Eleições 2022, a crise sanitária e o resgate do SUS

Em artigo para o Estado de São Paulo, o pesquisador Adriano Massuda traçou um panorama da situação da saúde no Brasil em 2022 e a corrida presidencial. No texto, ele aponta para as iniciativas do governo federal para reduzir o tamanho do SUS, enquanto se investe em políticas fisiologistas através de emendas parlamentares. Adriano Massuda, Médico Sanitarista, Professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) e membro do FGV-Saúde. Foi Pesquisador-Visitante no Departamento de Saúde Global e Populações da Harvard T.H. Chan School of Public Health

Às vésperas do primeiro turno das eleições de 2022, cresce a preocupação em relação ao futuro do Sistema Único de Saúde. Apesar de o reconhecimento da importância do SUS nos programas dos candidatos à Presidência ser de inédito consenso, o debate eleitoral não discutiu com profundidade como os candidatos pretendem enfrentar seus problemas estruturais.

Em primeiro lugar, é preciso admitir a complexidade da crise sanitária brasileira. Além de se aproximar de 700 mil mortes pela covid-19 (11% dos óbitos no mundo), desde 2016 o país vem registrando piora em diversos indicadores de saúde. Os mais visíveis são a estagnação na trajetória de queda da mortalidade infantil e o aumento de mortes de mães, que saltaram de uma taxa de 54.8 para 107.2 por 100 mil nascidos vivos entre 2019 e 2021.

A rápida deterioração da situação de saúde brasileira tende a se agravar ainda mais se não forem adotadas medidas urgentes para corrigir problemas estruturais do SUS, agudizados pela tempestade perfeita que engoliu o país desde 2015.

Sistemas de saúde são organizações complexas, com funções interdependentes e fortemente influenciados pelo contexto. Mudanças no financiamento e na coordenação têm reflexos imediatos na prestação de serviços e nos resultados em saúde.

A combinação da crise política que resultou no impeachment de Dilma Rousseff, com a adoção de medidas de austeridade fiscal de longo prazo no governo Michel Temer, culminado com uma letal pandemia sob gestão de Jair Bolsonaro, deteriorou gravemente a funcionamento do SUS.
Ao mesmo tempo em que medidas de austeridade fiscal agravaram o subfinanciamento crônico do SUS, o Ministério da Saúde teve seu papel de coordenador nacional do sistema totalmente desfigurado.

Nos seis últimos anos, o país contabilizou seis ministros nessa pasta. Alguns dos quais não disfarçavam o desconhecimento sobre o que era o SUS. Outros fizeram questão de evidenciar que seu objetivo à frente do MS era reduzir o tamanho do SUS para fazê-lo caber em um orçamento “austero”, enquanto abriam os cofres da saúde para gastos por emendas parlamentares, escancarando o fisiologismo no uso dos recursos.

Expressão maior da deterioração da funcionalidade do SUS é o enfraquecimento da Atenção Primária em Saúde (APS). Embora a cobertura de Saúde da Família tenha permanecido em 63% da população desde 2016, a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2019) demostrou queda acentuada na taxa da população que relata utilizar os serviços de APS como fonte regular para acesso ao sistema (53,7% para 35,9% de 2013 a 2019).

A maior redução de procedimentos realizados pelo SUS durante a pandemia ocorreu na APS, área do sistema que registra mais lenta recuperação. Pior, desde 2016, há queda progressiva na cobertura vacinal – indicador básico que afere a força da APS – atingindo em 2021 os mais baixos níveis da história do SUS, submetendo o país ao iminente risco da reintrodução de doenças como a poliomielite.

Porém, se por um lado o debate eleitoral não permitiu discutir com profundidade como enfrentar os problemas estruturais do SUS, observa-se um amadurecimento nas propostas encaminhadas por diferentes entidades e associações aos candidatos à Presidência, como Frente pela Vida, CONASS, IEPS, ANAHP, Sindhosp e CNI.

Apesar das diferenças substantivas entre as posições históricas dessas entidades, identificam-se importantes áreas de convergência. Além do reconhecimento da relevância do SUS na resposta à covid-19, os documentos sugerem que é preciso recuperar a cooperação federativa para enfrentar os urgentes desafios do sistema de saúde brasileiro.

As propostas também têm convergência em pontos chave para o fortalecimento do SUS:

i) é consenso que fortalecer a APS é a estratégia mais adequada para enfrentar problemas de saúde, mas é preciso dotá-la de mais financiamento, profissionais bem formados e tecnologias, incluindo de informação, para integrar a APS em redes de serviços de saúde;

ii) é reconhecimento comum que o financiamento do SUS é um problema que precisa ser enfrentado. Porém, enquanto o setor público propõe aumentar recursos públicos para a saúde (de 4% para 6% ou 7% do PIB), o setor privado sugere maior eficiência no gasto;

iii) reconhece-se que os governos estaduais precisam ter maior protagonismo na regionalização do SUS para mitigar desigualdades e a sobrecarga que pesa sobre os municípios com distintas capacidades fiscal, técnica e administrativa;

iv) há convergência de que a relação público-privada precisa ser revista. Enquanto atores públicos propõem aprimorar a regulamentação do setor privado para defesa do interesse público, os privados sugerem parcerias público-privadas para expandir oferta de serviços;

v)  há consenso sobre a urgência de alinhar a formação, alocação e provisão dos profissionais de saúde, bem como o desenvolvimento e a incorporação de tecnologias em saúde para atender às necessidades do SUS;

vi) os atores públicos e privados enfatizam a necessidade de melhor utilização dos dados disponíveis na gestão do sistema, bem como acelerar a transformação digital do SUS.

Os pontos acima estão longe de cobrir a diversidade dos desafios do SUS, que se afirmou como espaço de lutas pela superação de iniquidades num país que tem a chaga da escravidão como herança colonial. Porém, podem servir de plataforma para um pacto nacional, que reúna um amplo arco de alianças entre atores políticos, econômicos, do Judiciário e do setor saúde, pelo financiamento do SUS, em torno da eficiente alocação de recursos e da prestação de serviços de qualidade, sem os quais o direito à saúde não se materializa.

A exemplo do que fizeram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, historicamente em campos políticos distintos, que se uniram pela defesa da democracia nas eleições de 2022, é preciso reunir as melhores forças no país para o resgate do SUS como parte de um projeto civilizatório para o Brasil.