Mulheres em movimento no 28 de setembro – Dia de Ação Global pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro

entrevista de Maria José Araújo a Carla Gisele Batista publicado originalmente em Folha de Pernambuco

A partir de hoje, até início do mês de outubro, a coluna publica uma série voltada ao tema da liberdade reprodutiva. A proposta é trazer informações atualizadas, ao mesmo tempo em que MULHERES EM MOVIMENTO (MeM) se soma às ações dos movimento feministas, outras organizações, instituições e ativismos, em defesa dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos.

Abre a série uma entrevista com a médica baiana, psicanalista, Maria José de Oliveira Araújo (MJA). Ativista dos Direitos Humanos das mulheres, membro da Rede Feminista de Saúde e da Rede Médica pelo Direito de Decidir. Foi coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher na prefeitura de Luíza Erundina, em São Paulo, e do Ministério da Saúde, no 1º governo Lula. Leia, comente, compartilhe!

MeM: Como chegou a você o caso da menina de 10 anos, do Espírito Santo, que  enfrentou obstáculos ao seu direito ao aborto legal e seguro?

MJA: Evidente que qualquer reflexão feita em relação à questão dos direitos sexuais e reprodutivos, no Brasil, tem que levar em consideração esse momento terrível, repressor, anti direitos, que estamos vivendo. A análise da conjuntura é muito importante.

Os serviços de aborto legal estão no cerne dessa questão moral e ética dos conservadores. Sempre foi um grande problema a implantação dos serviços e eu acredito que isso vem piorando progressivamente, desde o governo Temer. Assim como vem piorando a violência contra as mulheres. Os números estão aí. 

No momento em que mais se precisa que os serviços de atendimento à violência, não somente a violência sexual, o aborto legal, mas a violência em geral, funcionem, é o momento em que estamos vendo esse profundo retrocesso e essa perda de direitos, com os fundamentalistas ocupando o aparelho do Estado, elaborando ou impedindo as políticas públicas. 

O caso da menina de 10 anos, na minha opinião, teve uma repercussão grande e importante, se contrapondo à conjuntura brasileira de retrocessos. Indicou horizontes diversos e animadores. Tenho um certo pessimismo quando vejo as pesquisas de apoio ao governo. Por outro lado, sou uma pessoa que sempre teve muita esperança na vida, espero não desanimar. 

MeM: Conte-nos sobre as dificuldades encontradas para a instalação do primeiro serviço de aborto legal, que foi no Hospital Jabaquara, em São Paulo, em 1989.

MJA: Naquele momento havia também uma enorme resistência dos profissionais de saúde. Olhando depois – já existem muitas avaliações feitas pelos movimentos sociais, pelas feministas, academia – foi um processo que tanto o Secretário de Saúde, que era o Eduardo Jorge, como eu que era a Coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, e a Luíza Erundina, prefeita, uma pessoa muito democrática, nos envolvemos. O processo foi estabelecido de forma muito democrática, com consultas generalizadas. A Ordem dos Advogados do Brasil/ São Paulo, os profissionais de saúde, movimentos sociais, entre outros setores da sociedade, participaram do debate que resultou na implantação do primeiro serviço do país.

O processo foi extremamente participativo, colaborativo. O movimento feminista de São Paulo era muito organizado. Fizeram assembleias com feministas, advogadas, entre outras representações dos movimentos de mulheres.  Foi muito positivo como processo.

Claro que tudo se deu com muitas dificuldades, inclusive com obrigatoriedades que não estavam previstas no Código Penal, como por exemplo, a apresentação do Boletim de Ocorrência (BO). Foi toda uma negociação. Sem isso, naquele momento, não sairia o serviço de atendimento ao aborto legal. E eu tinha plena consciência de que estava negociando como gestora pública um documento que o Código Penal não exigia. Tanto é que, quando eu entrei no Ministério da Saúde, uma das primeiras coisas que a Área Técnica de Saúde da Mulher fez, foi a revisão da norma técnica (de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes), e a retirada da obrigatoriedade do BO. Quase como uma dívida política, que nós as gestoras e os gestores, tínhamos com as mulheres. E que foi outro problema gravíssimo na época. 

O ministro da Justiça se manifestou questionando. O ministro da Saúde, que era o Humberto Costa, deu todo o aval, e teve que dialogar com o ministro da Justiça. Eu debati várias vezes com o Conselho Federal de Medicina (CFM), quase fui devorada por eles (risos).

MeM: Lembro de uma reunião que foi feita em Recife, com várias instituições, para discutir essa questão com o presidente do CFM, Edson de Oliveira…

MJA: Teve a portaria que o Ministério da Saúde (MS) fez, naquela época, sobre o procedimento. Como eu tenho esta história muito viva dentro de mim, porque eu fui uma das responsáveis, dá pra ter uma dimensão da situação, e do que significa hoje, como retrocesso, a portaria 2.282/20, do MS, que está sendo questionada pelos movimentos feministas e diversas instituições, como o Ministério Público Federal, e no Supremo Tribunal Federal, pelos partidos PT, PcdoB, PSB, PSOL e PDT. 

Mas, voltando ao percurso histórico, naquela época a Área Técnica deu dezenas de entrevistas, que geralmente eram para rebater as afirmações de que as mulheres eram mentirosas. Conseguimos avançar. Não tenho dúvida nenhuma. 

E fica cada vez mais claro: avanços nas políticas públicas requerem governos progressistas e democráticos. O que agora se comprova. A política pública não pode ser individual, de alguns profissionais que acreditam – isso é muito importante também – mas se não for uma política de Estado, entra um governo e acaba com ela. 

MeM: Conte-nos um pouco  mais sobre o seu trabalho como gestora.

MJA: Na época da implantação do serviço de aborto legal eu fiquei cerca de 6 meses indo ao Hospital Jabaquara, fazendo formação, desde o porteiro, atendentes, assistentes sociais, enfermeiras, médicos/as. Discutia, debatia, sempre democraticamente, de forma inclusiva. Ia a audiências com juízes, com profissionais da saúde acompanhando. Foi muito positivo como processo, marcado pela democracia. 

Mais tarde, quando eu estava no Ministério da Saúde, havia um programa que era de formação dos profissionais de saúde em Direitos Sexuais e direitos reprodutivos, na área de ginecologia e obstetrícia. O programa foi feito em todos os estados do Brasil. Incluía Medicina baseada em evidência, para enfrentar  o discurso religioso, anti-ciência, que era levantado por alguns como impedimento para implantar políticas de saúde sexual e reprodutiva. Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, e a Medicina baseada em evidências, tanto relacionada ao aborto inseguro como ao previsto por lei. Demonstrávamos, através dos dados, que o aborto realizado em condições seguras tem muito pouco risco. Não era um discurso ideológico, mas baseado na ciência. 

MeM: O que foi alcançado como implantação dos serviços?

MJA: Naquele momento nós tínhamos, mais ou menos uns 65 serviços. Claro que não eram iguais.  Eu  visitei uma parte importante deles. Teve serviço, dentro de universidade pública, com pessoas progressistas que eram a favor do parto humanizado, do aborto como direito das mulheres, que não era divulgado. Quase ninguém sabia que eles atendiam. 

Foi todo um debate: porque não divulgar? Ah! porque podemos ser alvo de ataques. Esses serviços todos funcionavam, seguindo as normas técnicas e éticas, mas tinham limites. Nunca tive dúvidas a esse respeito. 

MeM: Quais são as principais dificuldades alegadas?

MJA: Para profissionais de saúde assumirem esse tipo de serviço tem que ter uma conjuntura política que não os ameace, que não coloque medo na sua atuação e no seu dever de atender às mulheres. Que os favoreça. 

Por outro lado, é um dever ético e legal. O código de ética médica diz que nenhum médico pode deixar de atender, por exemplo, uma mulher que chega com abortamento inseguro, porque é uma urgência e a falta de atendimento se configura como omissão de socorro. 

MeM: E como você vê os serviços hoje?

MJA: A conjuntura atual é extremamente desfavorável. Eu leio sempre sobre o número de serviços que existem atualmente: 45, 32… Tenho dúvidas. Não tenho como afirmar, dimensionar. Deveria, talvez, ser feito um levantamento por estado. 

Muito difícil saber perguntando pelo telefone: vocês fazem aborto legal? Acredito que as pessoas não  queiram passar essa informação pelo telefone. Se elas não dizem pessoalmente, e quando eu era coordenadora eu vivi isso várias vezes. Tinha que ir, conversar, convencê-los de que era um dever. 

MeM: Havia quem alegasse objeção de consciência?

MJA: Sim. O profissional de saúde tem direito de ser objetor, de ter objeção de consciência, mas isso tem limites. Tem algumas situações em que esse direito não existe, alguns casos em que os médicos não podem ter objeção de consciência e colocar a vida da mulher em risco. E a instituição não pode ter objeção de consciência. Se tem um único médico e ele não faz, a instituição tem a obrigação de encontrar uma solução, fornecer todas as informações pra aquela mulher: o direito que ela tem, como é, como será, e procurar ou uma outra instituição, ou dentro da própria instituição, uma pessoa que faça.  

Esta questão da objeção de consciência é muito pouco discutida no Brasil. A Rede Médica pelo Direito de Decidir, da qual eu pertenço, vem fazendo este debate.

De toda forma, a recusa não é só do médico. Por isso que, já naquela época do Hospital Jabaquara, as capacitações envolviam todos. A porta de entrada do serviço público, para as mulheres que sofrem qualquer tipo de violência, é fundamental. Se essas pessoas, desde a portaria, não estiverem sensibilizadas, elas vão ser uma barreira. Ainda mais nessa conjuntura de um governo totalmente anti direitos, em que tudo termina no desmonte das políticas públicas, no esforço de reverter leis progressistas que já vinham funcionando ha muito tempo. 

E a forma como esse governo influencia as pessoas, nas suas crenças, é de uma hipocrisia tremenda. Sabemos que muitos médicos fazem aborto nos seus consultórios, mas no serviço público são poucos os que querem ter uma atuação real, verdadeira, ajudar as mulheres e cumprir seu dever ético. E fica por isso mesmo. Não são questionados. Outros tipos de atendimento também, como a contracepção de emergência, acabam relegados à crença religiosa dos profissionais de saúde.

MeM: O caso da menina pernambucana de Alagoinha, de 9 anos com gravidez gemelar, também por estupro, está fazendo 11 anos. Um caso que também provocou uma grande comoção e manifestações da sociedade. Na sua percepção, diante deste outro caso emblemático do Espírito Santo, avançamos no debate?

MJA: Eu acho que teve um grande avanço. Fiquei surpresa com a quantidade de notas, abaixo assinados. Não só das alas progressistas em relação às políticas de direitos sexuais e reprodutivos, como movimentos feministas, médicos pelo direito de decidir, outros médicos, até individualmente. Vi dezenas, de médicos populares, médicos pela democracia, associações diversas, foi impressionante. 

Quando saiu a portaria do MS, retroagindo em muitas coisas dos procedimentos de justificação – que antes tinham o objetivo de  não obrigar as mulheres a ir à delegacia e fazer o BO como pré-requisito a serem atendidas – considerei um absurdo! Impressiona aí também as dezenas de notas de instituições que antes não se manifestavam, e vieram a público contra a portaria 2282/20. O Ministério Público Federal, por exemplo. A repercussão foi muito maior.

O caso da menina do Espírito Santo e a iniciativa, equivocada, do Ministério da Saúde, geraram um debate impressionantes. Protestos. Muito positivo numa conjuntura desfavorável como essa que estamos vivendo. 

MeM: Como você vislumbra o futuro próximo?

MJA: Penso que vai ser mais difícil nessa conjuntura. A tendência é o debate contrário se acirrar. Deu para perceber, depois do caso do Espírito Santo  e  da portaria do MS, que a posição dos fundamentalistas, dos conservadores, não é unânime na nossa sociedade. 

O apoio ao caso da menina foi muito grande, assim como as manifestações  contra a portaria 2282/20. Tanto é que não vi manifestação do Ministério da Saúde se defendendo. Há inúmeros pedidos para que eles recuem. Mas, será que vão recuar? Deu, no entanto, para perceber que a situação não está 100% do lado deles. Claro, no entanto, que tem um impacto real na prática, nos serviços. 

Some-se a isso a existência de um déficit de memória histórica no país. As pessoas não conhecem a história brasileira. Tem propostas que são “novas”, mas  as raízes foram fundadas ha 15 ou mais anos atrás e as pessoas não sabem. Desconhecem as realizações para se instituir uma rede de cuidado, por exemplo. As normas técnicas, a rede de atenção à violência. Parece que não existiu/existem as iniciativas que já buscavam se estabelecer há algum tempo. Tem um desmemoriamento. Há pessoas que pensam que as coisas começaram com elas. Há muito espontaneísmo. Na apresentação de projetos de lei, também, muitas iniciativas desconhecem históricos e sujeitos que atuam. 

MeM: Como médica, o que você gostaria de afirmar para terminarmos essa entrevista?

MJA: Gostaria de dizer que sem os profissionais de saúde as políticas públicas não avançam. Lutar pela instituição dos serviços de atenção às mulheres em situação de violência, pelos serviços de aborto legal e pelo atendimento humanizado do abortamento incompleto fazem parte da luta pelo direito a ter o aborto legalizado no país. 

Quando eu estava em São Paulo, na prefeitura da Luíza Erundina –  eu fui gestora 13 anos – a Área Técnica de Saúde da Mulher implantou  serviços de atenção à violência em 13 distritos de saúde. Foi um trabalho árduo. Tem que ter o trabalho das mulheres, dos movimentos de mulheres e feministas, que faça esse meio de campo, que sustente. Assim como profissionais que, como elas,  tenham a compreensão do que significa a maternidade na vida das mulheres, e respeitem as suas decisões, e as compreendam no arcabouço dos Direitos Humanos. 

Paulo Maluf entrou depois da Erundina na prefeitura. Eu pensei que o serviço do aborto legal de São Paulo ia deixar de existir. O médico Jorge Andalaft, que foi o primeiro a abarcar a proposta, e estava lá, foi muito importante para que o serviço fosse mantido. O Jorge Andalaft não pode ser esquecido. 

Para criar o primeiro serviço, eu visitei várias unidades. Foi no Hospital Jabaquara, de todos os  serviços que consultei, que encontrei receptividade; do diretor, e do Dr. Jorge, que foi o primeiro médico que nos deu apoio. Ao longo do tempo, outros profissionais – médicos, enfermeiras, advogados, assistentes sociais – foram se comprometendo com o processo e no final tínhamos uma excelente equipe multiprofissional envolvida. É importante trazer essa e outras memórias de novo à tona.