Direito ou privilégio?

A ausência de alternativas vigorosas e o acirramento das contradições impostas atualmente à efetivação do direito universal à saúde conduzem para a irreversibilidade da mercantilização e financeirização da saúde.

 

Ana Maria Costa, presidente do Cebes | Originalmente publicado na revista Esquerda Petista | Ed. 04 – 09/15

 

O mercado da saúde tomou conta do Brasil se transformando em poder político e financeiro e vem destituindo o direito universal à saúde que é constitucional com a anuência e ajuda dos trabalhadores e da sociedade. Com essa afirmação procuraremos nesse texto desenvolver argumentos em defesa das bases da reforma sanitária, da saúde como direito universal e do papel que tem no projeto de desenvolvimento nacional. Para isso analisaremos a conquista do direito à saúde no plano legal e a situação atual da saúde no Brasil para finalizar com algumas propostas ao debate.

Nos anos setenta ocorreu uma sucessão de crises na saúde com a exclusão de enorme parcela da população da assistência medica previdenciária associada a corrupção que induziu a gestação de um projeto do campo da esquerda para a mudança na saúde no Brasil. Em 1979 o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) apresentou o documento “Democracia e Saúde” em defesa do o direito universal à saúde e da responsabilidade do Estado no seu provimento, articulando a luta pela saúde à luta pela democracia e pelo novo Estado a ser reconstruído depois dos anos de chumbo da ditadura militar. Com essa agenda política se organiza o “Movimento da Reforma Sanitária”, integrado por forças do espectro político de esquerda, que, em comum, reivindicavam por democracia, por direitos e por políticas sociais de corte universalista inspiradas nos modelos bem-sucedidos da socialdemocracia europeia ou dos países socialistas que ainda não viviam sua desarticulação.

A mobilização social em torno da demanda por uma política universal de saúde não persistiu como força política ampla para, no período subsequente, dar sustentação às conquistas realizadas no processo constituinte. Esta sustentação seria fundamental na consolidação do direito à saúde na sua dimensão ampliada associada ao conjunto das políticas para garantir qualidade de vida e particularmente, na consolidação do sistema criado para dar consequência a esse direito no plano da assistência que é o Sistema Único de Saúde (SUS).

O movimento sindical, revigorado no final dos anos setenta e ao longo dos oitenta, mesmo defendendo a tese dos direitos e das políticas sociais sintonizadas com o campo da esquerda mundial, não incorpora a agenda universalista na sua pratica, encaminhando para o mercado sua pauta relativa à busca de soluções para a assistência medica ao mundo sindical.

A janela de oportunidade originou da onda de mobilização por democracia, direitos e politicas universalistas ocorrida logo no início da nova democracia nacional, ganhou força e conquistou espaço na concepção das políticas de proteção social que fundamenta o capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988. Naquela altura o Movimento Sanitário teve protagonismo na formulação do texto constitucional que definiu sob a denominação de Seguridade Social, o “conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

É preciso ressaltar que a Política de Proteção e Seguridade Social– articulando saúde, previdência e assistência social – aprovada pelos nossos constituintes e constante de nossa Carta deriva de uma base conceitual e política de uma sociedade solidaria que, para ser operacionalizada conta com distintas faixas de contribuintes para que todos, de forma indistinta, possam usufruir. Esse tecido de sociedade solidaria é essencial na democracia e no desenvolvimento social.

Vale a pena ao momento presente, relembrar os objetivos para a Seguridade constantes no texto constitucional: a universalidade da cobertura e do atendimento; a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; a irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; a diversidade da base de financiamento; e o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

E nessa matriz que daria as bases para o novo Estado brasileiro, a Constituição definiu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Artigo 196, CF).

A ambiguidade das Leis Ordinárias da Saúde (Leis 8080 e 8142) que foram aprovadas sob o governo de Collor, contaminam as conquistas e são marcadas pelas contradições ao projeto da saúde. O SUS — que era para ser universal e abarcar todos os recursos de saúde — é reduzido em seu Artigo 4º apenas ao “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público…”.

A iniciativa privada, cuja liberdade de atuação é garantida pelo Art. 199 da Constituição, só é abarcada pelo SUS na prestação suplementar de serviços ao mesmo (§ 2º do Art. 4º, Lei 8080). Nesse corredor nebuloso prosperam e são incentivados os arranjos inteiramente privados e, no nascedouro desaparece o caráter de único do sistema, que daria protagonismo aos interesses públicos e coletivos sobre a saúde.

Assim é que mesmo mantido na Constituição, a efetivação do direito à saúde tem sido turbulenta e vem ocorrendo em um cenário complexo e cada vez mais agressivo de jogos de interesses que vem transformando saúde, doença e procedimentos médicos em mercadoria, em um negócio cada vez mais arriscado para a saúde, pois é movido pelos interesses nada humanistas que o mercado determina e pratica.

É importante analisar as distintas conjunturas que submeteram a saúde ao lugar que hoje ocupa no país, mas é ainda fundamental analisar as consequências a curto e médio prazo que esse modelo terá sobre as condições de vida e de saúde da população brasileira.

Diversos estudiosos concordam que o neoliberalismo no Brasil se inicia no governo Collor e segue nos governos Itamar Franco e FHC (1990-2002); ocorrendo uma fase de transição no primeiro governo Lula (2003-2007). Para a saúde recém-inscrita como direito universal, Collor deu o tom neoliberal que irá marcar a forma de tratamento conferido à saúde daí por diante, enaltecendo um discurso e fazendo o contrário ou seja, em um movimento de opções contraditórias: por exemplo, valoriza os méritos da descentralização e do “controle social” e de outro, aprofunda-se a subtração de recursos da saúde.

Essa subtração, iniciada com Collor mas mantida por todos os governos subsequentes que até o presente momento não garante recursos suficientes para a saúde produz o fenômeno do subfinanciamento do SUS. Esta condição tem como consequência a baixa qualidade do SUS gerando insegurança da população quanto ao atendimento prestado e teve como resultado indireto o crescimento dos planos e seguros de saúde, que de acordo a última Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 já cobre 60 milhões de beneficiários.

Logo no início da década de 2000, o sistema de saúde brasileiro que era para ser único encontrava-se fraturado em dois. De um lado, para ricos e remediados, um modelo anárquico dominado pelo mercado, com a assistência médica predominantemente privada, com regras de concorrência predatórias, sem nenhum programa de qualidade associado e com quebra de cobertura nas doenças crônicas e na velhice, que só tiveram regulação ainda que precária, com a aprovação em 1998 da lei 9656. Do outro lado, um sistema para os pobres, o Sistema Único de Saúde (SUS), fragmentado, múltiplo, descentralizado com escassa coordenação e articulação, sub-remunerado, com ênfase nas prestações médico-assistenciais sem definição de prioridades, orientado pela oferta de serviços.

Com a eleição de Lula ao cargo de presidente do país por meio de uma coalizão de partidos políticos, hegemonicamente de centro-esquerda, elevou as expectativas em relação às políticas sociais, incluindo a esperança de aproximação da política de saúde ao projeto da reforma sanitária. Essa esperança não prosperou e nessa fase ampliou ainda mais a presença das seguradoras de saúde e esse mercado se fortaleceu mais ainda.

Lula investiu nos diversos programas e políticas de redistribuição de renda que, a despeito dos benefícios e impactos sobre a saúde e a educação, foram oportunas e saudadas pelo ideário liberal pois operaram positivamente em relação ao mercado e ao consumo, especialmente ao serem agregadas às mudanças realizadas no salário mínimo e redução de impostos sobre cesta básica. Entretanto as contradições mostram que o jogo é mesmo complexo: Lula emprestou sua popularidade e prestígio junto à sociedade para incentivar a previdência complementar privada e promover reformas restritivas no sistema previdenciário.

Ao final do primeiro governo Lula prevalece a sensação de que, a despeito da crise econômica de 2008 o país consegue avançar na estrutura social. Mas esse feito não resulta na consolidação de novo patamar de desenvolvimento econômico que requereria maior tempo e a presença de mudanças na estrutura produtiva e no emprego, ou seja, nas relações entre o capital e o trabalho. Nesse contexto, a mobilidade das classes sociais permaneceu obstruída no que diz respeito à ascensão da classe média, como expressão da luta das classes. Nessa conjuntura de ampliação do emprego e do consumo sem melhorias do sistema público de saúde, cresce a demanda por planos empresariais de saúde que hoje constitui a maioria do mercado.

Claro que não começou com o governo Lula o fortalecimento do setor empresarial dos planos de saúde privados no país, mas esse modelo foi favorecido pelo caminho de desenvolvimento que herdou e que adotou. O padrão de desempenho econômico desses setores de mercado aliado à precariedade da assistência à saúde oferecida pelo SUS ressalta numa sociedade cujo ideário político e de direitos é manipulado pelas classes dominantes, ou seja, a ideia de que os serviços públicos são e serão sempre de baixa qualidade e que o mercado é a garantia da qualidade em assistência médica.

Existe uma ausência de ideários e valores genuínos na sociedade nacional associado aos direitos sociais e à solidariedade o que se reflete em uma certa unanimidade quanto a crença de que política social é para pobres. Esta mesma sociedade que sem apropriar da conquista que obteve com a Constituição, de forma passiva vem assistindo ao desmonte institucional, orçamentário e conceitual da Seguridade Social.

A despeito da saúde integrar a seguridade social e ocupar a condição de direito social universal, na última década, às custas do crescimento do gasto privado das famílias e não em virtude do investimento e gasto públicos, o setor da saúde passa a comparecer de forma mais robusta no Produto Interno Bruto (PIB).

A dimensão do gasto das famílias com a saúde é de 57 por cento do gasto total em saúde em 2009 e está distribuído de forma equiparada entre o gasto com medicamentos e aquele com planos privados de saúde mostrando a importância desse mercado no contexto nacional.

A renúncia fiscal, ou seja, o tributo que o governo deixa de arrecadar com os gastos privados em saúde, opera como incentivo para que trabalhadores e população em geral gastem com serviços e planos privados de saúde. Claro que a população é estimulada a buscar recursos assistenciais privados em saúde também por que não confiam no SUS para resolver de forma oportuna e com qualidade os seus problemas de saúde, remetendo àquela ideia estabelecida de que os serviços públicos são ruins.

Enquanto o SUS não for um sistema de qualidade e de fácil acesso para todos, a população não confiará nele. Mas para isso precisa de recursos. O montante estimado da renúncia fiscal não é desprezível e esse recurso se aplicado no SUS faria diferença.

Por cima de tudo, o SUS gasta com a população segurada por planos privados, particularmente no atendimento de emergências, doenças crônicas e tratamentos caros que os planos rejeitam pagar. Mesmo sendo legal e o governo ter empenhado no ressarcimento aos cofres públicos, estamos muito distantes de receber todo o gasto de volta. Assim o seguro lucra duas vezes: com o que recebe do segurado e com o que deixa de gastar com o atendimento feito pelo SUS.

Mas o setor privado da saúde que hoje conta com forte presença do capital financeiro, não cresce sozinho, pois conta com a generosa ajuda das políticas econômicas e fiscais articuladas com concessão de benefícios e tributos que, aliada à frágil regulação, tornam a privatização da saúde um problema bem mais complexo e grave.

Para analisar o fenômeno é fundamental retomar que ocorreu no país uma clara mudança de status das empresas privadas de assistência médica ao longo dos anos oitenta e noventa, refletindo uma tendência internacional que localizava espaço para o mercado e o lucro no fracasso dos serviços públicos, delineando o bom cenário futuro de investimento para o novo mercado para a saúde.

Essa alavancagem no Brasil compreendeu uma estratégia sintonizada de mudanças do regime de subsídios diretos para o de políticas fiscais de incentivos de demanda e de oferta, que protegeram as empresas na crise de recessão econômica do final dos anos noventa.

Essa engrenagem permitiu ganhar a adesão de empregadores e empregados e, de forma perversa, se estabelece uma conjugação de bases do financiamento e incentivos oriundas do fundo público, modelando uma assistência fragmentada e estratificada na sociedade e no interior das próprias empresas. Nesse caso, pesquisadores já mostram que as seguradoras oferecem distintos padrões de coberturas e cobram distintos valores por tipos de procedimentos por diferentes planos que são adquiridos de acordo ao status sócio-operacional dos empregados.

De fato, o que vem ocorrendo desde os governos dos anos noventa até os tempos do início do segundo governo Dilma, passando pelos dois governos de Lula, é que o país vem sendo submetido a políticas econômicas com explícito favorecimento aos interesses do capital financeiro que privilegia juros altos, câmbio apreciado, crescimento da dívida interna e superávits primários que favoreceram o mundo das finanças inclusive no empresariamento da saúde.

De acordo com o Balanço Geral da União, em 2013, enquanto a fatia do gasto orçamentário federal destinado para a saúde foi de 6,0 por cento, para o pagamento de juros e encargos da dívida e para a amortização dessa dívida foram gastos 18,3 por cento.

O chamado neodesenvolvimentismo do segundo governo Lula e, menos caracterizado e desgastado, do primeiro governo Dilma, vem sendo fortemente atacado e desconstruído pelas forças conservadoras da sociedade, incluindo aquelas que sustentam a coalizão política desses governos.

Mesmo sem promover as mudanças estruturantes sobre a produção, o mercado e o trabalho, o Brasil com Lula conquistou avanços em relação ao modelo anterior essencialmente liberal de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, apesar de manterem preservados os interesses do capital, esses governos, particularmente o segundo governo Dilma, sofrem pressões que os tornam igualmente obedientes aos interesses que se impõem hegemônicos para o país. O governo é alvo, entre outras coisas, pelas ameaças que representa a ruptura da polaridade do capital pela aliança que promove e inclui o país com os países do BRICS.

Nesse espaço de fragilidade política e dos governos sustentados apenas pelas políticas de redistribuição de renda que marcaram o populismo e fortaleceram o carisma de Lula e no seu primeiro mandato, a imagem da austeridade gerencial de Dilma, foi possível ao governo agravar ainda mais o subfinanciamento federal da saúde pública, tornando-se tão grave e ameaçando a subsistência do SUS como um sistema universal e público de saúde.

Por outro lado, crescendo mais que o conjunto da economia do país, o mercado de seguradoras e planos de saúde da saúde vem se fortalecendo no cenário econômico e político no Brasil e hoje é um dos maiores financiadores das campanhas eleitorais no país. A cada eleição aumentam os investimentos realizados e o número de políticos financiados, incluindo candidatos aos poderes Legislativo e Executivo. E com isso ampliam poder e garantem suas pautas no Congresso Nacional e no Poder Executivo.

O atual sistema eleitoral é corrompido, diretamente e através do financiamento empresarial das campanhas eleitorais.

O capital que tem aliança clássica com os governos, por esse caminho, captura ainda mais o Estado e garante maiores transferências para si no que poderíamos chamar da apropriação de uma mais valia coletiva, em outras palavras, subsídios à acumulação privada, seja através do favorecimento a planos de saúde, de benefícios a fundos de investimento na saúde, da abertura ao capital estrangeiro, ou de ataques às parcerias de desenvolvimento produtivo com estímulo e preferência de compra às empresas sediadas no país.

As recentes iniciativas da nova legislatura do Congresso Nacional dão mostra do poder do financiador sobre parlamentares. Somente nessa legislatura iniciada em 2015, um conjunto de medidas tem sido propostas e muitas já votadas que significam enormes retrocessos quanto ao direito à saúde. De fato a forma e rapidez que vêm atuando estes parlamentares têm dado mostra da urgência que almejam implementar as mudanças que lhes favoreçam.

No final da legislatura passada, nas vésperas dos festejos de final do ano, autorizaram a entrada de capital estrangeiro para exploração de serviços de assistência à saúde, antes proibidas pela lei a partir do entendimento de incompatibilidade de interesses em relação ao sistema público universal (Art. 142 da Lei 13.097).

Igualmente, já nesse ano, colocou em pauta uma PEC que baseada no princípio do direito universal a saúde, opta pela obrigatoriedade de fornecimento pelos empregadores, de planos privados de saúde a todos os empregados. Essa pauta que em última instancia aposta no extermínio do SUS, tem potencial de receber a adesão de importantes setores sindicais enquanto os empregadores e o governo já se mostraram contrários a ela.

Agravando o cenário ainda em 2015, o Congresso e o Governo alteraram a vinculação do piso do orçamento setorial à variação nominal do produto interno bruto para uma proporção de apropriação das receitas correntes líquidas em proporção inferior às demandas do setor (que reclamava a destinação de 10 por cento das receitas brutas da União para a Saúde) através de emenda constitucional.

A ausência de alternativas vigorosas e o acirramento das contradições impostas atualmente à efetivação do direito universal à saúde conduzem para a irreversibilidade da mercantilização e financeirização da saúde, aproximando o Brasil do modelo americano, excludente e deficiente para os pobres, tecnológico, sofisticado e resolutivo para os que podem pagar.

A parcela da população que tem seguro privado associado ao emprego sabe que, ao perder o vínculo do emprego ou com a aposentadoria, não conseguirá seguir pagando plano de saúde cujo preço aumenta com a idade. E isso ocorre justamente na fase da velhice, quando as pessoas mais precisam de atendimentos e serviços de saúde, o recurso que resta a elas é o SUS. Portanto, defender a consolidação do SUS é uma questão de consciência política em relação aos direitos sociais, de cidadania. Trata se de um processo longo de incorporação dessa consciência que já está em curso no Brasil.

Os setores econômicos devem incorporar a concepção de que saúde não é gasto, mas investimento. É desenvolvimento não apenas no que acarreta para a condição de vida, mas no campo da prestação de serviços, do emprego, no mercado e na indústria no desenvolvimento e incorporação tecnológica

O Brasil investe poucos recursos públicos para a saúde em relação a todo o mundo, a países mais pobres e sem sistema público universal. O SUS não tem financiamento suficiente e com o ajuste fiscal reduziu ainda mais. Entretanto o Brasil continua gastando um volume muito grande de recursos públicos com o pagamento de juros e encargos da dívida (10%) e amortização da dívida (8%) contra apenas 6% para a saúde. Ainda temos a DRU que desvinculara agora, se aprovada, até 30 % dos recursos da saúde a depender das necessidades “prioritárias” do governo. O SUS precisa de recursos, adequados e vinculados, para que se consolide como o sistema de saúde tal como previsto.

Os objetivos setoriais da saúde universal e de qualidade e associadas ao SUS deparam com barreiras e contradições no interior do próprio modelo de Estado, sociedade e de desenvolvimento do País.

O ajuste fiscal adotado pelo Brasil em 2015 abriga o risco de colocar o país em um ciclo vicioso, em que o corte de gastos reduz ainda mais o crescimento o que, por sua vez, diminui a arrecadação e exige mais cortes de gastos para cumprir a meta fiscal. Pode ser o fim do ciclo das políticas sociais inclusivas e estruturantes. Como mostra o caso europeu, esse caminho é longo o suficiente para reverter conquistas sociais mesmo que consolidadas como os sistemas de proteção social daqueles países.

O crescimento sustentado pelo segundo governo Dilma está baseado na recuperação da confiança dos agentes investidores para fazer a economia voltar a investir e crescer excluindo fontes de incentivo ao investimento em um cenário de recessão onde é baixa a expectativa de demanda e lucro.

Supondo que o ajuste tenha como sentido a readequação do modelo de desenvolvimento brasileiro, o mesmo é questionável em relação ao custo que estas medidas terão para a população desde a redução de salários reais, gerada pelo aumento do desemprego e da inflação como na retração do papel do Estado e dos bancos públicos. Sob o atual cenário, as bases do chamado neodesenvolvimentismo do governo Lula estão desaparecendo para darem lugar à receita clássica liberal de desenvolvimento, a um elevado custo político para o país.

Da mesma forma, o Congresso começa a produzir leis que restringem direitos trabalhistas, ajustadas aos interesses liberais e de alta repercussão e impacto para o sistema de saúde, onde salários e direitos representam custos, reduzem a competitividade e oneram a produção.

Enquanto isso, a esquerda se fragiliza e surge na sociedade o fantasma adormecido das forças conservadoras que clamam pela volta dos militares e colocam em cena valores reacionários e atrasados.

Esboça-se a necessidade de mobilizar forças sociais para o embate político e disputa de projetos para o país. No plano econômico, debate-se a implementação de uma agenda pró-crescimento como porta de saída para o ajuste fiscal. Medidas como a taxação das fortunas e a preservação do investimento público fora do cálculo da meta de superávit primário em 2016, assim como já ocorre com os gastos com juros, passam a fazer parte da agenda de resistência. O agravamento da crise impõe o fortalecimento da defesa dos direitos sociais sob risco e a defesa da saúde como direito social universal e responsabilidade do Estado, para enfrentar as contradições e empecilhos contidos no atual projeto de desenvolvimento do país.