Escravidão médica, exploração, e servidão: uma experiência no movimento de médicos residentes
Pedro Silveira Carneiro | Diretor do Cebes
Não estou falando do Mais Médicos. Trago essa reflexão pois a acusação de “escravidão” me parece bem estranha a partir do lugar onde ela é feita. Lembro sempre que se fala de exploração do médico, da questão das condições de trabalho, etc. da minha experiência na Associação dos Médicos Residentes de São Paulo, da qual fiz parte logo antes dos movimentos de greve de 2010, quando já estávamos nos articulando para a defesa do reajuste.
Recebíamos cotidianamente denuncias bizarras. Sabíamos da realidade cotidiana do médico residente, claro, já que éramos, nós mesmos, residentes. Sabíamos que era comum que diversos residentes trabalhassem mais que as 60(uma das poucas legislações não recepcionadas pela constituição: prevê-se legalmente mais que o máximo constitucional) horas semanais previstas por lei. Sabíamos que eram comuns plantões acima de 24 horas, principalmente nas áreas cirúrgicas. Sabíamos da cultura perversa de hierarquia, onde o R2 (residente do segundo ano de residência) já aprendia a cagar na cabeça do R1.
No entanto, recebíamos denuncias muito mais absurdas. Práticas como o “plantão punição”, onde residentes eram punidos com plantões adicionais após cometerem erros (por exemplo, por estarem muito cansados e esquecerem de agendar um exame para um paciente). Dificuldades de garantir direitos básicos, como a licença maternidade (extremamente comum os serviços e preceptores médicos tentarem negar esse direito!). Assédio moral e abusos de autoridade, como o preceptor ordenar ao residente que troque o pneu de seu carro, ou busque sua mulher no aeroporto.
Levávamos esses casos para a Comissão Estadual de Residência Médica, e encontrávamos ouvidos pouco receptivos. Vejam bem, a comissão é composta, basicamente, por preceptores médicos de programas de residência! Então, como a lógica é de que uma mão lava a outra nas fiscalizações entre os programas, e os preceptores se revezavam fisiologicamente na comissão, ninguém queria mexer muito com ninguém. Nos piores casos, havia algumas tentativas de mediação, uma ou outra fiscalização, um ofício para afirmar que um direito é realmente um direito (no exemplo da licença maternidade). Mas aquilo que era comum, o assédio, o abuso de horas, plantões, etc. ninguém mexia com ninguém. E ninguém mexia também, é claro, com a prática de levar residentes para serviços particulares como “parte” da residência. Sem ganhar, claro! A remuneração vai para o preceptor.
Isso para não falar da modalidade mais bacana de hiperexploração do jovem médico, que é o estágio. Com a competição crescente para buscar vagas de residência e se especializar, os que ficam de fora muitas vezes se sujeitam a trabalhar de graça (e às vezes até pagar para trabalhar!) para no fim receber um título de especialista pela sociedade de especialidade “equivalente” ao de residência. Esse então, não tinha direito nenhum. O assédio é maior, e não precisa ter medo de fiscalização, pois não há. Esses aí, comumente eram levados a trabalhar inclusive nos consultórios particulares dos figurões que os aceitavam. Pois, é obvio, quem consegue estagiários são os figurões das sociedades de especialidades. Que conseguiriam para os “aprendizes” os títulos dessa sociedade.
Os mesmo figurões que vão processar o governo por trabalho escravo dos médicos cubanos. Ficamos combinados então que trabalhar de graça para receber um título é “aprendizado”. Cubanos no Brasil, é escravidão.