Na conjuntura do golpe de Estado: eleições e SUS
Ricardo Menezes* e Iara Camargo**
INTRODUÇÃO
No presente documento, em função da profunda crise política, socioeconômica e institucional por que passa o Brasil, parte-se da premissa que a análise do acelerado processo de destruição do Sistema Único de Saúde (SUS) objetivando apresentar proposições no sentido de seu estancamento e reversão, exige, por um lado, situá-la conjunturalmente e, de outro, tratar de questões nacionais que dizem respeito à conformação Interfederativa do SUS, ainda que se pretenda um recorte global restrito ao Estado de São Paulo.
Na Conjuntura do Golpe de Estado
A conjuntura advinda do golpe de Estado de 2016, que depôs a presidenta reeleita em 2014, Dilma Rousseff, sem quaisquer evidências que desabonassem sua conduta à frente da presidência da República, apresenta uma característica marcante: as classes sociais dominantes e seus aliados internacionais, as elites políticas conservadoras e antidemocráticas, os partidos golpistas, os apoiadores do golpe nas instituições do Estado brasileiro, os meios de comunicação de massas, enfim, o conjunto do condomínio golpista, desde que a presidenta eleita foi afastada inicialmente em abril de 2016, vem agindo com pressa para viabilizar as suas políticas atentatórias aos direitos dos trabalhadores, antipopulares e comprometedoras da soberania nacional.
Alguns poucos exemplos: os direitos das classes trabalhadoras, conquistados depois de décadas de duras e ríspidas lutas sociais, vão sendo mutilados, como bem atesta a aprovação da “reforma” da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT; os recursos do orçamento federal para gastos e investimentos nas políticas sociais, entre elas a de saúde, foram congelados até 2036; a alienação de nossas riquezas transformou-se em realidade, como evidencia a concessão da exploração do petróleo do Pré-Sal propiciando o controle e o benefício material a empresas estrangeiras; a privatização de empresas estratégicas para o futuro do Brasil, como a Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e outras, voltam à agenda política do governo federal sem voto.
Em síntese, em nenhuma política social ou instituição pública relevante deixou de haver retrocessos em relação à essência democrática de políticas ou ao funcionamento de instituições. Ao mesmo tempo, são vítimas da atual condução da economia cerca de 14 milhões de pessoas desempregadas, sem falar de outros tantos milhões de trabalhadores cujas relações de trabalho são precarizadas, e se amiúdam na vida nacional a ocorrência de fatos, alguns trágicos, que não se coadunam com tempos de normalidade democrática – voltamos ao padrão de convivência social no seu amago autoritário que caracterizou a história do Brasil até a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF de 1988.
Ou seja, a cada momento o condomínio golpista dobra a aposta, sem limites, inclusive porque não há nenhuma fração da classe dominante ou setor social importante do seu espectro de influência político-ideológica que não tenha participado de algum modo da deposição da presidenta Dilma Rousseff, e, nestes termos, este condomínio continua buscando legitimar o golpe de Estado por meio da eleição do próximo presidente da República, em pleito que imaginam sem a participação ou sem a influência decisiva do ex-presidente Lula. E mais: trabalham País afora para eleger governadores, a maioria do Congresso Nacional e fazer maioria nas Assembleias Legislativas.
Esta conjuntura coloca à oposição radicalmente democrática – movimento sindical, movimentos sociais, partidos políticos, intelectualidade democrática e socialista, e outros –, em especial ao Partido do Trabalhadores – PT, a urgência de desde já aprofundar o contato com as classes trabalhadoras e setores das camadas médias tendo como eixos centrais de discussões e proposições de luta: o restabelecimento da vida efetivamente democrática no Brasil, propostas concretas para a retomada do crescimento econômico com recuperação dos níveis de emprego e propostas concretas para o enfrentamento imediato do desmonte produzido nas áreas sociais, especialmente na saúde, assistência social e educação.
Eleições e SUS
O Sistema Único de Saúde – SUS, instituição lato sensu que encarna a própria política pública de saúde no Brasil, assiste há dois anos deformações significantes de múltiplos aspectos de sua essência – particularmente incidentes sobre o corpo das políticas específicas mais avançadas socialmente cuja razão de ser são a garantia dos direitos humanos e a solidariedade social – com vistas a afetar a sua legitimidade, “explicar” a diminuição do volume de recursos de áreas estratégicas do ponto de vista social e drenar recursos para empresas e outros entes privados que atuam no mercado e nos negócios da saúde.
Isto faz com que, questões nacionais interligadas, que dizem respeito ao SUS em seu conjunto, portanto, também aos Estados da Federação, ao Distrito Federal e aos Municípios, precisem ser expostas preliminarmente.
DIAGNÓSTICO
O Subfinanciamento da Saúde como Política de Estado
A primeira questão: existe consenso entre estudiosos brasileiros e de outros países, defensores de um qualificado Sistema Nacional de Saúde público e universal, os quais julgam que o SUS tem plenas condições de assumir esta função para o conjunto da sociedade brasileira, desde que se equacione problema cuja emergência histórica situou-se no plano da política e não no plano da técnica ou da ciência. Ou seja, o mérito desta questão consiste na insuficiente participação da União – ente federado que mais arrecada e retém tributos – no financiamento do SUS durante a sua existência. Tal insuficiência decorreu da oposição política à implantação do SUS já no seu nascedouro, em 1989, patrocinada pelas classes dominantes brasileiras e suas elites políticas conservadoras incrustadas nos ministérios que regem a política econômica, mediante a sonegação de recursos orçamentários, cuja transferência para a saúde foi prevista na CF de 1988, inaugurando-se, assim, o crônico subfinanciamento do Sistema que perdura até os dias de hoje[1], o qual, a partir de então, se configurou como uma política de Estado no Brasil[2] .
Em outros termos, naquela ocasião, em média eram investidos cerca 25% dos recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS na assistência médica prestada por órgão do MPAS. Com o reconhecimento do direito social à saúde, a criação do SUS e a universalização do acesso aos seus serviços previstos na CF de 1988, os constituintes destinaram percentual aproximado de recursos orçamentários da seguridade social, 30%,[3] para a saúde, a fim de que em 1989 o Ministério da Saúde – MS iniciasse a organização do novo Sistema, o SUS. Este recurso não foi repassado ao MS, gerando gravíssima crise de desassistência à população nos Estados brasileiros[4].
Ainda que a União tenha alocado 74,38%2 do total de recursos da saúde em 1990, 63,00% em 1995[5] e 58,60% em 20002 tratavam-se de valores que não se prestavam à viabilização de nobre política social voltada para a cidadania, ou seja, a implantação de um Sistema de Saúde público e universal, de âmbito nacional. Destacamos que nestes anos ocorreram a citada crise de desassistência, em 19904; a crise de 1993, quando as contribuições previdenciárias deixaram de se constituir em fonte de financiamento da saúde, por decisão dos Ministérios da Fazenda e da Previdência Social, não ocorrendo desassistência porque, na sua iminência, pressões diversas fizeram com que a presidência da República determinasse o aporte de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT na saúde e, por fim, a crise política que levou o ministro da Saúde a pedir demissão no final de 1996, depois da criação e regulamentação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF, neste mesmo ano, tributo proposto com intuito de aumentar os recursos da saúde, cujo produto da arrecadação deveria ser destinado ao Fundo Nacional de Saúde – FNS para financiamento de ações e serviços de saúde. Entretanto, a contribuição imediata da CPMF foi mais efetiva para a garantia de estabilidade de financiamento da saúde do que para a ampliação de seus recursos, uma vez que seu impacto foi amortecido pela retração de outras fontes de financiamento da saúde[6] [7], determinada pelo Ministério da Fazenda, o que motivou o pedido de demissão do ministro da Saúde antes referido. Logo que entrou em vigor, a CPMF passou a ser uma das principais fontes de financiamento do MS, sendo que durante o período em que vigorou, entre 1997 e 2007, a CPMF representou em torno de 30% do total dos recursos federais para a saúde.
A crise instaurada pelo afastamento dos recursos previdenciários ao financiamento da saúde ensejou iniciativas parlamentares para assegurar a vinculação de recursos para o SUS, sendo que diversas proposições apresentadas, entre 1993 e 1999, foram aglutinadas e deram origem à aprovação da Emenda Constitucional – EC nº. 29, de 13.09.2000, a qual definiu montantes mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde – ASPS.
As diretrizes sobre a aplicação da EC nº. 29/2000, foram aprovadas no Conselho Nacional de Saúde – CNS pela Resolução nº. 322, de 08.05.2003. Os cálculos nesta resolução representam os percentuais mínimos a serem aplicados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios durante regra de transição, de 2000 a 2004, introduzida para permitir os ajustes graduais nos orçamentos. A partir do ano de 2005, caso não fosse aprovada a Lei Complementar prevista na EC nº. 29/2000 para disciplinar diversos aspectos do financiamento da saúde, prevaleceriam percentuais estabelecidos no final de 2004: Estados e Municípios, respectivamente, o limite mínimo de 12% e 15% do produto da arrecadação de impostos, Distrito Federal limite mínimo expresso em base vinculável de percentuais equivalentes aos dos Estados sobre dadas receitas acrescidos de percentuais equivalentes aos dos Municípios sobre fontes de recursos e a União o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB do ano antecedente ao da execução orçamentária[8].
Passando a vigorar já no ano da sua aprovação, quando a União respondia por quase 60% do recurso público total, a EC nº. 29/2000 trouxe mais recursos e promoveu o aumento da participação de Estados, Distrito Federal e Municípios no financiamento do SUS e, desde então, a participação da União foi decrescendo percentualmente ficando em torno de 44% em 20116, 45,51 em 20122, 42,6% em 2013, 42,4% em 2014, 43,0% em 2015, 42,8% em 2016 e 43,4% em 2017[9]. Tomando-se o período 2000-2011 a participação dos Estados passou de 18,5% para 25,7% e a dos Municípios de 21,7% para 29,6%6 [10], o que revela que a vigência da EC nº. 29/2000 teve impactos diferenciados em cada ente da federação e foi bem-sucedida na busca do objetivo de atender ao princípio constitucional da descentralização, ampliando a participação de Estados, Distrito Federal e Municípios no financiamento das ações e serviços de saúde. Ou seja: neste período Estados e Municípios mais que triplicaram o volume de recursos destinados para a saúde, passando de R$ 28 bilhões para R$ 89 bilhões – incremento de R$ 28 bilhões no âmbito estadual e R$ 32 bilhões no municipal – e a União aumentou seu gasto em R$ 31 bilhões, correspondente a um aumento de 75% em relação a 2000. Tal valor incremental foi próximo ao observado em cada uma das outras duas esferas de governo, verificando-se, após a EC nº 29/2000, que dois terços do aumento dos recursos para ASPS foram provenientes das receitas próprias de Estados e Municípios, enquanto um terço foi proveniente dos recursos injetados pela União.
Quando se analisa a participação do gasto público em saúde das três esferas no Produto Interno Bruto – PIB, observa-se que essa participação aumentou em 1 ponto percentual entre 2000 e 2011 (2,89% para 3,91%). Entretanto, este incremento foi proveniente do aumento da participação dos Estados e dos Municípios no PIB, uma vez que a participação da União permaneceu estável ao longo destes anos. No período, o gasto federal em ASPS correspondeu a 1,73% do PIB em 2000 e 1,75% do PIB em 2011, o gasto estadual correspondeu a 0,54% do PIB em 2000 e 1% em 2011 e o municipal a 0,6% do PIB em 2000 e 1,16% em 2011.
Contudo, mesmo com estes aumentos, em 2009 e 2011, o gasto público em saúde encontrava-se, respectivamente, em torno de 3,8% e 3,9% do Produto Interno Bruto – PIB6 [11], percentuais muito inferiores àqueles aplicados por outros países que possuem sistemas universais de saúde. Em 2014 o gasto público em saúde correspondia somente a 3,9% do PIB, em contraposição aos parâmetros internacionais de gasto público em saúde de 7,0% do PIB, patamar no qual se reconhece que os sistemas de saúde, além de públicos, passam a cumprir função positiva na redução de desigualdades sociais[12].
Depois de onze anos da promulgação da Emenda Constitucional nº. 29/2000, enfim, deu-se a sua regulamentação com a Lei Complementar nº. 141, de 13 de janeiro de 2012, cujo mérito foi estabelecer, afinal, quais seriam as ações e serviços nos quais poderiam ser aplicados, pelos entes federados, os recursos vinculados à saúde, mantendo-se, no entanto, o mesmo formato de aplicação de recursos estabelecidos na EC nº. 29/2000, ou melhor, mais uma vez, deixou-se de estabelecer um percentual da arrecadação da União a ser obrigatoriamente aplicado anualmente na saúde.
Nos anos de 2013 e 2014, vários segmentos da sociedade brasileira mobilizaram-se pelo fortalecimento do financiamento do SUS, movimento este denominado Saúde Mais Dez (Saúde+10), que resultou na apresentação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular – PLC nº. 321/2013) ao Congresso Nacional com mais de 2,2 milhões de assinaturas auditadas em prol da aplicação mínima de 10% da Receita Corrente Bruta da União em ações e serviços públicos de saúde. Porém, desrespeitando esta explícita manifestação da vontade popular, a quase totalidade dos deputados e senadores do Congresso Nacional, com o apoio do governo federal, aprovou a Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº. 358/2013, em fevereiro de 2015, gerando a Emenda Constitucional nº. 86/2015 (EC nº. 86/2015)[13].
Nestes anos a sanha conservadora antipopular empenhou-se em destruir a possibilidade de implantação, no Brasil, de um Sistema Nacional de Saúde público e universal.
Várias agressões à população brasileira e às autoridades da saúde no planejamento da alocação de recursos no SUS foram perpetradas por meio da aprovação da EC nº. 86/2015, promulgada em 17 de março de 2015, que institucionalizou o subfinanciamento do SUS:
- a) recursos do Pré-Sal deixaram de ser recurso adicional ao orçamento federal da Saúde;
- b) criou-se o denominado “orçamento impositivo”, ou seja, vinculação de receitas para gastos com emendas parlamentares individuais no percentual de até 1,2% da receita corrente líquida prevista no Projeto de Lei Orçamentária enviado pela União, só que metade deste percentual passou a ser destinado às emendas parlamentares relativas a ações e serviços públicos de saúde – ASPS, despesas estas que passaram a ser computadas no montante obrigatório de aplicação mínima de recursos em ASPS pela União. Dispensa comentários o estímulo ao clientelismo e a afronta à atribuição da autoridade de saúde federal de planejar a alocação de recursos no Sistema de Saúde, que se expressa na EC nº. 86/2015.
Ou seja, a combinação das novas regras de cálculo para apuração do valor da aplicação mínima constitucional com a da execução orçamentária obrigatória das emendas parlamentares individuais agravou o quadro de subfinanciamento do SUS para a União, Distrito Federal, Estados e Municípios, o que representou mais uma perda parcial de direitos sociais duramente conquistados pela sociedade brasileira.
Acrescente-se que o gasto privado em saúde soma cerca de 5% do PIB e beneficia apenas um quarto da população brasileira, composto por pessoas com melhores condições econômicas. Neste sentido, é injusto que os planos e seguros privados de saúde ainda recebam os vultuosos subsídios públicos por meio da renúncia ou de incentivos fiscais. São recursos que deixam de financiar o SUS em favor do setor privado que, recentemente, foi favorecido mais uma vez com a permissão da entrada de capital estrangeiro na assistência à saúde.
Tomando-se o exposto em relação à participação da União no financiamento do SUS, de 1989 a 2015, a primeira constatação, que pode ser considerada como um dos aspectos desestruturantes do Sistema, é o caráter irregular do financiamento ao longo dos anos, o que trouxe sérias dificuldades do ponto de vista da gestão. Pode-se observar que os gastos – no período 1995 a 2012 – com ações e serviços públicos de saúde apresentaram um comportamento irregular, com queda anual de até 7,6% e alta de até 18,5%. As razões de tal irregularidade encontram-se na desestabilidade do financiamento já no início da década de 1990 ocasionadas pelas dificuldades econômicas no plano interno e o alinhamento do Brasil à política neoliberal, que expõe a economia brasileira às oscilações externas.
Emenda Constitucional nº. 95/2016 – Retirada de Direitos Sociais e Ataque ao Projeto Constituinte de 1988
FINANCIAM
A Emenda Constitucional nº. 95, de 15 de dezembro de 2016 – EC nº. 95/2016, instituiu o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, com início em 2017 e final em 2036. Obra do condomínio que deu o golpe de Estado de 2016, esta emenda ataca frontalmente os direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal, inclusive o direito social à saúde.
Foi estabelecido um “teto” para as despesas primárias até 2036 com o objetivo de formar superávits primários para pagamento de juros e amortização da dívida pública (que correspondem as despesas financeiras não submetidas ao mesmo “teto”), mas também foi criada uma regra de cálculo de “congelamento” do “teto” por 20 anos – manter o valor das despesas pagas em 2016 atualizadas anualmente pela respectiva variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA/IBGE (índice oficial da inflação) e, para a saúde, manter o valor de 15% da Receita Corrente Líquida de 2017 como um “piso/teto” atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE. Com isto, o processo de subfinanciamento do SUS foi transformado em processo de desfinanciamento: dependendo do cenário de projeção adotado, os recursos federais para o SUS cairão de 1,7% do PIB para 1,0% até 2036, o que poderia gerar perdas acumuladas superiores a três orçamentos anuais neste período de 20 anos[14].
O objetivo da EC nº. 95/2016, no campo da saúde, é reforçar, com o limite dos investimentos públicos, o sistema de saúde privado, aprofundando dois principais obstáculos à efetividade e à universalidade do SUS, que não são propriamente motivos ligados à gestão do Sistema, ou seja, a concorrência dos planos privados de saúde e os subsídios generosos que eles recebem do próprio Estado[15].
O pretendido equilíbrio fiscal faz-se pelo lado do corte do gasto, e não pelo investimento, sequer cogitando-se de reformas no sistema de arrecadação, de não deixar imune a leveza da tributação brasileira sobre as grandes propriedades e as rendas do capital, que fazem com que a conta da carga tributária seja cada vez mais centralizada nos mais pobres e nos rendimentos do trabalho e no consumo. Por isto que a medida é uma clara opção por privilegiar certos setores, nacionais e estrangeiros, pois existem opções eficazes ao teto de gastos – ineficaz para aplacar a crise, mas eficaz sim para sabotar completamente a Constituição, e a curto e médio prazo, agravar a própria crise. Logo, o problema brasileiro, como também o de outros países, não é de excessos do intervencionismo estatal ou de excesso de gastos com os direitos sociais. O Brasil ostenta, contudo, uma particularidade: a mentalidade tacanha de nossas elites econômicas, que não se importam em desconstruir um projeto de País soberano e mais justo socialmente, para manter seus privilégios.
A EC nº. 95/2016 representa a reação dos setores políticos e econômicos conservadores da sociedade brasileira, que nunca aceitaram uma Constituição que pretendeu ser dirigente e que pretendeu implantar um Estado Social no Brasil, determinando a função social da propriedade, a intervenção do Estado nos domínios econômico e social. Aliás, que nunca aceitaram nem mesmo o protagonismo do País na exploração estratégica dos seus recursos naturais, como têm demonstrado as sucessivas aprovações de projetos de lei que alienam e abrem mão do controle das riquezas nacionais (petróleo, por exemplo).
A implementação da EC nº. 95/2016 é, portanto, uma ofensiva conservadora de retirada de direitos sociais, tendo como alvo prioritário o projeto constituinte de 1988, que exige a intervenção do Estado para a redução das severas desigualdades sociais e econômicas, necessária para uma economia verdadeiramente soberana. O ataque também é à concepção neodesenvolvimentista deste mesmo projeto constituinte, que reserva ao investimento público papel essencial ao estímulo do investimento privado e do crescimento do setor produtivo nacional, com o intuito de reduzir a dependência do País às potências estrangeiras hegemônicas. Enfim, o plano econômico embutido na EC nº. 95/2016, derrotado nas urnas nas eleições presidenciais de 2014, é também aparentemente motivado para sabotar os avanços do País na implementação de um Estado de Bem-Estar Social e de uma economia mais soberana e independente, outrora capaz de influenciar a consolidação de um projeto de autonomia de toda a América Latina e de seus povos15.
Em face disto, sem perder de vista a centralidade da luta massiva, com esclarecimento e envolvimento popular, pela revogação da EC nº. 95/2016, é fundamental dar início a reversão do estrangulamento orçamentário do SUS, no que se refere à participação da União. Ademais, o Brasil tem plenas condições econômicas de fazê-lo num governo democrático e popular compromissado com os interesses da maioria da população brasileira, pois o subfinanciamento crônico do Sistema como manifestação de uma política de Estado2 gerou – e continua gerando – deformações, analisadas posteriormente, que, com o passar do tempo, nos coloca hoje o seguinte dilema: ou são sanadas na raiz ou não haverá sustentabilidade, nem futuro para o SUS.
Ora, eleições em um Estado da Federação com a pujança econômica e cultural de São Paulo, na atual conjuntura especialmente, não é palco para a esquerda apresentar à população Programas de Governo que revelem vieses técnicoburocráticos, escondam a verdadeira gênese dos problemas econômico-sociais e destinem-se a apresentar gestores eficientes e confiáveis, ao contrário. No caso desta questão – estrangulamento orçamentário nacional do SUS face a insuficiente participação da União no seu financiamento – as forças políticas antigolpistas e seus candidatos a governador, Luiz Marinho, ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa precisam propor nos debates públicos com a população do Estado três providências: uma articulada com a candidatura Lula à presidência da República visando superar a tragédia socioeconômica produzida pelo governo federal golpista, as outras duas reapresentando propostas históricas dos movimentos democráticos e populares de saúde, quais sejam:
- a) a defesa da criação de um Fundo de Emergência para Criação de Emprego e Desenvolvimento Social, que utilize parcela das reservas internacionais do Brasil, a fim de viabilizar a realização de investimentos que contribuam para a rápida retomada do crescimento econômico e do emprego, bem como para a realização de investimentos nas áreas sociais, priorizando-se num primeiro momento a saúde;
- b) defesa da aprovação da destinação obrigatória de 10% da receita corrente bruta anual da União à saúde, e
- c) a defesa da retirada dos funcionários da área da saúde – Municípios, Estados, Distrito Federal e União – da base de cálculo da Lei de Responsabilidade Fiscal, porque a saúde é intensiva no emprego de mão-de-obra, além de também ter atribuições de fiscalização e controle que lhes são próprias destinadas a preservar a saúde e a vida das pessoas.
Estas três propostas concretas tem o dom de situar no plano político e ideológico as candidaturas de esquerda em contraposição ao discurso neoliberal avesso às questões sociais de oponentes conservadores. A disputa eleitoral, na presente conjuntura, requer discutirmos claramente – de modo inteligível, sem jargões técnicos – com a população o papel que conferiremos ao Estado, quando voltarmos ao governo federal, como alavanca do crescimento econômico e do emprego, junto com a retomada da inclusão social de milhões e milhões de pessoas. Por outro lado, na melhor tradição mundial dos partidos de esquerda, devemos assumir compromisso público de priorizar o vasto campo da saúde como fator de desenvolvimento do País e, por decorrência, investir no Sistema Nacional de Saúde público e universal, pois trata-se de direito de todos e dever do Estado, com a finalidade de qualificá-lo, ampliá-lo e lhe conferir sustentabilidade objetivando a preservação da saúde e a defesa da vida de todos os brasileiros e de todas as brasileiras.
Decorrências do Subfinanciamento da Saúde como Política de Estado – Problemas de Gestão e Ausência de Carreira do SUS
A segunda questão decorre da primeira e compõe-se de três graves problemas: dois deles diretamente relacionados à insuficiente participação da União no financiamento do SUS e um relacionado indiretamente.
Dos problemas diretamente relacionados à insuficiência da participação da União, um deles vem a ser a ocorrência e reprodução de inadequações na gestão cuja causa é a própria cronicidade do subfinanciamento, o que em si já é grave. Parece haver uma contradição entre o modelo redistributivo pressuposto na Constituição brasileira e o nível de gasto público em saúde. Neste quadro, o aumento de recursos financeiros é uma precondição para negarmos o SUS da “não-universalidade” e da “não-descentralização”, para que ele não negue si mesmo enquanto direito social. Tal como o modelo de descentralização preconizado pelos ideólogos do SUS, que sofreu com a escassez de recursos, boa parte dos problemas de gestão decorre da crise crônica de financiamento[16].
Agora, o outro problema simplesmente é, ao lado do destrutivo processo de privatização, o fator de desestruturação da perspectiva mesmo da superação de entraves políticos e administrativos com o objetivo de dar continuidade à implantação do SUS em novos moldes: trata-se da ausência de uma carreira do SUS interfederativa, única e nacional[17] [18]. Importante grifar porque, em função da referida dificuldade objetiva atual da União de vir a ser o ente federativo predominante no custeio de Plano de Cargos, Carreiras e Salários – PCCS, de âmbito nacional, compartilhado com Estados da Federação, Distrito Federal e Municípios, para os membros de profissões e ocupações diversas que trabalham no SUS, os trabalhadores se transformaram no elo frágil na cadeia de aplicação dos recursos do SUS: não têm carreira, predominam baixos salários e condições de trabalho inadequadas, viceja a precarização. Não há, propriamente, trabalho decente em muitos serviços próprios e contratados pelo SUS18. O fato: sem se colocar os profissionais de saúde no centro do SUS, por meio de uma carreira interfederativa, única e nacional, na qual seja implantado um PCCS, prevista vinculação entre cargos de comando e assessoria técnica vinculados à carreira do SUS e à profissionalização do trabalho no setor público18, não reinventaremos um modelo de atenção à saúde público operacionalizado compartilhadamente entre os entes federados a partir das 438 Regiões de Saúde existentes no Brasil.
Da Fragmentação do Sistema
O problema relacionado indiretamente à insuficiente participação da União no financiamento do SUS, teve longa maturação de 1989 até atingir o estágio atual, ou seja, até ser bem caracterizado como um grave problema: trata-se da fragmentação do Sistema[19] [20].
Na sua origem, a fragmentação decorreu da associação perversa de uma tríade de fatores: a) o tíbio protagonismo histórico do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde estaduais que não conseguiram garantir a coordenação e integração da rede sanitária nacional, portanto, o funcionamento sistêmico do SUS; b) a histórica insuficiência da participação da União no financiamento, de acordo com o que se apontou anteriormente, e c) o fato de que até 1999, constitucionalmente, Municípios, Estados, Distrito Federal e União podiam fazer o que quisessem – para menos ou para mais – quanto à alocação de recursos na área da saúde, uma vez que não havia a obrigatoriedade dos entes federados investirem anualmente um percentual de suas receitas na área, o que somente veio a se dar em 2000 com a aprovação de emenda constitucional neste sentido. Vale lembrar: o Município de São Paulo, de 1996 a 2000, sem contar com a transferência de recursos federais, organizou sua própria rede de serviços de saúde e se afastou organizativamente do SUS.
A presente manifestação da fragmentação do Sistema consiste na disposição, de fato, do SUS em redes – umas tantas numericamente significativas, outras ínfimas – de unidades de saúde dos entes federados – Municípios, Estados, Distrito Federal e União – porque, conforme mencionamos, não se efetivou até o momento a integração da rede sanitária nacional. Joga água na fervura da fragmentação a existência de múltiplas lógicas organizativas (administração direta e indireta, contratos e convênios, organizações sociais – OS e outros), porém o processo de fragmentação é radicalizado pela crescente – e destrutiva! – privatização da gestão de serviços e de redes de unidades de saúde municipais e estaduais, criando-se nos territórios de entes federados gestores privados com poder e autonomia para definir política de pessoal, estratégias de cuidado de usuários, entre outros[21] [22] [23].
Das redes de unidades de saúde de entes federados, a mais complexa delas é a da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Eleições e SUS no Estado de São Paulo
A importância do Estado de São Paulo e o cenário em que a eleição provavelmente se dará, ou seja, neste ano e nesta conjuntura, coloca às forças políticas antigolpistas e seus candidatos a governador, ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa enormes responsabilidades na veiculação à população de narrativas didáticas que dissequem as várias fases do golpe de Estado a partir de abril de 2016. As pesquisas de opinião atuais vêm detectando a arguta percepção popular a respeito das práticas políticas do condomínio golpista.
E mais: acoplem isto à veiculação, durante a campanha eleitoral, de Programa de Governo ousado que transmita ao eleitorado a perspectiva de transformação para melhor tanto da realidade do Estado quanto da vida das pessoas.
No caso da saúde tais transformações somente poderão se dar se forem enfrentadas questões que, à esta altura do desmonte do SUS, não podemos deixar de discutir com a população claramente, porque, conforme pode se inferir do exposto anteriormente, tratam-se de questões cujo enfrentamento contrariará diversos interesses econômicos e políticos, portanto, é vital debater e interagir com a população, sem o que não se materializará apoio popular às mudanças substantivas na realidade.
Elencamos as proposições globais que se seguem, mas antes esclarecemos o que se entende por Regiões de Saúde, o significado da expressão protagonismo institucional compartilhado e a natureza da Reforma da SES-SP proposta.
Regiões de Saúde e Comissão Intergestores Regional
Para evitar confusão, já que serão abordadas na sequência as Regionais de Saúde da SES-SP, inserimos as definições de Regiões de Saúde e de Comissão Intergestores Regional, de acordo com os termos do Decreto nº. 7.508, de 28.06.2011, a saber:
- a) Região de Saúde – espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde;
- b) Comissão Intergestores Regional – CIR – comissão de âmbito regional composta por representantes da Secretaria de Estado da Saúde e dos Municípios localizados em cada Região de Saúde.
Existem 438 Regiões de Saúde no Brasil, sendo que 63 delas situam-se no Estado de São Paulo.
Protagonismo Institucional Compartilhado
A expressão protagonismo institucional compartilhado, que vimos empregando, é aqui entendida, politicamente, como o processo de continuidade da construção do SUS no Estado de São Paulo, que demandará o enfrentamento de graves problemas – a solução de uma parte deles passa pelos governos do Estado e dos Municípios, outros amparam-se na legislação federal sobre os quais imediatamente podemos influir pouco.
Como método a expressão protagonismo institucional compartilhado deve ser entendida como construção coletiva a partir das Regiões de Saúde, com o acompanhamento dos Conselhos Municipais de Saúde de cada Região de Saúde, discutido nas Comissões Intergestores Regional – CIR, na Comissão Intergestores Bipartite – CIB, constituída pela entidade representativa das Secretarias Municipais de Saúde do Estado de São Paulo – COSEMS/SP e pela SES-SP, com o acompanhamento sistemático do Conselho Estadual de Saúde – CES.
Tradição da SES-SP e Reforma Administrativa
A natureza das proposições de Reforma da SES-SP tem antecedentes na própria tradição da instituição, na vigência de políticas de saúde distintas. Citamos dois exemplos: a) a reformulação, no bojo da reforma administrativa do Serviço Público Estadual, realizada de 1967 a 1969, caracterizou-se por seu caráter processual e tinha como objetivo principal a desverticalização da estrutura organizacional para passar a operá-la com base em instâncias regionais e b) a Reforma da SES-SP que criou 62 Escritórios Regionais de Saúde – ERSA, realizada em 1986, ano em que ocorreu a 8º Conferência Nacional de Saúde, na qual a centralidade da regionalização foi sobremaneira abrangente. As sugestões que apresentamos vão nesta linha e naturalmente inspiram-se no arcabouço jurídico e normativo do SUS.
DIRETRIZES
Melhoria de Grupos de Indicadores de Saúde em Curto e Médio Prazos
PROPOSIÇÃO. É fundamental enfatizar que a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo – SES-SP priorizará uma série de ações, em conjunto com os Municípios, visando, a curto e médio prazos, atingir indicadores de saúde que reflitam no plano sanitário a pujança econômica e cultural do Estado.
Regionalização
Reforma Administrativa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo – SES-SP
PROPOSIÇÃO 1. A Reforma da SES-SP objetivamente é uma necessidade. Acreditamos que o melhor caminho para a realizar seja a adoção de um caráter de processo: no primeiro ano da gestão já estariam funcionando Regionais de Saúde com novas atribuições e competências, bem como tudo o que diga respeito ao quadro de pessoal (levantamentos, dimensionamento de necessidades, concursos e seleções públicas e outros) já teria sido concluído. No segundo ano conclui-se o processo.
PROPOSIÇÃO 2. A SES-SP somente conseguirá exercer um protagonismo institucional compartilhado, na perspectiva da integração do Sistema no âmbito do Estado, se recriar ferramenta institucional indispensável para esta finalidade, a saber:
- a) constituir Regionais de Saúde da SES-SP cujos dirigentes tenham sob sua coordenação administrativa direta:
- Equipes e Grupos Técnicos de Planejamento, Regulação, Auditoria, Grupos de Vigilância Epidemiológica e Grupos de Vigilância Sanitária, bem como Equipe Administrativa;
- estabelecimentos de saúde estaduais localizados na área geográfica da Regional de Saúde: ambulatórios, hospitais e outros administrados pela SES-SP e por organizações sociais – OS;
- b) os dirigentes regionais efetivamente devem priorizar e contribuir para dinamizar as Comissões Intergestores Regionais – CIR das Regiões de Saúde localizadas na área geográfica das Regionais de Saúde da SES-SP;
- c) instituir um Fundo para cada Regional de Saúde da SES-SP, a fim de conferir maior autonomia e criar melhores possibilidades de resolução de problemas regionais;
- d) as Equipes de Planejamento das Regionais de Saúde serão subordinadas tecnicamente e se articularão sistemicamente com a Coordenadoria de Planejamento de Saúde; as Equipes de Regulação e de Auditora das Regionais de Saúde serão subordinadas tecnicamente e se articularão sistemicamente com a Coordenadoria de Regiões de Saúde; os Grupos de Vigilância Epidemiológica e os Grupos de Vigilância Sanitária serão subordinados tecnicamente e se articularão sistemicamente com a Coordenadoria de Controle de Doenças, respectivamente, com o Centro de Vigilância Epidemiológica e o Centro de Vigilância Sanitária, as Equipes Administrativas se articularão sistemicamente com a Coordenadoria Geral de Administração;
- e) os Contratos de Gestão das OS serão geridos administrativamente e monitorados tecnicamente pelas equipes técnicas da Coordenadoria de Regiões de Saúde, devendo a Coordenadoria de Planejamento de Saúde fornecer-lhe o suporte técnico necessário;
- f) a Central de Transplantes será vinculada ao Gabinete do Secretário de Estado da Saúde.
As Regionais de Saúde da SES-SP deverão ser as estruturas administrativas e técnicas artífices da regionalização, ou melhor da operação do SUS a partir das 63 Regiões de Saúde, na perspectiva de busca da coordenação e integração da rede sanitária estadual, portanto, do adequado funcionamento sistêmico do SUS no âmbito do Estado.
Os dirigentes regionais deverão ser efetivamente os representantes do secretário estadual de Saúde nas áreas geográficas das Regionais de Saúde.
Consideramos importante que as Regionais de Saúde da SES-SP com suas novas atribuições e competências passem a exercer suas funções o mais rápido possível. Neste sentido, de um ponto de vista mais geral, o número de Regionais de Saúde é relevante, mas não é o cerne desta discussão. Contudo, nos parece evidente que a manutenção da atual área geográfica da Regional de Saúde da Grande São Paulo não é apropriada e, por esta razão, acreditamos que, no mínimo, a Região de Saúde constituída pelo Município de São Paulo, a Região de Saúde constituída pelos Municípios do Alto do Tietê – Guarulhos e a Região de Saúde constituída pelos Municípios do Grande ABC devem vir a se constituir em três novas Regionais de Saúde da SES-SP.
Reassunção da Gestão de Equipamentos Públicos de Saúde Privatizados e Terceirizados
PROPOSIÇÃO. A privatização da gestão e de redes de unidades de saúde estaduais por meio das OS, além de radicalizar a fragmentação do SUS, requer gasto com custeio maior do que o necessário para custear as mesmas unidades, caso elas fossem geridas normalmente pela Administração Pública Estadual. Com o intuito de adotar mecanismos de racionalidade econômica, de iniciar a desprivatização do Sistema com a finalidade de reassumir o controle de equipamentos públicos da SES-SP e, assim, compartilhar com os Municípios a prestação de serviços à população adotando-se como método o protagonismo institucional compartilhado, deverão ser adotadas as seguintes providências:
- a) adotar a estratégia de reassumir gradativamente a gestão de equipamentos públicos da SES-SP atualmente sob gestão privada de OS, naturalmente pela racionalidade econômica e pela importância de determinados equipamentos públicos hospitalares para alavancar o protagonismo institucional compartilhado entre a SES-SP e Municípios do Estado;
- b) num primeiro movimento serão adotadas as medidas administrativas lato sensu pertinentes para viabilizar, ao seu tempo, a reassunção da gestão de hospitais da SES-SP fundamentais para que se reorganize o funcionamento do SUS em regiões específicas do Estado adotando-se o que denominamos protagonismo institucional compartilhado;
- c) num segundo movimento, simultâneo, serão realizadas avaliações por Grupo de Trabalho criado com esta finalidade, composto por técnicos da SES-SP, dirigentes do COSEMS/SP, entre outros, no qual se avaliará aspectos diversos referentes à inserção de hospitais, ambulatórios e outros equipamentos públicos sob gestão da própria SES-SP e de OS no SUS no âmbito do Estado.
Estes dois movimentos serão precedidos, se acompanharão e serão sucedidos pela articulação de movimento de apoio à demanda política que vem sendo apresentada por entes federados há muitos anos, no sentido de retirar-se os funcionários da saúde da base de cálculo da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Carreira SUS
PROPOSIÇÃO 1. Conforme já abordamos anteriormente, um problema grave do SUS é a ausência de uma carreira interfederativa, única e nacional, com perfil multiprofissional, portanto, este é um problema de todos os entes federados.
Ressalte-se que a plena coordenação e integração da rede sanitária estadual, portanto, o adequado funcionamento sistêmico do SUS no âmbito do Estado, é incompatível com a existência de diversos gestores privados, com autonomia para definir política de pessoal, gerindo equipamentos públicos nos territórios das Regiões de Saúde.
Em relação a esta questão, em primeiro lugar, a SES-SP deve defender nos Fóruns Colegiados do SUS uma política de pessoal unificada com diretrizes nacionais, ou seja, um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os membros de profissões e ocupações diversas que trabalham no SUS, com custeio predominante da União compartilhado com Estados da Federação, Distrito Federal e Municípios.
Em segundo lugar, criar carreira para os membros de profissões e ocupações diversas vinculados à SES-SP que trabalham no SUS, prevendo-se legalmente a possibilidade de incorporação de seus membros a eventual carreira nacional do SUS que na sua estruturação possibilite a adesão de funcionários municipais, estaduais, do Distrito Federal e da União.
Dada à complexidade da concepção de uma carreira desta natureza é imprescindível a colaboração de especialistas em sua elaboração, como também é fundamental dialogar com os dirigentes de todos os sindicatos representativos das profissões e ocupações diversas que trabalham no SUS.
PROPOSIÇÃO 2. O levantamento dos funcionários da SES-SP em atividade constitui-se uma providência preliminar ao debate acerca de carreiras, mas é vital para o rápido dimensionamento de necessidades de pessoal, portanto, se for o caso e a depender da instituição, para a tomada de decisão sobre a realização de concursos. Sugerimos que o quadro de pessoal em atividade, segundo profissão e ocupação, incluindo os níveis central e regional quando houver, no caso do Bloco I, seja assim agrupado:
BLOCO I – a) atuantes na assistência à saúde direta à população; b) atuantes na vigilância epidemiológica, na vigilância sanitária, no Laboratório Adolfo Lutz, na Superintendência de Controle de Endemias, no Instituto Pasteur e no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS; c) atuantes na Auditoria; d) atuantes na Regulação; e) atuantes no Planejamento; f) atuantes no Apoio Administrativo e Financeiro;
BLOCO II – a) atuantes no Instituto de Saúde; b) atuantes no Instituto Butantã; c) atuantes na Fundação para o Remédio Popular – FURP; d) Fundação Pro Sangue Hemocentro de São Paulo e e) Fundação Oncocentro de São Paulo.
PROPOSIÇÃO 3. Reajuste imediato de funcionários das categorias estratégicas para a boa prestação de serviços de saúde à população, bem como assumir compromisso público de, em médio prazo, alinhar os valores dos salários destes profissionais aos valores praticados no mercado de trabalho.
Desenvolvimento Tecnológico e Produção de Medicamentos
PROPOSIÇÃO. Priorizar o Instituto Butantã quanto ao desenvolvimento tecnológico na produção de insumos à produção de vacinas, soros e biofármacos para uso humano, bem como a Fundação para o Remédio Popular – FURP na produção de medicamentos.
Restaurar a Prestação de Serviços ao Funcionalismo pelo Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual Hospital – IAMSPE e pelo Hospital do Servidor Público Estadual – HSPE
PROPOSIÇÃO. Recuperar a prestação de serviços de saúde de excelência ao funcionalismo público pelo HSPE.
Participação da Comunidade e Controle Social do Estado no SUS
PROPOSIÇÃO. Colaborar com o Conselho Estadual de Saúde na busca da inovação na participação da comunidade e do controle social do Estado no SUS.
Política Estadual de Saúde do Trabalhador como Prioridade de Governo
PROPOSIÇÃO. Criar o Centro de Estudos Sindicais em Saúde do Trabalhador, vinculado ao Gabinete do Secretário de Estado da Saúde, constituído por especialistas da SES-SP, de órgãos públicos de notória especialização e compromisso com a defesa da saúde dos trabalhadores, de instituições universitárias, de representantes do Departamento Intersindical de Estudos de Saúde e Ambientes de Trabalho – DIESAT, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE e de todas as Centrais Sindicais do Brasil, a fim de que este colegiado acompanhe a implantação, analise os resultados e opine sobre a mudança de rumos da Política Estadual de Saúde do Trabalhador – com foco nos trabalhadores da iniciativa privada e da administração pública –, que será prioridade de governo.
Protagonismo da SES-SP nas ações de Prevenção da Violência
PROPOSIÇÃO. A SES-SP, para além da produção de pesquisas sobre as articulações entre o tema da violência e suas repercussões na saúde das brasileiras e dos brasileiros, deve conceber propostas de atuação específicas e, ao lado disto, em conjunto com outras áreas, intervir em dadas dinâmicas ou contextos sociais visando minimizar, diminuir ou eliminar agravos à saúde decorrentes da violência.
Por fim, esperamos que as forças sociais e políticas imbuídas do compromisso ético-político de defesa da vida, analisem, sugiram, socializem e se mobilizem em torno destas reflexões e proposições globais que desejamos potentes para ajudar a desatar o nó do impasse estratégico vivenciado no campo da saúde. Tais proposições se assentam em duas dimensões: a ética, consubstanciada na defesa da vida de todas as pessoas, e a política, efetivada na ação direcionada à estruturação de um aparato sanitário estatal no âmbito do Estado de São Paulo, parte integrante do aparato nacional, operacionalizado com pujança, agilidade e qualificação, destinado a garantir a promoção, a proteção, a recuperação e a reabilitação da saúde de todos os brasileiros e de todas as brasileiras que aqui residem fixamente, em caráter transitório ou que aqui estão em trânsito.
* Ricardo Fernandes de Menezes. Médico sanitarista. Mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Doutorando do Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.
** Iara Alves de Camargo. Médica pediatra e sanitarista. Mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de Sorocaba.
REFERÊNCIAS
[1] Menezes RF. Ricardo Menezes discute o SUS Brasil. Disponível em: https://cebes.org.br/2015/01/sus-brasil/.
[2] Soares A. O Subfinancimento da Saúde no Brasil: uma Política de Estado [Tese de doutoramento]. Campinas: Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2014.
[3] Brasil. Constituição Federal de 1988 – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 55. Até que seja aprovada a lei de diretrizes orçamentárias, trinta por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o seguro-desemprego, serão destinados ao setor de saúde.
[4] Menezes RF. O Financiamento da Vida; 2009. Disponível em: https://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/03/o-financiamento-da-vida.pdf.
[5] Comunicação pessoal de Gilson Carvalho, médico pediatra e de Saúde Pública. Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA. Gasto com saúde no Brasil em 2007 e Existe equidade no financiamento público de saúde para todos? Recebida por mensagem eletrônica em 2008.
[6] Piola SF, Paiva, AB de, Sá, EB de, Servo, LMS. Financiamento Público da Saúde: uma História à Procura de Rumo. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. 2013 [Acesso em: 2018 junho 16]. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1580/1/TD_1846.pdf. Acesso em: 16 jun 2018.
[7] As contribuições sociais que financiam a saúde são: a) Contribuição Social sobre Lucro Líquido – CSLL; b) Contribuição sobre Financiamento da Seguridade Social – COFINS; c) CPMF (vigente até o ano de 2007); d) Contribuição do Plano de Seguridade Social do Servidor – CPSS; e e) Contribuição Patronal do Plano de Seguridade Social do Servidor.
[8] Campelli MGR, Calvo MCM. O cumprimento da Emenda Constitucional nº. 29 no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2007; 23 (7): 1613-23.
[9] Comunicação pessoal de Francisco Funcia, economista, assessor da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde. Despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde – ASPS: participação federal, estadual e municipal de 2013 a 2017. Recebida por mensagem eletrônica em 18 de junho de 2018.
[10] Fonte: Sistema de Informações e Orçamentos Públicos de Saúde – SIOPS. Ministério da Saúde.
[11] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Conta Satélite de Saúde. In: Brasil 2007-2009 – Contas Nacionais. Rio de Janeiro, n. 37; 2012.
[12] Conselho Nacional de Saúde – CNS/Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento. Documento Final – O atual quadro de subfinanciamento do Sistema Único de Saúde – SUS no contexto da Emenda Constitucional nº. 86/2015 e do ajuste fiscal. Seminário realizado no 11º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, em 28 de julho de 2015 [Acesso em 2018 junho 15].
Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2015/docs/documento_final_seminario_cns_Cofin_abrasco.pdf.
[13] Funcia FR. Implicações da Emenda Constitucional n. 86/2015 para o processo de financiamento do Sistema Único de Saúde. Revista Consensus. 2015; Ed. 15, Abril-Maio-Junho. Conselho Nacional do Secretários de Saúde – CONASS.
Disponível em: http://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/revistaconsensus_15.pdf
[14] Funcia FR. Efeitos negativos da Emenda Constitucional nº. 95/2016 sobre a execução orçamentária e financeira de 2017 do Ministério da Saúde. Revista Eletrônica Domingueira da Saúde Gilson Carvalho Nº 07 – Fevereiro 2018 – Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA.
Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-07-fevereiro-2018?lang=pt
[15] Mariano CM. Emenda constitucional 95/2016 e o teto dos gastos públicos: Brasil de volta ao estado de exceção econômico e ao capitalismo do desastre. Revista de Investigações Constitucionais. 2017; 4 (1). Curitiba: Núcleo de Investigações Constitucionais da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/50289
[16] Ocké-Reis CO. Os Problemas de Gestão do SUS Decorrem Também da Crise Crônica de Financiamento? Trab. Educ. Saúde. 2008; 6 (3): 613-22. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462008000300012
[17] Narvai PC. SUS: 30 anos de resistência e contrahegemonia; 2018 [Acesso em 2018 maio 2]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/sistemas-de-saude/sus-30-anos-de-resistencia-e-contra-hegemonia/34213/.
[18] Narvai PC. Por uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS; 2018 (Acesso em 2018 maio 2]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/opiniao/por-uma-carreira-interfederativa-unica-e-nacional-do-sus/31184/.
[19] Campos GWS. Faltam R$ 55 bilhões por ano na Saúde. Jornal O Globo, 20 de setembro de 2013 [Acesso em 2018 julho 4]. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/site/2013/09/artigo-de-gastao-wagner-no-jornal-o-globo
[20] Campos GWS. O desenvolvimentismo não nos protegeu. Revista Poli – Saúde, Educação, Trabalho. 2013; 6 (38): 32-5. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
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[21] Campos GWS. Regionalização é o futuro do SUS. Sítio Regiões e Redes – O Caminho da Universalização da Saúde no Brasil. 2014 [Acesso em 2018 julho 4]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/regionalizacao-e-o-futuro-do-sus/#.WzzLJvZFxrQ
[22] Campos GWS. Uma utopia possível: o SUS Brasil. Sítio Regiões e Redes – O Caminho da Universalização da Saúde no Brasil. 2014 [Acesso em 2018 julho 4]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/uma-utopia-possivel-o-sus-brasil/#.WzzLsPZFxrQ
[23] Campos GWS. Proposta para tornar o SUS uma utopia possível. Revista Ser Médico. 2014; nº 69: 24-7. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
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