para usar do maniqueísmo do cinema e nos fazer chorar pós-gozo. Nos redimir. Gozamos com as gays mas foi por sentimento, não por tesão!

Nessa cena, a mais bela que me recordo na teledramaturgia brasileira (há de se dizer), Solano empurra Fagundes em sua carreira de rodas pelos coqueiros em direção à praia como uma diva na passarela arenosa de Caorle. A estética dos raios de sol penetrando a câmera intermitentemente como que sem querer dá a aura cinematográfica ao quadro. A temporalidade da cena não é novelesca. Isso é um filme. A música clássica dá o último golpe. Não nos resta alternativas a não ser amaciar o coração porque vai doer. Queremos choro. Queremos catarse. Estamos no território de “Morte em Veneza.” No filme, adaptado do romance de Thomas Mann, Dirk Bogarde é um velho pianista gay e ranzinza que vai à praia para admirar o belo na face de uma criança loira — um menino de 14 anos chamado Tadzio. A beleza do carneirinho loiro seduz Bogarde ao ponto dele ignorar as bombas que caem na cidade em tempos de guerra para o seguir. Na novela não há bombas e as crianças são relegadas ao papel de gracinhas puras e mudas. Exceto à Klara Castanho, a menina virando mulher, que sofre o pão que o diabo amassou do começo ao fim: abandonada, enganada, literalmente jogada no lixo, e disposta à tudo para conseguir um afago do pai, ou do tio. Uma amostra do que está por vir.