Maldição Haiti

Ignácio Ramonet – 12/2004

Celebra-se nestes dias o bicentenário da independência de Haiti, «primeira república negra do mundo» e segundo país da América que conquistou sua plena soberania -depois dos Estados Unidos-. Este aniversário nos convida a uma reflexão sobre o destino de uma nação surgida da luta contra a escravidão, e de uma revolução que tanta influência teve na independência da América do Sul.

A epopéia se inicia em 1659, quando os franceses – conseqüência do Tratado de los Pirineus – começam a colonizar a parte ocidental de Santo Domingo. E a transformá-la pouco a pouco em uma imensa plantação de cana de açúcar. Para trabalhar e cortar essa cana trazem da África milhares de escravos mediante o abominável negócio do tráfico. Como  faziam também as demais potências – Espanha, Holanda, Inglaterra, Dinamarca – que dominavam o Caribe.

Estima-se que em 1784, uns 100.000 franceses possuíam 7.800 plantações e mais de 500.000 escravos. Cada ano, nessa época os colonos brancos importavam uns 30.000 escravos cuja rentabilidade era altíssima. Por essas datas Santo Domingo produzia 75% de todo o açúcar que se consumia no mundo. A meio caminho entre o manjar dos reis e o medicamento panacéia (lhe atribuíam, em particular virtudes afrodisíacas), o açúcar era então um caro produto de luxo consumido por todas as realezas e burguesias da Europa.

Mas invocando os grandes ideais da Revolução Francesa, esses escravos se sublevam em 14 de agosto de 1791 sob o comando de Toussaint Louverture, chamado o Espártaco negro . A guerra durará 13 anos, se caracterizará por sua crueldade e suas atrozes matanças. Para tentar sufocar a insurreição, Napoleão (casado com Josefina, una crioula dominicana) manda uma expedição de 43.000 veteranos, que serão derrotados pela febre amarela e pela formidável estratégia guerreira dos chefes insurretos. Em 18 de novembro de 1803, na batalha final de Vertières, os rebeldes comandados por Capois La Mort derrotam os franceses capitaneados pelo temível Donatien Rochambeau. A guerra  termina com um saldo espantoso: 150.000 escravos e 70.000 franceses mortos (destes uns 20.000 crioulos).

Em 1º de janeiro de 1804, na praça de armas da cidade de Gonaïves, ante uma multidão em júbilo, se proclama a independência da ilha de Santo Domingo, que toma então seu antigo nome índio de Haiti. Esta proclamação soa como uma bomba em todo o continente americano. Os escravos negros, submetidos a una dominação infernal, demonstravam que, por sua própria luta, sem a ajuda de ninguém, podiam conquistar a liberdade. E que, baseando-se nas idéias do Iluminismo e das Luzes, podiam criar uma nação nova de homens livres.

Simón Bolivar, que se refugiara um tempo no Haiti, entenderá a mensagem. E graças à promessa de acabar com a escravidão, conseguirá que negros e índios se somem à luta pela independência da América do Sul. Uma participação que se revelará decisiva.

O mal exemplo do Haiti aterrorizou sem dúvida a todas as potências que – apesar da proibição do tráfico pelo Congresso de Viena em 1815 – continuaram autorizando a infame escravidão. Havia que fazê-lo pagar. E ninguém ajudou a nova república negra. Ao contrário, todos a boicotaram. Com as penúrias, o país caiu em guerras civis que arrasaram o território, múltiplas vezes incendiado. Quase desapareceram os frondosos bosques e a vegetação tropical. Depois chegou o tempo da ocupação pelos Estados Unidos que durou 35 anos (de 1915 a 1934). Vieram logo novos ditadores, e entre eles alguns -como Papa Doc Duvalier- dos mais despóticos e mais tirânicos que o mundo tenha jamais conhecido.

Ainda hoje continua a instabilidade política. E a miséria crônica. E a AIDs. O Haiti é hoje um dos países mais pobres do mundo. Como se se prolongasse o castigo aos escravos por haverem ousado libertar-se. Como se para o Haiti, e por um efeito contrário do vudu, a libertação se tivesse transformado em uma infinita maldição.

Ignácio Ramonet é jornalista e escritor

Traduzido do espanhol por Cláudia Santiago