Estado, fascismo e saúde

Heleno R. Correa Filho
A crise econômica do capitalismo nos anos 1930 levou o mundo à segunda guerra mundial. Nessa guerra combateram juntas nações capitalistas e socialistas face ao grande perigo representado pela hegemonia nazi-fascista dos países do eixo Alemanha-Itália-Japão.

A característica da economia política do nazi-fascismo englobava soluções de conflito, propriedade e controle da sociedade baseada em mecanismos nos quais o estado é governado por grupos autônomos filiados a um birô central que detêm o poder de determinar o mando político à revelia da maioria da população, terminando em última instância por inviabilizar as regras do próprio capitalismo, como o livre comércio e a circulação de capitais privados. Não fosse por isso os Estados Unidos da América e boa parte dos países europeus seriam nazi-fascistas.

Na Alemanha grupos autônomos de polícias militares determinavam quem podia trabalhar, onde se podia morar e até quem podia casar e ter filhos. A repressão cultural e política ao povo judeu obrigou-o a residir em bairros segregados como foi prática medieval, criando na Europa a imagem do judeu pacifista, incapaz de rebelar-se e fazer a luta armada, e por isso mesmo, fácil de ser dominado. Professores socialistas eram perseguidos por estudantes enfurecidos apoiados em grupos militares à margem da lei dando origem às SS. O arrasamento de bairros segregados judeus por massas dirigidas de paramilitares enfurecidos ficou conhecido com o nome de Pogroms. A rebelião armada dos judeus no gueto de Varsóvia desmentiu a paciência infinita contra o nazismo na Polônia invadida.

Na Itália grupos políticos paramilitares organizavam a vida política das comunas para além do que permitiriam as leis da Itália recém-unificada. Os grupos dos Fasci determinavam em cada comuna quem vendia, onde se podia trabalhar, quem podia mudar de residência e até quem podia comprar ou vender uma propriedade. Como eram grupos políticos controlados por um partido politico centralizado e autoritário a ação política de representação local foi totalmente suprimida, dando caminho ao controle das ações locais pelo estado central. Com isso se reuniu força para invadir militarmente o norte da África da Líbia à Etiópia. O italiano ainda é o idioma de muitos Líbios que sobreviveram a essa guerra. Benito Mussolini e Claretiana Petacci terminaram executados com seus cadáveres dependurados em praça pública à semelhança do que foi feito com Muhamar Kadafi em 2011 na Líbia.

No Japão forças imperiais invadiam a China, a Coréia, países insulares do Pacífico e do Oceano Índico para a expansão geopolítica do império Japonês, dominando os povos de menor poder militar e impondo a organização política imperial japonesa como única forma de governo desses países. A vassalagem econômica ao império era exigida com substituição total dos aparelhos de estado dos países invadidos que passavam a prestar tributo e obrigações de comércio exclusivo com o Japão mediante a força das armas. O império Japonês sofreu duas bombas atômicas exterminando população civil em massa, no maior crime de guerra praticado em toda a história da humanidade pelo país vencedor da 2ª Grande Guerra.

Nos países do Eixo Nazi-Fascista a figura sempre presente foi a do fiscal de quarteirão, onde o arbítrio de poder do agente do estado superava o direito da organização local e da contestação das regras impostas de cima para baixo. O poder do guarda de quarteirão se torna infinito nos países dominados e governados por colaboracionistas, como aconteceu na França.

No Brasil tivemos os grupos políticos paramilitares dos Camisas Negras e os “Barrigas verdes” que quase empurraram o país para a guerra ao lado do Eixo e, por pouco, não converteram o governo trabalhista de Getúlio Vargas em um governo fascista aliado dos alemães, italianos e japoneses bem ao gosto dos exportadores de café. A grande burguesia paulista já tinha reprimido uma revolução popular em São Paulo em um dia Cinco de Julho de 1924 esmagando revolta operária na capital do estado, que ficou esquecida e foi substituída no imaginário político pela revolta de Nove de Julho de 1932, contra uma assembleia nacional constituinte proposta pelo governo de Vargas. (MARINGONI, 2012)

Terminada a segunda grande guerra a reunião que aconteceu no Estado de Massachusetts no condado de “Mata dos Bretões” (Breton Woods) determinou que o dólar passasse a ser a moeda mundial e o livre comércio na Europa passou a enfrentar seus antigos aliados, os países socialistas, com a guerra fria, até a queda da União Soviética e do muro de Berlim. A França foi libertada e ficou livre para conduzir sua própria guerra colonial contra os Argelinos colonizados até 1960 e os vietnamitas até 1964, quando seus generais desempregados e derrotados na Argélia e Vietnã vieram ensinar tortura aos militares brasileiros, argentinos e chilenos.(FEBBRO, 2012)

A partir daí a luta política social e democrática passou a ser conduzida contra os mecanismos de exclusão, perseguição, e execução extra-legais e até as legalizadas por abuso do estado. (GIORDANO e TELLES, 2012). Retrospectivamente, nos anos 1960, policiais do Rio de Janeiro assassinavam mendigos atirando-os de cima da ponte sobre o Rio da Guarda. Durante a ditadura grupos denominados esquadrões da morte assassinavam mendigos e ladrões ‘pés-de-chinelo’ no Rio e São Paulo, no que depois se converteu em máquina de torturar e matar opositores políticos da classe média. Crianças das ruas de São Paulo eram transportadas como gado e abandonadas famintas e maltrapilhas de madrugada nas ruas da cidade mineira de Camanducaia.

Em São Paulo o prefeito aliado a comerciantes e guardas privadas de quarteirão criaram as calçadas molhadas dia e noite, as rampas inclinadas debaixo de pontes e marquises, e as pedras pontiagudas debaixo de viadutos como estratégias anti-mendigos. Em todo o país a mídia televisiva e radiofônica mantem campanha diária defendendo a instalação da pena de morte que já é praticada extrajudicialmente e defendida por governantes ao arrepio da Constituição aprovada em 1988. O sistema judiciário entope as prisões com gente pobre, adolescentes e mulheres grávidas jovens na “guerra às drogas” e na política do proibicionismo. Enquanto isso o Congresso Nacional elimina a CPMF que permitia rastrear nos bancos a lavagem de dinheiro ilegal do tráfico de armas, drogas e escravas(os).

E a saúde onde entra nessa virada à direita? No Brasil o Sistema Único de Saúde foi constituído com respeito à hierarquia, regionalização e integralidade da assistência à saúde. (BRASIL, 1988; 1990) A saúde foi estruturada nas últimas décadas sob o compartilhamento do poder dos profissionais de saúde com curadores tradicionais, respeito às parteiras, atendimento sem discriminação contra dependentes químicos e o direito a ter acompanhantes na internação hospitalar durante o parto. Subitamente em 2012 começam medidas à direita por parte da Polícia Administrativa usurpando direitos adquiridos anteriormente.

Os Conselhos Regionais de Medicina de Rio e São Paulo passam a arbitrar ao arrepio da lei e de portarias federais determinando quem pode ou não, entrar e acompanhar partos, proibindo gestantes de terem partos domiciliares, mesmo assistidas por médicos e, proibindo médicos de saírem de um estado e praticar a medicina em outro, obrigando-os a aguardar doze meses para prestar um “exame de ordem” que a lei não instituiu no país. Se a lei não permite a norma provincial obriga. É a regra da polícia administrativa acima da lei trazendo de regresso o guarda de quarteirão. (CREMESP, 2012)

Certamente não pode uma “Resolução” de Conselho Regional de Medicina superar o que as leis determinam sobre práticas profissionais, acompanhamento de pacientes, direitos de assistência à saúde em casa e nas instituições. A caminhada dos órgãos de polícia administrativa da regulação profissional de saúde vai na direção da exclusão, perseguição e execução extra-legais. A execução virtual é o impedimento da prática profissional de médicos formados em outros estados que não realizem o “exame de ordem” instituído em São Paulo. É também a cassação do registro de médicos do Rio de Janeiro que ousem assistir um parto domiciliar ou que permitam que uma Doula ingresse na sala de parto junto com a gestante.

Esse é o rumo antidemocrático que toma a polícia administrativa da saúde.

Heleno R Corrêa Filho é médico.