Morrer na rua e morrer no hospital, um artigo de Luiz Vianna Sobrinho
Por Luiz Vianna Sobrinho.
Há menos de seis meses, nos espantamos com a história de um fotógrafo que morreu de infarto dentro de um ônibus sem receber assistência médica, mesmo estando o veículo estacionado em frente ao Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras. Agora, temos o caso recente da jovem de 23 anos que faleceu de apendicite, após esperar 28 horas por uma cirurgia, internada em um hospital de alta complexidade no Rio de Janeiro. Vemos que a forma do caso se repete de tempos em tempos. São casos simples, do ponto de vista médico, tecnocientífico, mas que tiveram um desfecho nefasto por outras características, bem humanas, da nossa medicina contemporânea: a burocratização e sua onda totalitária da gestão, a objetificação do paciente e a indiferença. A impressão, no entanto, é que começam a aumentar em freqüência. Principalmente, porque os casos vão se somando, dia a dia, e não notamos uma real mudança no comportamento geral do sistema.
A primeira questão que se levanta nos comentários que vemos recentemente nas redes sociais vincula o ocorrido a uma crise de qualidade no sistema de saúde privado e aposta, em contrapartida, no estímulo às organizações civis no resgate do sistema de saúde público universal, com cobertura de 100% da população. Esse reclame legítimo está mais presente hoje do que na última década, por exemplo, quando o Estado deu plenos direitos ao mercado e estímulo à organização de grandes grupos financeiros entendendo a saúde como um dos pólos de sua política neodesenvolvimentista. Chegamos, nos últimos anos, a um quarto da população, ou sua parcela ‘economicamente ativa’, 50 milhões de brasileiros, com planos de saúde privado. E, desde a ‘onda’ de junho de 2013, o pólo da questão parece ser outro. A sociedade parece perceber agora que saúde não faz parte de seus desejos de consumo. A questão da cidadania parece querer recuperar o seu valor. Não estamos mais falando de seguro de automóveis, mas de direitos sociais.
Estar nas ruas, ou dentro de bons hospitais, trabalhando e dependendo da organização das estruturas de saúde requer que pensemos na assistência à saúde do indivíduo e da coletividade de uma forma realmente universal e igualitária. Mas teríamos que fazer um grande esforço, e talvez esse seja o momento que se aproxima, para revisar as dicotomias que sobrevivem desde a implantação da Carta Magna de 1988. Lá estão as determinações para que a saúde seja um direito de todos e um dever do Estado. Mas, também, o artigo que libera à iniciativa privada a sua exploração, como qualquer outro mercado, e com a lógica que lhe é peculiar. Com quase três décadas de implantação, esse sistema de saúde de duas cabeças se vê e é percebido pela sociedade como dois sistemas distintos.
No entanto, vem trazendo em suas entranhas outros arranjos internos, outras dicotomias que passam despercebidas. A gestão da rede pública e seus serviços fica a cargo do Estado em seus três níveis; e a rede privada sendo totalmente supervisionada pela Agência Nacional de Saúde, esta com pouca interferência sobre os prestadores de serviços, regulando mais a viabilidade e sustentação financeira das seguradoras e de todo o sistema, estando realmente a parte do SUS. Enquanto em um trabalha-se com a lógica dos direitos da cidadania, no outro vela-se a cartilha de direitos do consumidor.
O caso específico do Hospital da Barra levanta no familiar da jovem a dúvida de que haverá julgamento e punição exemplar, pois a Unimed-Rio, dona do estabelecimento, compartilha sua diretoria, há muitos mandatos, com a diretoria do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro. Há já no meio médico e acadêmico muita dúvida quanto à eticidade de se ter o único órgão responsável pela fiscalização de uma prática profissional com grande valor social como a medicina tão fortemente vinculado a um plano de saúde com práticas de mercado que há muitos anos já se distanciou da semântica do cooperativismo.
Mas a dicotomia que ultrapassa a questão do público-privado, e salta aos olhos, é aquela que se dá na relação médico-paciente. Com o avançar da burocratização de serviços e equipes, rotinas e protocolos, finanças e contratos, os médicos e os pacientes estão cada dia mais afastados dentro da relação de mercado: profissional-cliente. Entendo que essa seja a questão mais grave e crítica da medicina nos nossos tempos. Está fortemente relacionada ao modelo de sociedade em que estamos vivendo. E penso que só uma mudança estrutural da sociedade como forma de se pensar como cidadão, e não como consumidor, poderá resvalar na mudança para outro modelo de verdadeira atenção médica, fora ou dentro do hospital.
Luiz Vianna Sobrinho é Médico – Pesquisador GPDES/IESC/UFRJ, autor do livro Medicina Financeira, a ética estilhaçada. Garamond, 2013.