Entrevista: O lobby da bebida faz governo recuar, analisa Mário Scheffer, diretor do Cebes

O governo federal editou a Medida Provisória (MP) nº 415, que entra em vigor a partir do próximo dia 1º de fevereiro, e que proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas nas rodovias federais brasileiras. Embora a medida seja considerada de vital importância no rol das políticas públicas para controle do álcool, entidades da sociedade civil criticaram o fato de ter “desaparecido” da MP a restrição do horário de propaganda de cerveja e outras bebidas, conforme era a expectativa.

Quem comenta o assunto, em entrevista ao Blog, é o diretor do Cebes, Mário Scheffer, comunicador social, sanitarista e integrante do “Movimento Propaganda Sem Bebida”, que reúne mais de 300 entidades que atuam na defesa do consumidor, entidades médicas, serviços de saúde, ONGs que trabalham com dependência química e saúde mental, igrejas, entre outros.

Blog do Cebes: Como o movimento recebeu a Medida Provisória?

Mário Scheffer: Desde que haja fiscalização e punição para seu cumprimento a medida de proibição de venda de bebida nas estradas federais é muito bem vinda. Mas estamos bastante decepcionados, nossa expectativa era de que o governo inserisse na MP também a restrição do horário de propaganda. Um grupo de trabalho do próprio governo já havia decido por isso desde 2003. No ano passado a Anvisa fechou Resolução neste sentido. O ministro Temporão até pela sua história de compromissos, havia expressado publicamente a necessidade restrição da propaganda do álcool. Mas na hora da MP, falou mais alto o interesse da indústria. Pelo menos nesse episódio o governo foi covarde, traiu os interesses de saúde pública.

Blog: Mas o que deveria ser mudado via MP?

Scheffer: A MP deveria ter considerado bebidas alcóolicas todas aquelas acima de 0,5% de álcool. Isso porque hoje a lei atualmente em vigor tem uma “pegadinha” colocada pela indústria. Ela proíbe a veiculação no rádio e na televisão, das 6h às 21h, de propaganda das bebidas que tem acima de 13 graus de teor alcoólico. Quer dizer, para efeito de propaganda, no Brasil cerveja não é considerada bebida alcoólica. É um deboche com a sociedade. O governo manteve-se conivente, aceita que fique com está: atualmente as propagandas de cerveja estão liberadas na televisão em qualquer horário, inclusive nos intervalos de programações assistidas por crianças e jovens.

Blog: Ao retirar da MP a propaganda, o governo disse que vai encaminhar ao Congresso Nacional sob forma de projeto de lei.

Scheffer: Com isso, deu vitória à indústria da bebida, fruto de acordo, sem dúvida. O projeto vai entrar numa fila, há mais de 140 projetos de lei sobre o tema, a favor e contra a restrição da propaganda de bebida. Isso se arrasta há amis de dez anos. E na Câmara e no Senado o lobby da bebida é poderoso, é tradicional financiador das campanhas, sobretudo via distribuidoras de bebida. Os métodos de convencimento transgridem a ética, para dizer o mínimo. Sem uma proposta contundente do Executivo, não haverá aprovação de nenhum desses projetos de lei. Foi assim com a proibição da propaganda de cigarro em 2000, que só deu certo quando o governo da ocasião assumiu o tema com determinação.

Blog:  O envio em forma de projeto de lei vai atrasar a discussão?

Scheffer: Se essa é mesmo a única proposta do governo, sem dúvida. É uma tática, repito, covarde. Finge tratar o problema, mas vai de encontro aos interesses dos fabricantes de cervejas e outras bebidas. Além de ser fraca, a iniciativa irá retardar a discussão, pois passa a falsa idéia de que o assunto já foi devidamente tratado. O alinhamento do governo com os grandes interesses econômicos e o seu afastamento dos movimentos sociais parece um caminho cada vez mais sem volta.

Blog:  A pressão da indústria da bebida hoje é maior que a do cigarro na época?

Scheffer: O jogo de pressões é muito semelhante, as companhias do tabaco eram muito influentes, aliadas aos produtores de fumo. Mas no caso do álcool há de fato uma conjunção de grandes interesses, o maior deles é a AMBEV e seus tentáculos, como as distribuidoras. Afinal, o setor fatura mais de R$ 20 bilhões por ano no país. Mas também exercem pressão decisiva sobre o governo os grandes veículos de comunicação, principalmente de TV, Globo Record e SBT. Os comerciais de cerveja garantem parte considerável da programação dessas emissoras. A novela das oito da Globo praticamente é uma cortesia da AMBEV. E, é claro, as grandes agências de publicidade integram o rolo compressor, pois, de costume, levam 20% em cima dos comerciais. Muitas das agências que fazem as campanhas políticas e que ganham as contas do governo tem entre seus clientes marcas de cerveja. O tráfico de influências aí, sem trocadilho, é líquido e certo. Mas o interessante é que o discurso dos porta-vozes da indústria do cigarro na época era de que a lei que proíbe a propaganda é um atentado à liberdade de expressão e tirava do consumidor seu direito de escolha. Uma balela repetida hoje pelos parlamentares que fecham com o lobby da bebida.

Blog: A indústria da bebida e o Conar defendem a auto-regulamentação da propaganda de álcool, ao invés da atuação do Estado…

Scheffer: Está provado que a auto-regulamentação não funciona com as bebidas alcoólicas. Chegam a ser cômicas as mensagens do tipo “beba com moderação” e “se beber não dirija” ao final da bebedeira festiva durante a propaganda. Não faltam evidências, inúmeros estudos científicos no mundo provaram que as crianças, quando expostas precocemente a propaganda de bebida, como acontece no Brasil, isso fará com que elas iniciem o consumo mais cedo e que irão beber maior quantidade na juventude. Não é por acaso que todo final de semana dezenas de famílias brasileiras choram a morte de seus jovens em acidentes ocasionados pelo excesso de bebida. A indústria agora adotou o discurso da redução de danos. É uma apropriação marota. Por sinal, o movimento de redução de danos, uma das mais inovadoras e eficazes propostas de saúde pública, deveria estar mais atento, não deveria.