Narvai sobre as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil

Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP

Lula, as diretrizes 2023-26 e a saúde

“Expectativas foram criadas”, o meme popular nas redes sociais digitais, me veio à cabeça ao ler as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil 2023-2026, anunciadas por Lula durante o lançamento da plataforma interativa Juntos pelo Brasil, criada na internet para receber as contribuições e estimular a participação popular na campanha Lula-Alckmin. Dentro e fora do PT, imediatamente choveram críticas ao modo como saúde e SUS foram mencionados no documento, tornado público em 21 de junho de 2022. Muitas expectativas para a saúde e o SUS não foram contempladas nas Diretrizes. 

O ex-senador e ex-ministro Aloizio Mercadante, presidente da Fundação Perseu Abramo (FPA), assegurou que “as Diretrizes são um ponto de partida” e convidou ao debate todos que “querem ajudar a reconstruir este país. O que as diretrizes programáticas asseguram? Os princípios fundamentais, as ideias-forças que permitiram este pacto histórico destes sete partidos”. O pacto histórico a que se referiu Mercadante corresponde ao que Luiz Werneck Vianna denominou “movimento de salvação nacional”, segundo ele necessário para derrotar o bolsonarismo e tirar Bolsonaro da presidência da República. 

As Diretrizes, organizadas em quatro grandes eixos (Reconstrução do país, Desenvolvimento social e garantia de direitos, Desenvolvimento econômico e sustentabilidade socioambiental e climática e Defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania) são a síntese de propostas de consenso formuladas pelas direções, fundações e equipes técnicas dos sete partidos que compõem a frente “Vamos Juntos pelo Brasil”. Para não haver dúvida sobre a origem e propósitos das Diretrizes, os presidentes dos partidos (PT, PSB, PCdoB, PV, PSol, Rede e Solidariedade) participaram do ato de lançamento da plataforma interativa, que foi transmitido ao vivo. A gravação está disponível na internet. 

Sobre as Diretrizes, Lula comparou-as aos alicerces de uma casa. “A gente vai ter de construir a casa ao longo do tempo. Ouvindo as pessoas e executando a política”.  

Apesar dessas ressalvas de Lula e Mercadante sobre o significado mais geral das ‘Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil’, as menções ao SUS e à saúde ficaram muito aquém da expectativa, acenderam um sinal amarelo e geraram insatisfações em um amplo espectro, que foi de pesquisadores a lideranças de movimentos sociais que atuam no setor, conselheiros de saúde e sindicalistas. Foram consideradas insuficientes, vagas, pífias, “chove-não-molha”, genéricas, “mornas”, “mais do mesmo”, “menos do mesmo” e com “sabor de mofo”, como li em redes sociais.  

O rumo apontado nas 121 diretrizes, para a reconstrução e transformação do país foi considerado, de modo geral, positivo. Nesse conjunto, o termo saúde apareceu 14 vezes, conectado tanto ao desenvolvimento econômico quanto social e aos demais eixos, e a sigla SUS foi citada em 35 situações. Mas, como apenas duas diretrizes (23 e 24) se referiram de modo específico à saúde e ao SUS, e o fizeram em linhas gerais, isso foi o suficiente para a chuva de críticas. Houve até quem questionou esse lado, digamos, contábil do número de diretrizes de saúde (“apenas duas em 121?”) para expressar desgosto com as Diretrizes, interpretando que esse número daria a dimensão do “descaso” com a saúde e o SUS.  

Mas o que afirmam as diretrizes 23 e 24? Basicamente, reiteram o diagnóstico de que “a saúde, o direito à vida e o Sistema Único de Saúde (SUS) têm sido tratados com descaso pelo atual governo. Faltam investimentos, ações preventivas, profissionais de saúde, consultas, exames e medicamentos. É urgente dar condições ao SUS para retomar o atendimento às demandas que foram represadas durante a pandemia, atender as pessoas com sequelas da covid-19 e retomar o reconhecido programa nacional de vacinação. Não fossem o SUS e os corajosos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, a irresponsabilidade do atual governo na pandemia teria custado ainda mais vidas” (diretriz 23) e, argumentam que “nos governos Lula e Dilma, a saúde foi tratada como uma política pública central, como um direito de todos os brasileiros e brasileiras e como um investimento estratégico para um Brasil soberano”, reafirmando “o nosso compromisso com o fortalecimento do SUS público e universal, o aprimoramento da sua gestão, a valorização e formação de profissionais de saúde, a retomada de políticas como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, bem como a reconstrução e fomento ao Complexo Econômico e Industrial da Saúde” (diretriz 24). 

É mesmo muito pouco. Insuficiente, ainda que se trate de diretrizes gerais no contexto dos referidos quatro grandes eixos, tendo em vista a enorme expectativa sobre os rumos do SUS e a superação de vários impasses que o marcam e ferem no momento.  

Frente ao gravíssimo subfinanciamento, não basta reconhecer que “faltam investimentos”, mas afirmar um modo de superá-lo. Frente às terceirizações que fragmentam o SUS por sua base municipal, aprofundam a precarização dos vínculos profissionais e trabalhistas e não resolvem as más condições de trabalho em muitas unidades de saúde, não é suficiente falar em “fortalecimento do SUS público e universal”, ou reconhecer a boa aceitação do programa “Mais Médicos”, mas afirmar uma estratégia para o desafio de criar instrumentos para aprimorar a administração pública e o Estado brasileiro, superando as dificuldades para a gestão interfederativa das regiões de saúde, tendo em vista o impasse que marca o processo de municipalização da saúde, hoje impotente para possibilitar aos municípios condições de superar os entraves à universalidade do acesso e à integralidade da atenção à saúde. A municipalização, tão estratégica para a consolidação do SUS, está atualmente transformada numa espécie de via preferencial para a privatização dos serviços e, até mesmo, de sistemas municipais de saúde por inteiro, viabilizando que muitos municípios sejam capturados por Organizações Sociais de Saúde (OSS). As OSS, principal instrumento da saúde complementar para privatizar o SUS, não são mencionadas nas Diretrizes. Nada há, também, sobre saúde suplementar e a sucção de recursos públicos via isenções fiscais e parasitismo de serviços públicos, para benefício privado.  

As diretrizes são insuficientes em relação a esses e muitos outros aspectos. É preciso aprimorá-las. Esse aprimoramento será feito, de algum modo. Vindas do interior do próprio PT, e de partidos aliados, há sinalizações claras de que isso será feito.  

A mim, porém, preocupa a baixa intensidade das formulações do campo progressista, que defende o direito à saúde e o SUS, a respeito de alguns aspectos críticos da gestão do SUS, neste período histórico. Curiosamente, as críticas às diretrizes revelaram, uma vez mais, que o campo de onde se espera que venham contribuições que ajudem a superar os impasses, não vem conseguindo formular e defender proposições factíveis e viáveis para esses problemas do SUS, não obstante o grande acúmulo que consegue reunir. Admitindo a hipótese de que eu possa estar apenas desinformado e que, ao contrário, haja tais formulações, é preciso reconhecer que, então, tem havido dificuldades para lhes dar a necessária publicidade.  

Para não me alongar com exemplos, atenho-me a apenas dois desses “nós críticos” de importância estratégica para o SUS: a Carreira de Estado do SUS e a administração regional do SUS. Ambos seguem como uma espécie de esfinge de Tebas a desafiar o movimento sanitário que, em boa parte, desconversa sobre ambos. 

Tidos como temas menores (“questões administrativas”, “problemas de gestão”…) frente às grandes questões da saúde e do SUS, a Carreira-SUS e a administração regional do SUS, vêm sendo ignorados. Há consequências, e graves, para esse desdém, pois não faltam “projetos”, gestados em setores pró-mercado, para resolver os “problemas de gestão” do SUS, sobretudo aqueles interessados em “levar para a administração pública a excelência do setor privado”. Há nas Diretrizes três menções a carreiras de servidores públicos, mas todas para a área de segurança pública. 

Defensores do SUS precisam abrir os olhos e, mais do que apontar insuficiências e mesmices, apresentar suas proposições e propagandeá-las, dar-lhes a devida publicidade. Até hoje, a história do SUS tem sido a história de muitos embates dos quais saem ganhando os setores que têm projeto para ele. E esses setores, moldando o SUS aos seus projetos, vêm afastando-o crescentemente do que foi delineado pela Constituição de 1988. A saúde suplementar, para ficar em um exemplo, se sente, age e impõe decisões ao Estado brasileiro como se fosse algo à parte, sem vínculo com o ministério da Saúde. Sob Bolsonaro, a ousadia virou atrevimento com a regulamentação de um tal “Conselho Nacional de Saúde Suplementar”.  

Nesse contexto, se os defensores do SUS não avançarem suas proposições contra a mercantilização da saúde e se ocuparem dos “problemas menores da gestão”, os inimigos do SUS seguirão em frente, implementando o seu projeto. Basta ver como, e com que facilidade e ferocidade, Bolsonaro agrediu diariamente o SUS desde sua posse. Não cumpriu o compromisso do seu programa de governo, registrado na Justiça Eleitoral como “O Caminho da Prosperidade”, de que criaria uma “carreira de Médico de Estado, para atender as áreas remotas e carentes do Brasil”. Nem médico, nem qualquer outro profissional de saúde, nem carreira alguma.  

Que isso sempre foi conversa de Bolsonaro “pra boi dormir”, até o gado sabia. O problema é saber qual é a proposta do campo de oposição a Bolsonaro, para a Carreira de Estado do SUS. Sobre como administrar Regiões de Saúde. O que propõe, sobre isso, os partidos da frente “Vamos Juntos pelo Brasil”? Mais: o que propõe, sobre isso, o pensamento crítico afinado com o ideário da Reforma Sanitária brasileira? O que tenho lido e ouvido é preocupante, pois vejo escusas e muito “mais do mesmo”. Preocupa, pois a percepção é a de que estamos “dormindo no ponto”, “parados à beira da estrada”, sem projetos.  

Pode ser que eu esteja equivocado. Tomara. Mas eu e as torcidas do Flamengo e do Corinthians, juntas, temos a certeza de que não há plataforma interativa que resolva o problema da escassez propositiva. Constatar a insuficiência das Diretrizes, e apenas negá-las, nada resolverá também. Como dizia Amílcar Cabral, negar, dialeticamente, não é dizer não, mas afirmar outra coisa.  

Há um outro meme, igualmente muito popular nas redes sociais, que não deixa dúvida: “quem quiser que lute!”  

Mas não basta apenas lutar, se não se sabe o que se quer. O que queremos, afinal, para a saúde e o SUS no próximo governo federal? As plenárias populares em defesa da saúde e do SUS, que vêm sendo realizadas em várias localidades e segmentos sociais, no âmbito da Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde, organizada pela Frente Pela Vida, são expressões das lutas populares em defesa do direito à saúde e buscam reunir e organizar proposições com essa finalidade.  

Toda essa riqueza propositiva convergirá, de algum modo, creio, para a plataforma interativa Juntos pelo Brasil. Então, será possível dar muitos passos à frente e superar a generalidade das Diretrizes anunciadas no primeiro dia do inverno. Quando setembro vier, estaremos a alguns meses do verão 2022-23. Então, se tudo der certo na primavera e a gente não sambar, com a benção de Nelson Cavaquinho, “o sol há de brilhar mais uma vez”.