Devagar com a UPA

Por Marcus Pestana*

O Sistema Único de Saúde completou vinte anos. Entre vitórias e derrotas, o saldo é positivo. Os constituintes arquitetaram uma proposta ousada e generosa: um sistema público de saúde baseado nos princípios da universalidade (ninguém pode ser discriminado) e da integralidade (acesso ao conjunto de linhas de cuidado necessárias ao longo de toda a vida). Hoje a saúde pública é muito melhor que no passado.

Os sanitaristas que lideraram a reforma sanitária apontavam a necessidade de superarmos o modelo hospitalocêntrico. Ou seja, era preciso cuidar da saúde e não da doença. O desafio seria construir um sistema público que abordasse as demandas de saúde da população na raiz, com estratégias pró-ativas, na promoção, prevenção e na atenção primária qualificada. Fora isso, ficaríamos “enxugando gelo” passivamente, recebendo demandas nos balcões de farmácia e nas portas de hospitais.

Recente pesquisa do Ministério da Saúde demonstra o acerto do diagnóstico. Em 2005, diz a pesquisa, 32,2% das mortes foram derivadas de doenças do aparelho circulatório, 16,7% em função do câncer e 14,5% derivadas da violência contemporâneo no trânsito ou nas ruas.

Diferentemente de 1930, quando 46% das mortes eram por doenças infecciosas, hoje temos um perfil de sociedade moderna. As doenças predominantes são crônicas e têm entre suas causas hábitos de alimentação, alcoolismo, tabagismo, sedentarismo, vida sexual não saudável, exposição solar, além da falta de cultura comunitária que nos faça diminuir a violência. Ou seja, fica claro que se não atuarmos na raiz, ficaremos imobilizados por uma demanda crescente e desorganizada nas portas de UPAs, prontos-socorros e hospitais. Se não cuidarmos de forma ativa e mobilizadora dos hipertensos, dos diabéticos, das gestantes, dos portadores de sofrimento mental, enfim, de cada cidadão, lá no bairro, na vila, no aglomerado, não haverá dinheiro que chegue e qualidade de vida que permaneça de pé.

Recentemente, a partir das debilidades da atenção primária no município do Rio de Janeiro (7,5% somente de cobertura populacional do PSF), instalou-se a discussão sobre a multiplicação de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Esta foi a resposta emergencial encontrada pelo governo do estado para responder às demandas reprimidas da população. O presidente Lula se encantou com a agilidade da resposta. O Ministério da Saúde apresentou, para a discussão, resolução nacional sobre o assunto. Como bom mineiro, diria “devagar com o andor, que o santo é de barro” ou “vamos dar a César o que é de César”.

Alguns esclarecimentos: I) As UPAs não são invenção recente. Existem há décadas como unidades intermediárias de atenção secundária, com funcionamento 24 horas, focadas em urgências e emergências e também em suprir as demandas primárias nos momentos em que as unidades básicas se encontrem fechadas. II) As UPAs precisam de financiamento e de diretrizes nacionais. Mas única e exclusivamente como pontos de atenção de uma rede integrada de serviços, e não como estratégia substitutiva ou como paradigma alternativo.

Se desejamos honrar o sonho dos fundadores do SUS, não há outro caminho senão trabalhar para a superação do modelo de atenção piramidal, passivo, fragmentado. Daí nascerá uma rede horizontal integrada de serviços de saúde (unidades básicas, policlínicas, UPAs, laboratórios, farmácias, hospitais gerais, hospitais especializados) orquestrada por uma qualificada atenção primária. Afinal são as equipes de saúde da família que têm vínculos efetivos com as pessoas e as famílias.

Não é nada fácil construir uma saúde de qualidade nas condições brasileiras. Mas um conjunto de equívocos não pode resultar em modelo de sucesso. A travessia para assegurarmos a universalidade e a integralidade é longa, complexa, difícil. Mas não é um atalho falso que nos levará ao êxito.

(*) Marcus Pestana é secretário de Saúde de Minas Gerais e foi presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de saúde) e diretor de Estudos e Pesquisas do ITV. Artigo publicado no jornal o Globo, na edição do 11/11/08.