Entrevista com Itamar Lages

O cebiano Itamar Lages recebeu dia 30 de novembro a medalha Medalha de Mérito de Saúde Professor Fernando Figueira, na Câmara Legislativa do Recife (PE). A homenagem foi do vereador Ivan Moraes (PSOL) por Itamar ser um “incansável defensor do SUS”.

Abaixo, uma breve entrevista com o homenageado:

Pode falar um pouco da sua trajetória pessoal e profissional?
Minha trajetória é simples. Sou um homem que completa em novembro 57 anos. Nasci em 16 de novembro de 62 no bairro de Afogados, no centro de Recife, numa maternidade que era considerada de pretas indigentes. Minha mãe, uma preta linda, que completou 81 anos no último dia 29, estava nessa condição socialmente indigna. Estava muito feliz pois estava parindo um filho e porque foi bem atendida, muito bem partejada por um médico – cujo nome Itamar inspirou meu nome. Esse fato da mãe ter sido considerada indigente é a grande motivação para eu lutar constantemente pelo direito à saúde. Tenho certeza que não é uma tarefa só da minha geração, mas de muitas gerações. Porque não temos uma nação ainda. Temos um País, mas não temos uma nação.

Nasci no recife, criei no Jaboatão dos Guararapes, cidade próxima do Recife. Moro num bairro chamado Várzea (do Capibaribe).

Por volta dos 15 anos, comecei a me envolver politicamente com grupos diversos, como a Teologia da Libertação. Também acompanhei vários grupos a formação do PT. Isso aconteceu mais ou menos na época que o Cebes estava sendo criado. Naquela época não tinha notícias do Cebes. Fui saber do Cebes por volta de 85. Era aluno de graduação de graduação do curso de enfermagem na UFPE através de meus professores e professoras: Auxiliadora, Eliane, Zé Augusto, Eloisa.

Me formei na graduação em enfermagem em 91. Já era técnico em enfermagem e trabalhava na área. Em 93 terminei um curso de especialização em saúde pública, atuava concomitantemente na enfermagem e na saúde coletiva. Em 94 comecei a atuar como professor de enfermagem na Universidade de Pernambuco – fui aprovado em concurso público. O cargo mais alto que alcancei dentro da universidade foi de coordenador de graduação do meu curso. Também fui militante sindical ocupando vários cargos até que fui presidente dos Sindicato dos Professores da Universidade de Pernambuco (ADUPE) – por duas gestões consecutivas 2010-2012 e 2012-2014. Desde então passei a me envolver mais com movimentos sociais. Fui por um tempo coordenador do nucleo de saúde do PT. Mas hoje que dou uma contribuição muito maior, tanto ao PT quanto a outros partidos de esquerda, a partir do Cebes.

O Cebes tem um poder de agregar, juntar, reunir, de somar com plataformas que vem sendo construidas e de atrair para plataformas. De 2014 para cá tenho me envolvido muito com movimentos sociais. Há 2 anos estou compondo com algumas colegas a coordenação do programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família do Campo.

Então nesse momento sou enfermeiro, sanitarista e professor universitário. Tenho mais de 30 anos na enfermagem. Como sanitarista, 25 anos. E me envolvo com a militância do jeito que todo nordestino gosta de se inserir: “sentindo a ciranda rodando, alguém abre a roda, dá a mão e a gente pega na mão de quem está próximo e entra pra ajudar”.

Como se envolveu com a reforma sanitária?
Eu me envolvo no processo da Reforma Sanitária no curso de graduação, quando fui coordenador do diretório acadêmico. Isso coincide com formação do diretório do PT, que tinha um núcleo dentro da UFPE. A partir daí me envolvo nessas lutas muito instigado por professores de assuntos políticos, como José Augusto – que foi a primeira liderança do Cebes em Recife junto com professora Bernardete Antunes, a professora Talia e a professora Joselma Cordeiro. E muita gente também atuava e militava dentro da Fiocruz, no instituto de Saúde Coletiva. Meu envolvimento no diretório acadêmico sempre foi com a bandeira da saúde. Levava os materiais do Cebes, Abrasco, para todas as frentes de luta.

Qual é a importância da reforma sanitária no contexto atual?
Quando a gente fala sobre a importância da reforma sanitária no contexto atual me volto para o texto “A Reforma Sanitária em Busca de uma Teoria“, da Sônia Fleury, pois continua atual. Hoje é preciso para nós militantes aprendermos novas maneiras de comunicar essa reforma porque tem uma qualidade especial: a novidade. Nesse País de mais 500 anos que vive os efeitos de um escravagismo profundamente enraizado não foi construido nada de novo na atenção à saúde exceto aquelas coisas que se expressam no SUS: saúde da família, saúde mental, e tantas essas coisas que foram organizadas de 1970 para cá.

E isso é pouco. O SUS é uma das expressões do processo de reforma sanitária. A reforma sanitária que sonhamos está implicada com processo de transformação social e econômico do próprio Brasil. E esse processo iniciado em 1930 foi abortado. Estamos como Sísifo pegando a pedra para subir de novo ao topo dessa montanha. Então a reforma sanitária que nós defendemos é a própria reforma do modo relação Estado-Sociedade. A gente tem que criar uma humanidade. Por um motivo político temos que criar uma sociedade de direitos.

Como conheceu e se integrou ao Cebes? Como o Cebes influenciou a sua posição como sanitarista?
O Cebes me influenciou antes de me envolver intensamente com ele. Na escola de enfermagem da UFPE foi onde passei a ler os textos das revistas do Centro. E todas aquelas leituras até hoje me guiam e são elementos da minha formação política. Mas me envolver intensamente com o Cebes foi há pouco tempo. Então, essa minha condição de sanitarista, professor e no que sou reconhecido hoje, como “homem do SUS”… agradeço isso ao Cebes pela formação política e moral.

Passei a responder como cebiano a partir do 7o Congresso da Abrasco de 2016, em Belo Horizonte (MG), quando Lorena Albuquerque indicou meu nome para fazer essa representação com o Cebes. Passei a participar pontualmente das reuniões do Centro. Na época estava muito envolvido com o sindicalismo. Já no Congresso de 2018 convoquei o pessoal para reuniões e terminamos com um quantitativo muito grande de atividades. Me tornei militante e dirigente. Aqui em Recife muita gente se diz Cebes mas com pouco tempo pra se dedicar às atividades cebianas – eu estava assim há 4 anos, mas acabei me engajando.

Pode falar um pouco sobre a homenagem da Câmara Municipal de Recife?

Homenagem me surpreende pelo lado pessoal, por estar com o nome exposto. Aos poucos estou me acostumando com a ideia e sabendo o que dizer, que é corrigir uma fala na minha fala: Não é uma homenagem pessoal. Muitas pessoas se reconhecem nessa homenagem. É uma homenagem de representação, de militantes que lutam por direitos sociais e humanidades. Fico feliz pela representação que faço. Os últimos foram intensos.

Então, o Cebes me permitiu circular em partidos de esquerda, de estar na Camara Municipal de Recife, de estar em ambientes administrativos do poder público, na Assembleia Legislativa chamando a esquerda para uma atividade programática. Terminei com uma visibilidade programática além daquela que tinha como sindicalista, da corporação acadêmica, da UFPE.

Embora dirigida a mim, esta é uma homenagem a todos e todas que lutam pelos direitos sociais como um todo e pelos direitos da saúde, em particular. Todos que lutam pelo SUS, seguridade social, educação, reforma urbana, reforma agrária, quilombolas, povos ribeirinhos que vivem da pesca, à toda população negra, a todos que se sentem oprimidos e oprimidas, mulheres, pessoas LGBTQ… Essa homenagem é dessas pessoas também.

Qual é a situação atual do Centro de Formação Paulo Freire, em Caruaru? Qual é a importância dele? Quais as conquistas do centro? O que é bacana de destacar sobre ele para as outras regiões do País?

A grande importância do Centro de Formação Paulo Freire é para os próprios assentados. As pessoas que lutam pela reforma agrária não precisam apenas da terra e equipamentos, mas de espaço para desenvolver a cultura, a inteligência. O Centro Paulo Freire possibilitou isso às 41 famílias que vivem na Agrovila de Normandia.

A partir disso possibilitou a todos assentados de Pernambuco e todos que lutam pela reforma agrária, como MST e Fetap.

No processo de expansão outros coletivos, como MST e Fetap, também passaram a utilizar e contribuir com o Centro e os assentados. O exemplo mais concreto é o Programa de Residência Multiprofissional de Saúde da Família e com ênfase em Saúde do Campo. Ele tem parceria direta documental com o Centro de Formação Paulo Freire. Nossos residentes, parte deles, atua em unidade de Saúde da Família da zona rural, atendedendo populações camponesas de Caruaru, dos povoados de Lagoa de Pedra, Xicuru, Rafael e Cachoeira Seca. Todos eles, a um dado momento, se revezam de cuidar das 41 famílias de Normandia.

O Centro hoje está em risco de ser despejado. Mas conseguimos um mandato de segurança para não ocorrer o despejo enquanto os recusos não são julgados. Se formos bem sucedidos, uma das ideias é construir naquele espaço um teatro.

É um momento importante de formação política e acredito que o Cebes poderia beber no exemplo que o MST está dando. Considerando que o Governo Federal, Senado, Câmara dos Deputados e Justiça estão completamente contra reforma agrária… o que temos que fazer? Parar a reforma agrária, nos desagregarm ou continuar com agroecologia, cooperativismo, ocupações de terra. Se tivermos que continuar nesse sentido, como fazer tudo isso? Isso dá uma formação política maravilhosa.

Em setembro utilizei esse exemplo quando me reuni com representantes de municípios da 5a região de Saúde de Pernambuco, cuja sede é Ganhuns. Usei as expressões do MST para compor a seguinte frase:

“considerando que o governo federal e o ministério da saúde não estão mais dispostos a liberar dinheiro para educação permanente em saúde, deixaremos de fazer a educação em saúde ou continuaremos fazendo? Se fizermos, faremos o que e como?”.

Foi uma reunião que considerei maravilhosa e com muitos desdobramentos.

Então, mesmo com MST perdendo em algumas frentes de luta, o Centro de Formação Paulo Freire é um marco simbólico para luta da reforma agrária que a extrema direita está querendo. Comparo essa possibilidade de vitória da extrema-direita com a prisão de Lula. É aquela coisa que a extrema direita faz pra humilhar a luta. Se a extrema direita tem tanto interesse, a gente vê quanto importante é o Centro de Formação Paulo Freire – referencia não só para entidades publicas mas para algumas atividades privadas que foram realizar atividades no Centro e com isso demonstrar a importancia dele. A atividade mais recente que vamos desenvolver agora tem a ver com Universidade de Movimentos Sociais – essa invenção de Boaventura Souza Santos e companherios, da UFRPE. O Cebes está metido nisso também.

Quais são seus planos para os próximos anos?
Meus planos para os próximos anos… em 2014 pensei na possibilidade de construir minha aposentadoria, sair de cena e ir morar num quilombo, viver cada vez mais em comunidade. Meus dois filhos e filha são adultos, minha companheira somos da mesma idade. Minha mãe é 24 anos mais velha que eu e daria pra viver distante. Mas o que houve desde 2014 me chamou à responsabilidade. Só tenho um plano de continuar nessa luta, de ir em frente, a tendencia diz que estar no Cebes é melhor frente de luta institucional de luta. Posso contribuir com muitos movimentos.

Por exemplo, estamos contribuindo com Associação Brasileira de Saúde mental para Construir o 7o Congresso Internacional de Saúde Mental em 2020, que vai ser aqui em Recife. Estou construindo para a gente tentar formar uma unidade de frente parlamentar junto com o pessoal da Consulta Popular, do PT, do PSOL. Estamos numa luta renhida a favor da Saúde Mental. Falta tempo e energia para estar na luta. Tenho deixado de realizar algumas tarefas pq escolhemos essa vocação de ser ativistas. Estamos honrando. Não tenho planos. Tenho plano de continuar nesse movimento com companheiros.

Me parece que uma tendência de longo prazo é que politicamente fico dentro do Cebes, articulando com MST, com coordenação estadual dos povos quilombolas, com os grupos que lutam por reforma urbana, agrária, LGBTQ+, mulheres. Enquanto tiver resistência… e parece que vou ter um bom tempo de resistência.