Cebes reverencia Hesio Cordeiro: sem ele não haveria SUS

Nesse domingo (8) despedimos de Hesio. Aos 78 anos o médico sanitarista e professor Hesio de Albuquerque Cordeiro parte para o encontro de tantos outros amigos da luta pela democracia e pela saúde. Foi se encontrar com Arouca, Eleuterio, Erik e tantos outros que conosco estiveram nessa caminhada.

Coube a ele criar na UERJ o Instituto de Medicina Social sob inspiração da produção de Juan Cesar Garcia , referencia para a medicina social latino americana. Hesio em seus múltiplos papeis na vida publica, foi um esteio fundamental na construção do SUS e, junto com outros, criou o movimento pela reforma sanitária. Poucos sabem mas foi ele que mobilizou e coordenou um grupo de professores do IMS para sistematizar, em 1976, o documento guia da luta pelo direito à saúde : A Questão Democrática da Saúde. Em1979 esse documento foi apresentado por Arouca em nome do Cebes no Simpósio Nacional de Saúde.

Sua extensa biografia é feita de relevantes contribuições no campo da saúde e da Educação. Foi Hesio quem presidiu o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social) e, ao assumir prometeu sua extinção para permitir a universalidade do acesso aos serviços de saúde a todos os brasileiros e não apenas aos vinculados formalmente ao mercado de trabalho. É dai desse processo que nasce o SUDS , o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde e as Ações Integradas de serviços de saúde (AISS) que precedem o SUS. Teve participação ativa na Oitava Conferência Nacional de Saúde e no processo constituinte que sacramenta a criação do SUS. Sua contribuição se estende na construção do SUS nas diversas áreas que desbravou com seu pensamento de vanguarda.

Sua partida deixa todos nós do campo da saúde um pouco órfãos mas ao mesmo tempo plenos por termos tido Hesio entre nós. Parte o amigo suave e sempre afetivo mas fica o gigante que enfrentou com garra a injustiça e as desigualdades sociais.

Ana Maria Costa

Abaixo, uma linha do tempo da vida de Hesio, com base em informações do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz):

  • 1942 – Nasceu em 21 de maio, em Juiz de Fora (MG), filho de Aílton Cordeiro e Yette de Almeida e Albuquerque Cordeiro.
  • 1965 – Graduou-se em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e realizou no ano seguinte a residência em clínica médica.
  • 1969 – Viajou aos Estados Unidos, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para cursos e visitas técnicas a escolas de medicina preventiva.
  • 1971 – ingressou como docente no Instituto de Medicina Social (IMS), instituição que ajudou a fundar na UERJ com o grupo de sanitaristas de Campinas encabeçado por Sérgio Arouca.
  • 1983 – obteve o título de mestre em saúde coletiva pelo IMS.
  • 1971 a 1978 – trabalhou como consultor da OPAS para atividades de organização de serviços de saúde, tecnologia e recursos humanos. Atuou em vários países, como Argentina, Peru, Equador, Venezuela, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, México e República Dominicana.
  • 1981 – doutorou-se em medicina preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
  • 1983 e 1984 – dirigiu o IMS.
  • 1983-1985 – foi presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco, veja aqui a nota de pesar da entidade).
  • Ainda durante o regime militar, participou do Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, promovido pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, e integrou mais tarde o Grupo de Trabalho para o Programa de Saúde, da Coordenação do Plano de Ação do governo do presidente Tancredo Neves.
  • 1985 a 1988 – a atuação no movimento sanitário e no cenário político nacional lhe valeu o cargo de presidente do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps). Foi responsável pela reestruturação do órgão e pela implantação dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde.
  • 1986 – coordenou e presidiu os trabalhos da VIII Conferência Nacional de Saúde, quando foram ratificados os princípios da reforma sanitária iniciada na década de 1970: saúde como dever do Estado, universalização e integralidade na assistência à população, sistema único, descentralização, participação e controle dos serviços de saúde por seus usuários.
  • 1988 – recebeu o título de doutor honoris causa da Escola Nacional de Saúde Pública, por suas contribuições ao movimento sanitário, que culminaram com a implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil.
  • 1990 – candidatou-se a deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista.
  • 1992 a 1995 – foi reitor da UERJ (veja no link a nota de pesar da instituição) , nomeado após eleição direta. Em 1996 aposentou-se pelo IMS e tornou-se coordenador de saúde da Fundação Cesgranrio e assessor técnico do Ministério da Saúde para o Programa de Saúde da Família.
  • 1999 – foi secretário de Educação do estado do Rio de Janeiro.
  • 2000 a 2006 – dirigiu o Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Estácio de Sá, onde atuava, desde 2004, como coordenador de cursos de pós-graduação em saúde da família.
  • 2007 a 2010 – nomeado diretor de gestão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, para um mandato de três anos. Foi a última contribuição à vida pública do Brasil.

Abaixo, as mensagens de solidariedade de integrantes do CEBES:

Lúcia Souto, presidenta do CEBES:

Presto minha homenagem à Hesio Cordeiro uma pessoa inspiradora, corajosa, digna que contribuiu decisivamente pra conquista da Saúde como direito universal.

Sem ele o SUS, essa construção exemplar de gerações de brasileiras e brasileiros não teria sido possível.

Um mestre de todos nós.
Obrigada Hesio Cordeiro

José Noronha:

Tenho o triste dever de comunicar que Hesio Cordeiro faz pouco atravessou o Grande Rio. Deixa exemplo e saudades. Pioneiro da Medicina Social na América Latina nos anos 1970. Sem ele não teríamos o SUS.

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues:

Conheci Hesio Cordeiro em 1989, quando lutava para criar um Núcleo de Saúde no Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). Hesio generosamente apoiou a criação do Núcleo e emprestou seu prestígio ao mesmo nos anos seguintes. Entrei tardiamente por sua mão na reforma sanitária. Convivi, desde então, com ele que foi um dos maiores campeões, senão o maior, da luta pelo direito de todos à saúde.

Quando tomou posse como presidente do Inamps em 1985, diante de auditório lotado na sede da entidade, na Rua México, 128, centro do Rio de Janeiro, prometeu acabar com a entidade para colocar em seu lugar um sistema público universal de saúde. Foi na sua gestão que se formou o SUDS, primeiro embrião do SUS, uma das maiores conquistas democráticas do povo brasileiro.

Suas dissertação de mestrado e tese de doutorado viraram livros decisivos para a crítica do sistema de saúde excludente e segregado que havia no país, sua crítica dura ao mesmo arregimentou inúmeros lutadores pelo SUS. Juntamente com José Luiz Fiori e Reinaldo Guimarães, todos do Instituto de Medicina Social da UERJ, escreveu “A Questão Democrática e a Saúde”, talvez o documento mais importante da reforma sanitária. Assumido pelo CEBES quando da fundação dessa entidade tão importante para a conquista do direito universal à saúde e a implantação do SUS, o documento foi a base dos debates no I Simpósio de Saúde na Câmara dos Deputados, em 1989.

Nos anos 1990, Hesio ainda lutou e liderou a revisão das diretrizes curriculares do ensino de Medicina, tentando influenciar a formação dos médicos em favor do SUS. Nos anos 2000 criou o primeiro programa de pós-graduação em Saúde da Família do país, na Universidade Estácio de Sá, onde trabalhei com ele entre 2000 e 2017.

Hesio tinha uma visão impressionante do país e da saúde pública. Liderava de forma discreta e brilhante, ouvindo a todos e conseguindo costurar ideias díspares numa síntese superior. Sem vaidades, generoso, discreto, sorridente, foi um dos maiores brasileiros dos últimos tempos. Nesse tempo de mediocridades, de ideias carregadas de ódio, um gigante como Hesio Cordeiro fará enorme falta.

Paulo também escreveu o seguinte:

Vão-se gigantes, numa época de pigmeus, o Brasil precisa de novos gigantes.

Sou neto e filho de comunistas, desde cedo convivi num ambiente que acreditava e lutava por um mundo e um Brasil melhor com igualdade social e prosperidade para todos. Por conta dessa história familiar pude conviver e compartilhar ideias com gigantes generosos. Tive a felicidade de conhecer, aprender e trabalhar diretamente com três deles.

Ao entrar na faculdade de Ciências Sociais da UFF, em 1973, comecei estágio em SPL – Serviços de Planejamento, empresa de José Zacarias Sá Carvalho, ex-comunista, maior amigo do meu pai, a pessoa mais inteligente com quem tive contato na vida. O velho Zaca foi um dos idealizadores da CAPES, descobriu o caminho para romper com o monopólio estadunidense da metrologia, o que permitiu a criação do INMETRO, cujos laboratórios saíram inteiramente das pranchetas de SPL. Também foi o organizador da CODEPAR paranaense, primeira experiência de planejamento estadual do Brasil, entre muitos outros serviços inestimáveis para a nação.

Em 1975, depois de bobo desentendimento com Zacarias fiz seleção para o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). Lá convivi com Diogo Lordello de Melo, baiano, analfabeto até os 12 anos de idade, que então falava uns oito idiomas, com forte sotaque baiano. No IBAM de Lordello conheci grandes figuras, como Cleuler de Barros Loyola, Ana Maria Brasileiro e Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Lá respirávamos uma atmosfera de liberdade de pensamento herdada dos tempos da Assessoria Técnica de Getúlio Vargas, que nos legou a CSN, a Petrobrás, a Eletrobrás, a industrialização acelerada dos 50 anos entre 1930 e 1980. Os exemplos de Guerreiro Ramos, Rômulo de Almeida, Cleantho Paiva Leite, Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira, que fizeram o Brasil se transformar numa grande nação eram conhecidos e mencionados nas conversas.

Ainda no IBAM, conheci Hesio Cordeiro, em 1989, quando insistia na criação de um Núcleo de Saúde que colocasse a instituição no movimento da reforma sanitária que assegurou o direito de todos à saúde. Desde ontem então minha vida se virou para o entendimento e a construção do SUS, como uma das maiores conquistas do nosso povo e um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Com Hesio convivi por mais de 30 anos e testemunhei seu imenso trabalho em prol da saúde e da educação.

Este Brasil terra do futuro, como dizia Stefan Sweig, uma das maiores e mais promissoras nações do mundo, construída pelo brilho e luta de gigantes como os que mencionei, vem sendo destruído de forma violenta e sistemática por pigmeus medíocres embalados pelo ódio e a cegueira mais absoluta.

A morte de Hesio, ontem, oito de novembro do ano da pandemia, um dos últimos gigantes, tem de servir de alerta para que todos nos ergamos contra a mediocridade e o ódio e retomemos a marcha dos gigantes. A nação brasileira não merece o que está sofrendo e precisa acordar para reencontrar seu destino de grande país, generoso com todos seus filhos e filhas, com prosperidade e igualdade social.

Basta de pequenez e subordinação servil à potência hegemônica decadente. O Brasil tem de ser soberano, grande e generoso outra vez.

Maria Eneida de Almeida:

Professor Hesio Cordeiro faleceu ontem. Homem de uma grandeza incomparável.

Essa é uma perda tão grande que emudece por completo a mim, uma de suas alunas de doutorado no IMS/UERJ.

Seu silêncio neste momento de desmonte do SUS, demonstrou um agravamento no seu estado de saúde, entristecendo a muitos.

Hesio foi dos grandes idealizadores e construtores do SUS, sendo um baluarte do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira.

Professor de uma generosidade e gentileza sem limites, passava sua imensa vivência de vida na Saúde Pública inflando seus alunos de esperança, resistência e luta na construção de uma nação digna e soberana.

Ele fazia de suas aulas, momentos de paixão dentro do processo civilizatório de uma nação.

O grande Hésio Cordeiro vive e viverá para sempre na Alma de todos que dele tiveram a honra de se aproximar e vivenciar momentos inesquecíveis.

Salve, Hésio!

Mourad Ibrahim Belaciano 

Testemunho da Trajetória do Professor, Cientista, Político e amigo Hésio de Albuquerque Cordeiro

A conjuntura de 1969 em que comecei meu curso de medicina na FCM/UEG (depois UERJ) seguia o curso de um grande trauma do ano anterior – agosto de 1968 – quando o Hospital de Clínicas Pedro Ernesto, da nossa faculdade, havia sido invadido pela polícia em busca de ‘estudantes perigosos’. Nossa turma cursava uma nova disciplina – denominada  Medicina Social – de responsabilidade dos professores Moysés Szklo, Nina Vivina Pereira Nunes e Hésio de Albuquerque Cordeiro, sob a supervisão do professor titular de Clínica Médica Américo Piquet Carneiro.

Basicamente, a disciplina consistia no ensino das bases da Bioestatística e da Epidemiologia, mas o clima reinante na faculdade exigia que tanto o ensino como a pesquisa fossem ’em código’, tal qual a nossa participação no Grêmio Estudantil, uma vez que o Centro Acadêmico fora proibido de funcionar. 

Hésio Cordeiro, como professor auxiliar de Clínica Médica, havia concluído sua Residência em Clínica Médica, e participava muito na formação de monitores da disciplina, ocasião em que era possível aprofundar temas sobre o processo saúde-doença, cujas explicações da Clínica da época não satisfaziam, situação que clamava para um vasto campo ainda inexplorado – e portanto inexplicado – da relação entre saúde e sociedade no qual se tentasse explicar a medicina e a prática médica cujas tensões e campo de forças limitavam sua forma de atuação e seu alcance a todos os segmentos da sociedade.

Tais inquietações levaram este pequeno grupo docente a se aproximar de profissionais que exerceriam grande influência – tanto nos estudos teóricos deste campo de atuação como nas proposições e posicionamentos na renascente participação organizada da Política de Saúde vigente. Serei injusto, mas vou citar apenas dois: o saudoso Juan César Garcia, que a partir do escritório da OPS em Washington/EUA, dirigia um programa de Recursos Humanos em Saúde para as Américas e editava a revista Educación Médica y Salud; e o também saudoso Carlos Gentile de Melo, medico-sanitarista pertencente aos quadros do INAMPS que nos detalhava como funcionava a gestão da ‘Unidade de Serviço’, forma padrão de mensuração e pagamento dos serviços médico-assistenciais previdenciários devida a enorme parcela de assalariados em todo o Brasil então praticados através do INAMPS, insistindo incansavelmente que era um fator seletivo, corruptor e limitante da atuação da medicina brasileira.

Hésio Cordeiro, assim como todo o grupo da nascente disciplina, gradativamente desenvolve e organiza as ideias, ensinamentos e proposições trazidas por estas discussões. O caminho institucional para criação do Instituto de Medicina Social foi obtido pelo incentivo à realização de pesquisas em Epidemiologia, Educação Médica, Saúde Pública, Economia e Saúde, Trabalho e Previdência Social, sempre sob o olhar de uma Medicina Social, além de incorporar à saúde elementos de Economia Política, Sociologia e Antropologia ao campo de estudo e atuação no setor saúde, trazendo inclusive para um Seminário o filósofo Michael Foucault. Hésio Cordeiro sempre exerceu papel agregador e forte atração sobre a nova geração de estudantes não só de vários estados do Brasil mas também de vários países da América do Sul e do Caribe que buscavam o IMS para fazer Estágio, Internato, Residência e na sequência seu Programa de Pós-Graduação em Medicina Social. O fascínio que Hesio Cordeiro exercia sobre todos era sua capacidade de aliar os conhecimentos clínicos e sociais com um olhar humanista, que viria a ser sua marca registrada onde quer que exercesse suas atividades.

É o momento em que Hésio Cordeiro vai para Kentucky/EUA realizar uma pós-graduação, sendo seu doutoramento obtido posteriormente na USP.   Seguiu ampliando sua visão e conhecimentos realizando importante e inédito estudo sobre Medicamentos- Produção, Consumo e Distribuição, através do qual agrega elementos para análises que passam a integrar as Tecnologias em Saúde.  Mas é na sequência desta caminhada acadêmica que vamos ver Hesio Cordeiro participar, em 1978, do Primeiro Simpósio de Saúde da Câmara dos Deputados, evento que introduz estrategicamente o setor saúde nos meio parlamentar  brasileiro, em cujo contexto, como co-autor do importantíssimo documento A Questão Democrática na Área da Saúde, exerceria na sequência da redemocratização da sociedade e do estado brasileiros papel orientador relevante nos preparativos e mobilização da realização da Oitava Conferência Nacional de Saúde e no processo Constituinte.

É o período que vai se definir as rupturas que devem ser operadas no interior da Saúde Pública e na Assistência Médica previdenciária, consagrando a Universalização, a Descentralização, a Integração, a Participação Social e a Integralidade à Saúde como eixos fundamentais do novo sistema a ser erigido no Brasil. É a partir da Presidência do Inamps, cargo que ocupou a partir de 1985, que Hésio Cordeiro vai exercer papel central para a unificação e descentralização do sistema de saúde. Juntamente com o MPAS e o MS, realiza-se uma ação político- institucional de enorme envergadura, ao trazer novas forças políticas de todos os governos estaduais e cerca de 2800 prefeituras municipais que possuíam serviços de saúde num audacioso movimento institucional de unificar e financiar, pelas bases, o nascente sistema saúde. O convênio SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde unia, pela primeira vez, todos os serviços públicos de saúde brasileiros que, passar a trabalhar numa mesma lógica assistencial com uma mesma base de financiamento, viria exercer força política decisiva tanto na Oitava Conferência – cuja presidência dividiu com Sérgio Arouca – como sobre as negociações e redação final, no âmbito do processo constituinte, dos artigos 196 a 200 da Constituição Federal, decisivos para o estabelecimento do SUS. Em todos estes movimentos, Hésio Cordeiro foi apoiado pelos Ministros da Previdência e Assistência Social Waldir Pires, Rafael de Almeida Magalhães e Renato Archer, e pelo secretário de Assistência Médica José Saraiva Felipe; pelo Ministro da Saúde Carlos Santana e o secretário- geral Eleutério Rodriguez Neto e secretária de Programas Especiais Fabíola de Aguiar Nunes.

Apesar disso, meses depois de aprovada a nova CF, forças políticas resistente e remanescentes no aparelho burocrático previdenciário exigem sua demissão como presidente do órgão; tal demissão mostrou ser tardia, pois a Descentralização e a Unificação dos serviços em um único sistema havia se consolidado não só na legislação como nos estados e municípios brasileiros, com quem doravante os órgãos federais haveriam de se articular para exercer os princípios e diretrizes setoriais  arduamente conquistados. 

O retorno de Hésio Cordeiro à academia, na sequência, vai alçá-lo ao cargo de Reitor da UERJ, onde coroa sua trajetória de educador. Dedicado a servir ao  público, seguia viajando para eventos do Movimento da Reforma Sanitária em vários estados, procurando fazer com que o público compreendesse de fato a profundidade da verdadeira e única grande reforma de Estado que o SUS representa, e cujas dificuldades de implantação devem ser superadas nos níveis técnico, administrativo e político. Hésio Cordeiro volta sua atenção para sua origem na Educação Médica e procura unificá-la com o estratégico campos da Atenção Primária/Básica.  Além de Reitor, foi Secretário de Educação do Rio de Janeiro, Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar-ANS, exerceu cargo diretivo na CESGRANRIO e na Universidade Estácio de Sá, dentre outros. Foi Presidente do CEBES e da ABRASCO, tendo sido agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela ENSP/Fiocruz. Os anos 90 levarão Hésio Cordeiro a prestar consultorias pela OPS a vários países latino-americanos na área da Organização de Serviços de Saúde,

O legado de Hésio de Albuquerque Cordeiro nestas vastas áreas de conhecimento e de atuação do Direito à Saúde nos leva a prestar-lhe nosso  profundo agradecimento, carinho e admiração pela pessoa humana que ele foi, de quem sentiremos eternas saudades.

Gostaria de acrescentar ainda as palavras que encontrei revirando rascunhos da época quando nos conhecemos nos idos de 1969 na FCM; trata-se de trechos de um poema árabe que com a ajuda de meus pais traduzi para a língua portuguesa para Hésio Cordeiro. Tais palavras, se valeram para nos dar forças e seguir adiante naquela difícil conjuntura, podem vir a servir com o mesmo propósito aos amigos, leitores e admiradores de Hésio Cordeiro nesta também difícil conjuntura .

Até que as estrelas se apaguem, até que os cometas colidam e os sóis murcham, até que a Lua se apague e todos os rios e mares secarem, até que eu envelheça e minha memória se esvaia, até que eu não seja mais capaz de dizer o teu nome, até que meu coração bata pela última vez, só então pode ser que eu pare. Pode ser.

Digamos juntos então a Hesio de Albuquerque Cordeiro: por tudo isso, só então pode ser que paremos. Pode ser.

Nelson Rodrigues dos Santos

UM PREITO À LEMBRANÇA E LEGADO DE HÉSIO CORDEIRO

Venho somar às homenagens à lembrança de Hésio e seu rico legado humano e civilizatório na construção de políticas e sistemas de saúde e educação pelas gerações afora. Seus escritos e feitos estão entre os que sempre iluminam, especialmente aos mais jovens, caminhos das esperanças, perseveranças, simplicidade e encontros na perene construção e reconstrução civilizatória.

Tornamos amigos em meados dos anos 70, ele na equipe fundadora do Instituto de Medicina Social-IMS da UERJ e eu na equipe iniciadora da concepção e práticas de Atenção Primária à Saúde em Londrina, quando, participando de eventos de saúde no Rio, conheci o IMS, Hésio, e por ele, Nina P. Nunes, Reynaldo Guimarães, José L. Fiori, e na sequência, o histórico texto básico da Reforma Sanitária Brasileira, “A Questão Democrática na Área da Saúde”. Hésio muito estudioso e preocupado sobre políticas e sistemas de saúde, incluindo nossa assistência médica previdenciária com vultosos recursos envolvidos, sua privatização acelerada na ditadura da época, e preparando seu doutorado. Eu, militante envolvido na concretude da implantação e funcionamento de postos de atenção primária peri-urbanos e rurais, de qualidade, com articulações municipais/estaduais/faculdades em saúde; aguerrido mas capenga em conhecimentos e estratégias no conjunto do sistema de saúde.

Veio o 1º Simpósio Nacional de Política de Saúde em 1979 na Câmara dos Deputados Federais em plena ditadura, cujo documento –base foi “A Questão Democrática na Área da Saúde”, com grande impulso, agregação e embasamento no movimento da nossa reforma sanitária. Hésio atuando, produzindo, debatendo, elaborando ininterruptamente e coordenando, impressionava pela fala pausada, reflexiva, pela escuta, disposição espontânea em permanecer aprendendo e confiança nos consensos e avanços finais. Foi assim no 2o Simpósio em 1982 e na histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, cujo Relatório Final ampliou o espaço de referência antes ocupado só pelo “A Questão Democrática na Área da Saúde”. Militante coerente, consistente, estudioso e crítico, inclusive no exercício das mais altas funções executivas na saúde e educação, Hésio permanecia pausado, reflexivo, consequente, consistente e disposto a aprender.

Como em todas as militâncias pela democratização do Estado, duramente submetidas a tensões e desafios aparentemente intransponíveis, torna-se comum a inquietação e tensão dos mais aguerridos, e sob esse prisma, torna-se humanamente imprescindível, a relação pessoal simplesmente doce. Hésio era uma pessoa doce imprescindível.

Ricardo Menezes, médico sanitarista

Hésio Cordeiro.
(1942-2020)

Médico e militante do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, na sua atuação política nas instituições e fora delas, desde jovem no início dos anos 1970, junto com outros intelectuais, iniciou a reflexão sobre o Sistema de Saúde realmente existente no Brasil naquele momento e a concepção de uma alternativa, de inspiração socialista, de Sistema Público de Saúde nacional.

Foi um dos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, no sentido que Antonio Gramsci empresta a essa expressão, que contribuiu sobremaneira para a formulação da proposta inicial do Sistema Único de Saúde (SUS).

Hésio Cordeiro nos deixou hoje aos 78 anos.

Sobre a sua importância na vida política e cultural do país, haverão muitos que escreverão sobre a densa atuação pública de Hésio Cordeiro.

Neste momento, a mim cabe manifestar reverência e, por que não?, saudades.

Viva Hésio Cordeiro!

São Paulo, 8 de novembro de 2020