“Mais recursos e mais coragem política, não só mais médicos”

schefferENTREVISTA*: Para o professor do Departamento de Medicina Preventiva da USP e membro do conselho consultivo do Cebes Mário Scheffer, o SUS terá problemas enquanto prevalecer uma política econômica que defende a redução das despesas de custeio com as políticas sociais: “esse impasse econômico conjuntural, somado ao subfinanciamento público e às iniciativas de privatização, têm agravado a crise da saúde”. Scheffer faz ainda uma análise da conjuntura e acredita que as ações de médicos contra o programa Mais Médicos e algumas atitudes de lideranças médicas reforçaram a pecha de corporativismo e elitismo.

O SUS completa 25 anos em 2013, juntamente com a Constituição Federal. Quais são hoje os maiores desafios do SUS?
Nesse um quarto de século, o SUS já demonstrou sua potencialidade, produziu muita saúde, mas ainda não assegurou o acesso de qualidade a todos os cidadãos. Sofremos com as agruras de ter um sistema de saúde com recursos públicos insuficientes, um sistema estratificado com imensas desigualdades de acesso da população. O SUS tem bases legais, tem normas que permitem a operação do sistema, mas não tem ainda sustentabilidade financeira e muito menos política. O SUS não é prioridade dos governos, por isso é alentador notar que nas recentes mobilizações de rua o SUS está sendo defendido por manifestantes. Parte da população, até da classe média, que muitos supunham estar divorciada do SUS, valoriza e quer um sistema público melhor.

Então o maior problema é político? E como você vê essas opções pela privatização da saúde?
As respostas não virão apenas das leis e dos técnicos. Foram decisões políticas, inclusive, que aceleraram a privatização do nosso sistema de saúde. Hoje assistimos o protagonismo do setor privado, tanto no financiamento, na forma de pagar os serviços; quanto na prestação, na forma de fornecer a assistência; e agora na gestão, entregue em grande escala às organizações privadas. O sistema de saúde brasileiro nunca será puro público ou puro privado. Teremos que buscar as mudanças nessa superposição de lógicas, considerando essa dualidade. O problema não é o mix em si, mas a forma como as decisões políticas vêm sendo tomadas para favorecer o privado e para atender interesses particulares.

O financiamento da saúde no Brasil é majoritariamente privado. Isso é um problema?
Temos um sistema público universal subfinanciado e uma estrutura liberal, com predomínio de gastos privados desembolsados por famílias, indivíduos e empresas, que compram planos de saúde, serviços, medicamentos e insumos. Só 47% dos gastos de saúde do Brasil são públicos, na contramão dos sistemas universais de saúde, que dispõem de mais de 70% de recursos públicos, como Reino Unido, Canadá, Alemanha, Itália, Espanha. Quando temos mais gastos privados, aumentamos as desigualdades de acesso, inviabilizamos a equidade, pois diminuímos a característica redistributiva do financiamento do sistema de saúde baseado nas taxas de impostos progressivos.

A conquista dos 10% das receitas da União para a saúde resolveria essa situação?
O SUS nasceu com problemas de financiamento. Em 1988 a Constituição dava ao SUS 30% da receita da Seguridade Social, percentual que deixou de ser cumprido já em 1990. Em 1993 a saúde deixou de contar com os recursos da folha de salário e em 1997 a CPMF foi desvirtuada. A Emenda Constitucional 29 ajudou ao estabelecer a vinculação de 12% das receitas de estados e 15% dos municípios e ao decidir que a União deve reservar à saúde o montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB. O critério derrotado, dos 10% da receita corrente bruta da União, daria certamente um fôlego ao SUS, mas precisamos de muito mais, pelo menos dobrar o percentual do PIB para a saúde pública, hoje em 3,5%, passando para 7%. Aqui, vale dizer, que essa bandeira dos 10% da receita é uma falsa unanimidade em defesa do SUS, pois ela tremula também sob a ótica contábil de alguns grupos privados e entidades corporativas que reivindicam recursos para si. O SUS terá problemas enquanto prevalecer essa política econômica, que defende a redução das despesas de custeio com as políticas sociais para alcançar elevados superávits primários, para investir em infraestrutura e abater a dívida pública. Ora, o Estado devia regular a economia visando obter os recursos e cumprir a obrigação constitucional de dar saúde para todos. Há um tridente fincado no SUS: esse impasse econômico conjuntural, somado ao subfinanciamento público e às iniciativas de privatização, o que têm agravado a crise da saúde.

Você fala da relação público-privado mal regulada. Explique melhor.
O destino da nossa riqueza coletiva está nas despesas públicas e privadas, não apenas nos gastos públicos. Uma análise de cenários na saúde focada só em aumentar os recursos públicos estará viciada por um erro sistemático. Nas mãos de quem circulam os atuais recursos totais da saúde e como serão utilizados os possíveis novos aportes? De recursos novos, estamos falando dos 10% da receita, bandeira que vai ganhar forças com a entrega de um milhão de assinaturas no Congresso ( quem sabe agora, com pressão popular, quem antes votou contra se arrependa), mas há outras propostas de vinculação de parte dos ganhos futuros do pré-Sal, criação de tributo específico para a saúde, taxação sobre produtos danosos à saúde, tributação de grandes fortunas e de lucros remetidos ao exterior, aumento da alíquota de Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL) paga por instituições financeiras etc. Ter mais recursos é o essencial, mas desde que fiquem claras as responsabilidades que a coletividade entende que deve confiar ao setor privado da saúde no Brasil, qual fatia desses recursos ficará com o setor privado e quais garantias teremos que o privado atuará a favor da universalidade do sistema.

Além do peso do privado no financiamento, a prestação também é privada…
Exato. Dos 6.300 hospitais do país, 70% deles são privados; apenas 35% dos leitos hospitalares, 24% dos tomógrafos e 13% dos equipamentos de ressonância magnética são públicos. A concentração de médicos é quatro vezes maior no setor privado, em alguns Estados, como a Bahia, é doze vezes. Há evidências de que os custos administrativos e assistenciais dos sistemas baseados em múltiplas organizações públicas e privadas de compra e venda de serviços de saúde, no livre trânsito  de profissionais e pacientes entre o público e privado,  são extremamente elevados e ineficientes ; e o pior, geram estratificação do sistema e, portanto, iniquidades.

Essa relação está afastando o SUS de sua proposta original?
Devemos olhar para todos os aspectos da  relação público-privado, que estão mudando a fisionomia do sistema de saúde brasileiro e afastando o SUS de sua missão original. Além do financiamento e da prestação privada, dois fenômenos merecem especial atenção:  o crescimento do mercado de planos de saúde às custas de subsídios públicos e a entrega da gestão pública a organizações privadas. Repito que o privado regulado é necessário ao sistema de saúde, a administração direta sozinha não dá conta, mas só avançaremos se fundos públicos ganharem aportes significativos, passando a financiar apenas serviços, tanto públicos quanto privados, desde que includentes e deliberadamente universais.

Como analisa o mercado de planos de saúde no Brasil?
É um mercado que cresceu artificialmente, às custas da regulação frouxa da ANS, capturada pelos interesses do mercado. Saiu da Agência um presidente que antes era da Qualicorp e acabam  de nomeados dois diretores, um serviu  à Amil, e outro à HapVida, um plano forte do Nordeste. Há uma porta giratória, que também destina cargos para ex-funcionários de operadoras que retornam às empresas quando deixam a agência. Os planos de saúde nunca prestaram serviços tão ruins, têm rede insuficiente, filas de espera, pagam mal os prestadores, vendem falsos planos coletivos para fugir da regulação, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento. Essa situação tem a ver com a promiscuidade entre o público e o privado dentro de uma agencia pública, sustentada com recursos públicos.

Há um descontentamento geral com a saúde suplementar?
A indignação de usuários e médicos desse setor já equivale ao descontentamento em relação ao SUS. Ano que vem tem eleições, os planos doam recursos para candidatos que devolvem depois de eleitos em cargos e favores. Nos sistemas universais, planos privados são de fato suplementares e representam a menor parte dos gastos totais com saúde, não passam de 15%, aqui já atingem 25% da população, graças ao crescimento de planos baratos no preço e medíocres na cobertura. E temos novidades que podem levar à maior segmentação de coberturas e a planos piores, com o poder conferido às intermediadoras – grandes corretoras, como a Qualicorp – e a chegada do capital estrangeiro, com a venda da Amil para a United, maior seguradora americana, um negócio estranhamente aprovado a toque de caixa pela ANS e CADE.

Como anda o movimento contra subsídios públicos aos planos?
Com a evolução de rendimentos de parte da população, com maior acesso a bens de consumo, o governo federal, de olho nas eleições, aposta na preferência da população pelos planos populares e acena com subsídios públicos às operadoras. É mais um golpe que descaracterizaria ainda mais o SUS como sistema universal. No mundo, a ascensão das massas trabalhadoras impulsionou sistemas públicos de saúde universais e robustos. Aqui querem seguir o exemplo que não deu certo, dos Estados Unidos, veja-se a Reforma do Obama, que tenta colocar nos trilhos o sistema mais caro do mundo e que excluiu da assistência tanta gente daquele país. A presidente Dilma recebeu, em março, os donos de planos de saúde para tratar de possíveis isenções e desonerações ao setor. Aí foi iniciado um movimento, liderado pelo IDEC, Cebes, Abrasco, e mais 30 entidades , que já conta com mais de 50 mil adesões individuais e que defende o fim de subsídios públicos diretos e indiretos para planos e seguros de saúde privados: atendimento de clientes de planos de saúde em serviços do SUS, sem ressarcimento aos cofres públicos; gastos com planos privados dos servidores públicos; revisão da renúncia fiscal, que é a dedução de gastos com planos de saúde no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas; fim de isenções tributárias a planos de cooperativas e de filantrópicos; e limitação dos recursos do Tesouro Nacional destinados ao funcionamento da ANS.

Qual seria o lugar dos planos de saúde no Brasil?
Há claramente dois projetos em disputa. Um deles, o nosso, do movimento sanitário, defende o reordenamento do mercado de planos de saúde, com estipulação de barreiras à entrada de planos ruins, explicitação dos conflitos de interesse, isso casado com o financiamento adequado do SUS, expansão da oferta de serviços e melhoria da qualidade da assistência pública. O segundo projeto, que ganha forças , prevê o crescimento de planos de saúde pobres para pobres, fala-se em chegar a 100 milhões de brasileiros consumidores de planos de baixo preço e cobertura pífia. É uma proposta tentadora para marqueteiros em época de eleição, mas será desastrosa para o nosso sistema de saúde. Somente o SUS fortalecido é que vai retomar a confiança perdida da população e colocar os planos privados no seu devido lugar, de um subsistema acessório e de fato suplementar.

Qual sua opinião sobre a gestão por meio de organizações sociais?
Houve uma fase do embate ideológico, plebiscitário, que foi superada, pois o modelo está implantado e redes inteiras, como a estadual e a do município de São Paulo, estão reféns das OSs. Além de dúvidas sobre a legalidade, faltam evidências se de fato tornaram mais ágil e eficiente a gestão. Parece que as filas não diminuíram, o sistema de saúde continua pouco resolutivo e os usuários seguem insatisfeitos. Não houve economia para o SUS, pois as OSs consomem mais recursos e não investem em infra-estrutura, e há pouca transparência no cumprimento dos contratos, como apontam os tribunais de contas, muitas nem entregam a produção contratada. A rede de saúde da capital paulista, por exemplo, foi esquartejada, há mais de 10 organizações gestoras, que promovem uma batalha salarial, uma concorrência predatória, que leva à falta e alta rotatividade de médicos. Mantém contratos precários, temporários, com CNPJ, cooperativas etc. Aniquilam a possibilidade de estruturar um plano de carreira para o funcionalismo.

As OSs se sobrepõem à administração direta?
O duplo comando (OS e prefeitura ou estado) não é só nas relações de trabalho mas na organização dos serviços. Essa entrega da gestão para entidades tão heterogêneas entre si dificulta padrões homogêneos e definidos de metas, funcionamento, gestão e remuneração de pessoal. Sugiro uma espécie de moratória do modelo, a não entrega de novas unidades para OSs em todo o Brasil, para que se possa fazer uma avaliação mais profunda dos impactos. Será impossível retomar tudo para a administração direta engessada. Há outras propostas em curso, parcerias público-privadas e Fundações públicas de direito privado, também polêmicas, e enxergo um cenário de competição entre várias modalidades de gestão. Esses modelos privados fragmentados, que trabalham por produção e não se integram ao SUS, tornarão difícil a instituição das regiões de saúde e a ordenação do acesso do SUS pela atenção primária, assegurando a continuidade do cuidado, tampouco irão solucionar gargalos dos serviços especializados, o acolhimento de doentes crônicos e idosos, e a sobrecarga dos prontos-socorros, que são alguns dos grandes nós do SUS.

Você é coordenador do estudo Demografia Médica no Brasil. Faltam médicos no Brasil?
Essa pergunta carrega um falso dilema. O Brasil já tem 400 mil médicos, houve aumento expressivo devido à enxurrada de cursos de medicina, privados principalmente, abertos nos últimos vinte anos, mas esse crescimento não beneficiou de forma homogênea a população. Claro que faltam médicos em inúmeros pequenos municípios, nas periferias, em vários serviços do SUS. Há pessoas sofrendo e morrendo com a falta de médicos, não se pode ser insensível a essa realidade. Perto de 60% dos médicos brasileiros trabalham no SUS, é muito, muito pouco para um sistema que se pretende universal.

Nosso estudo da demografia médica não é um estudo de suficiência, mas de desigualdades na distribuição. Não existe no mundo modelo teórico ou científico unanimemente aceito para determinar exatamente quantos médicos um país ou região  precisa. Este é um conhecimento ainda em construção. São precários tanto os números do governo sobre quantitativos de médicos necessários quanto as interpretações equivocadas de entidades médicas de que não faltam médicos no Brasil.

Os médicos formam um universo muito heterogêneo, com variáveis complexas como gênero, carga horária, vínculos, especialidades. E a localização dos médicos é influenciada por um conjunto de interesses e de fatores, pessoais, institucionais, corporativos, políticos e epidemiológicos. No nosso caso, a desorganização do sistema de saúde e o fato de não termos claro que sistema queremos no Brasil, são pontos decisivos para a falta localizada de médicos.

A desigualdade geográfica é a mais conhecida (os médicos se concentram nas capitais do sul e sudeste), mas também houve um acirramento da concentração de médicos a favor do setor privado nos últimos tempos. E um terceiro nível, a desigualdade entre ocupações e especialidades, que tem a ver com o perfil do médico formado e com uma medicina hoje guiada pelo imperativo mercantil e tecnológico. Como temos um ensino desconectado das reais necessidades do sistema de saúde, mesmo num mar de médicos faltarão médicos com o perfil que precisamos. Por isso há o risco de o aumento global de médicos, como quer o governo via expansão de vagas, sobretudo privadas, levar esses novos médicos mal formados para os mesmos lugares onde já há elevada concentração, nos grandes centros , no setor privado e em determinadas especialidades. Não haverá solução fácil e definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem mais financiamento público, sem presença do Estado, sem reforma profunda na formação de novos médicos.

O programa Mais  Médicos não é um caminho?
No ano em que completa 25 anos, o SUS merecia mais contrapartidas. Mais recursos, mais coragem política, não só mais médicos. Na última pesquisa CNI-Ibope a saúde estourou como principal problema do Brasil na avaliação de 77% da população, o que ecoa os gritos das ruas por serviços essenciais e saúde pública de qualidade. Não dá para traduzir essa insatisfação como mera falta de médicos. O desalento se aplica ao SUS por inteiro, mas  também aos péssimos serviços dos planos de saúde. O governo não entendeu muito bem esse recado, lançou uma cortina de fumaça. É uma pena que o debate do Mais Médicos tenha se contaminado, polarizado entre o  corporativismo cego, que diz não a tudo e não aponta alternativas de curto prazo; e o governismo açodado, com rasgos  de improviso e traços de autoritarismo.

O programa tem méritos ao prever contratações emergenciais de médicos e mudanças no ensino da medicina, mas não é exatamente uma política planejada de saúde pública, e sim um pacote desconexo concebido pelo marketing, a tentativa  de emplacar uma marca pré-eleitoral, num momento de urgência e desespero do  governo para responder às ruas,  à queda de popularidade. Fosse mesmo um  pacto, como dizem, teria envolvido instituições e atores fundamentais. Até o Conselho Nacional de Saúde, em tese nosso espaço mais plural de debate, foi convocado apenas para o endosso a posteriori, como de praxe nessa gestão.

A vinda de médicos estrangeiros foi a maior das polêmicas, não?
Pelo balanço da primeira leva de inscrições, em julho, não veio a legião estrangeira pretendida pelo governo nem a invasão alienígena temida pelas entidades médicas.   Os estrangeiros virão aos poucos, como sempre vieram, não desembarcarão em massa porque a migração de médicos entre países depende de oferta de salário competitivo com o disputado mercado internacional, condições de trabalho, qualidade de vida e, principalmente,  oportunidade de especialização profissional, quesitos que não estão presentes no Mais Médicos. Como o estrangeiro tornou-se questão menor,  reduz-se essa fase do programa à louvável contratação emergencial dos médicos, mas que tem como ponto sensível a ausência de direitos trabalhistas aos contratados, não muito diferente das admissões precárias no SUS país afora.

Mas e a questão da revalidação dos diplomas?
Está aí outra contribuição desse imbróglio. Mostrou que o Brasil precisa definir se fará a avaliação de médicos – e de outros profissionais de saúde, por que não? –  antes de começarem a atuar na profissão no país. Isso vale para os estrangeiros, para os brasileiros que se formam no exterior e para os médicos formados aqui. O objetivo, como acontece em tantos países que avaliam com rigor o ingresso, é o de proteger a população contra médicos mal formados e despreparados. Há um certo cinismo, muitos dos que exigem a revalidação de estrangeiros vetam a discussão sobre o exame de ordem para médicos. É um debate explosivo, mas inadiável considerando a deterioração a olhos vistos do ensino médico no Brasil, a abertura de escolas em negociatas, a proliferação de cursos sem corpo docente, sem estrutura e sem hospital de ensino, o fracasso das investidas do MEC com o provão e ENADE, o faz de conta dos exames de progresso ao longo da graduação, que não serviram para melhorar o ensino médico.

E quanto às propostas de segundo ciclo, ampliação de vagas de graduação e de residência?
As  universidades públicas  já convenceram o governo a recuar  na proposta inviável de  aumento do curso para oito anos. Apontaram para uma boa saída alternativa, a universalização das vagas de Residência Médica para os recém-formados, mas falta esclarecer o que isso trará de ganho para a atenção primária no SUS, que deveria ser o foco de qualquer mudança tanto na graduação quanto na residência. Nesse ponto, dos oito anos, o debate foi prejudicado pela tentativa de impor o trabalho compulsório  para médicos no SUS. A pergunta é outra, o país quer o serviço civil obrigatório no SUS para todos os profissionais de saúde? É isso que foi deliberado em várias conferências nacionais de saúde, parece que a população apoia.

O anúncio de mais 11 mil vagas de graduação – que demandariam abertura de pelo menos mais 100 cursos – serve para expor o quão precário e heterogêneo é hoje o ensino de medicina no país, e que seria uma irresponsabilidade tal aumento, sem recuperar antes o que está aí.  Sem um plano de expansão das universidades públicas, jogam as cartas na privatização do ensino médico, uma moeda de troca nas próximas eleições, pois cada vaga vale hoje no mercado R$ 4.500, 00  por mês, em média.  O estado de penúria de cursos federais abertos nos últimos anos, como o campus de Macaé da UFRJ e a medicina da Universidade Federal de São Carlos é um sinal de alerta. Hoje o Brasil forma 15 mil médicos por ano, boa parte sem as mínimas condições de cuidar de gente. Por meio de contas obscuras, que beiram a desonestidade intelectual, querem chegar a 26 mil, mas a massificação de péssimos médicos trará mais prejuízos que benefícios ao SUS.

Não houve intransigência dos médicos e de suas entidades?
As passeatas de médicos contra o programa e algumas atitudes de lideranças médicas reforçaram a pecha de corporativismo e elitismo. O desgaste pode servir para que parte da categoria repense seus domínios privados e valores conservadores e se aproximem mais do SUS, propondo caminhos para aquilo que a população precisa com urgência, no caso o povo quer médicos onde hoje eles não estão. Dessa briga não sairão vencedores, governo e médicos já perderam. E há efeitos colaterais preocupantes. Emergiu uma espécie de catarse anti-médicos, uma purgação desses profissionais. A demonização dos médicos serve tanto de distração de governistas atordoados, sem entender essa onda de insatisfações, quanto integra a pauta das demais profissões da saúde, unidas contra um inimigo comum, o famigerado ato médico.  O ato médico foi uma lei estúpida e desnecessária, pois os médicos nem sequer precisam de uma lei para marcar território ou para preservar a sua prática hegemônica e arrogante. Prova disso é o  protagonismo que o governo reservou a eles no programa Mais Médicos, como se a presença deles sozinhos, sem os demais profissionais, fosse a salvação. Não existirá SUS sem médicos e o desafio está em estabelecer um diálogo multiprofissional que julgue os médicos brasileiros não como o problema, mas como parte essencial da solução. É hora de tirar o bode branco da sala e arregaçar as mangas na defesa do SUS.

Você quer dizer que a agenda precisa ser ampliada?
A histeria em torno do Mais Médicos deve ceder lugar ao  debate que interessa: como salvar  o SUS, que sofre com a retração do  financiamento federal, a cobertura insuficiente, a baixa resolutividade, a privatização da rede perpetuada até por prefeitos que tinham discurso oposto em campanha. Estamos desperdiçando o momento de intensa expressão pública, oportuno para fazer um grande debate nacional, por  exemplo com plenárias extraordinárias de saúde convocadas pelos conselhos, que radicalizem a exigência de mudanças mais profundas do modelo de atenção à saúde, com viabilização de fato da atenção primária e de uma nova articulação interfederativa que tire do papel  as redes e regiões de saúde. Um verdadeiro “pacto pela saúde” deveria conter essas metas mas também medidas  para  formar, valorizar e fixar todos os trabalhadores da saúde,  não só médicos. Junto com o subfinanciamento e a má gestão, o que tanto ameaça o SUS é o abandono dos nossos recursos humanos, sem políticas de valorização, sem perspectivas. Muitos trabalhadores do SUS hoje atendem e acolhem mal as pessoas, porque são mal formados, ganham pouco e não têm condições de trabalho, porque suas  relações e vínculos estão cada vez mais precarizados, improvisados, privatizados. O ingresso totalmente desregulado de pessoal nos serviços, a alta rotatividade e a inexistência de carreira digna desumanizaram o SUS.

*Entrevista concedida à jornalista Ivone Silva, do Sindicato dos Médicos de São Paulo (em parte publicada na Revista DR!), com questões complementadas pelo Blog do Cebes, sobre o programa Mais Médicos.